De uma forma ou de outra, o serviço de segurança prestado aos fazendeiros continuará (ver post anterior), independente da interdição da empresa responsável, conforme indica a passagem direta da afirmação final do funcionário da Gaspem – “Passa pra outra empresa e continua o trabalho” – para as duas frases pintadas no grande painel (“União faz a força do campo” e “Leilão da resistência”), logo encoberto pelo gado a ser leiloado.
Por ser “mais conhecido”, Carelli não foi à gravação. A pedido dele, duas pessoas “compraram a camiseta da resistência” e registraram o leilão sem se identificarem. Apesar de não haver qualquer interação pessoal entre quem está gravando e os participantes, a sequência resulta valiosa graças ao grande número de participantes, evidenciando que se trata de setor social a ser considerado; à encenação patrioteira com desfile da bandeira do Brasil e hino nacional entoado em coro; e sobretudo ao histrionismo dos pronunciamentos, mesmo sem estarem sendo transmitidos pelas TVs Senado ou Câmara.
As declarações feitas no leilão incluem desde a defesa da emenda constitucional que retiraria da Funai o poder de demarcar terras indígenas, transferindo-o para o Congresso Nacional, até a indagação de “até quando chegará um novo antropólogo na sua propriedade rural para dizer que ali, tomando um Santo Daime, teve um sonho também que tinha índios naquela região”. Afirma-se também que “a propriedade é a coisa mais sagrada que o ser humano tem […] e nós temos uma missão: zelar pela nossa propriedade, por que quem não cuida do que é seu não merece tê-lo”. E é dito ainda que “[…] quando no governo da presidenta Dilma tem alguém que se diz desenvolvimentista, leva o Brasil para a frente, que é a produção, tem no Palácio do Planalto um ministro da presidenta Dilma chamado Gilberto Carvalho que aninha no seu gabinete índios, negros, sem terra, gays, lésbicas. A família não existe no gabinete desse senhor. Esse é o governo da presidenta Dilma. Não esperem que essa gente vá resolver o nosso problema.” Descrédito do governo federal que é compartilhado, inesperadamente, por representantes dos proprietários rurais e pelo antropólogo Celso Aoki, solidário com a causa dos guarani-kaiowá, quando diz aos índios acampados, conforme citado no post III desta série: “Se depender do governo … central …lá de Brasília, da Presidência, a coisa não tá boa, não”.
A reintegração de posse, a fachada da empresa de segurança Gaspem e o Leilão da Resistência, traçam um esboço revelador, mas insuficiente, do “inimigo”, sendo que as duas últimas sequências são gravadas sem a presença de Carelli. As imagens utilizadas das TVs Senado e Câmara, por sua vez, não arrematam o desenho. Sobretudo o registro burocrático que se estende por cerca de 10 minutos, após quase duas horas de filme, da reunião da Comissão de Agricultura, Pecuária e Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara, com a participação da senadora Gleisi Helena Hoffmann, na época ministra-chefe da Casa Civil da Presidência da República.
Nesse caso, o histrionismo das intervenções resulta entediante e acaba chamando atenção para a debilidade da senadora Hoffmann frente às acusações de que o governo é omisso, a Funai responsável por “atos criminosos” e o rei da Noruega culpado por financiar ONGs etc. O fecho de ouro fica por conta do deputado Vilson Covatti (PP-RS) olhando diretamente para a câmera: “Lá no Rio Grande do Sul, no que depender de mim, para demarcar área […] só se passar por cima do meu cadáver”, ele proclama.
O narrador Carelli chama a reunião na Câmara de “circo” – apodo merecido, mas pouco esclarecedor. Adjetivações desse teor pouco contribuem para entender melhor o “inimigo”. O nó da questão talvez seja esse – a falta de aptidão de Carelli para lidar com os antagonistas dos índios do Brasil, proprietários rurais e seus representantes, aos quais ele se opõem de forma veemente. Com isso, o viés de Martírio resulta unilateral, e o filme perde força.
É essa inaptidão de Carelli, inclusive, que o distancia de Rithy Panh, a quem ele cita no final de Martírio (conforme mencionado no primeiro post desta série). A citação, porém, está incompleta. No filme, é apresentada assim: “mais do que criar, filmar é ‘estar com’, de corpo e alma… Tomar deliberadamente partido por acreditar que nada é imutável”. Mas, na verdade, a frase prossegue e a versão completa é essa: “mais do que criar, filmar é ‘estar com’, de corpo e alma… Tomar deliberadamente partido por acreditar que nada é imutável e que sempre pode surgir, em algum lugar, uma espécie de graça: a dignidade” (itálico por minha conta) – complemento que torna a referência a Panh mais reveladora do que a versão truncada.
Panh busca algo a que Carelli dá pouco valor. A continuação do trecho reproduzido acima esclarece: “O que busco é orientar a reflexão sobre o aspecto mental deste crime massivo [referência aos cerca de dois milhões de mortos durante o regime liderado pelo Khmer Vermelho, no Camboja]. Limitei meu trabalho aos feitos e à vida cotidiana. Quero que meu olhar se foque na maneira com que o criminoso concebe seus atos mais simples.”
Quando realizou S21: A máquina de morte do Khmer Vermelho (2003), Panh avisou aos antigos funcionários do centro de detenção e extermínio de Phnom Penh, capital do Camboja, que “o filme não era nem um tribunal nem uma tribuna política. Que, enquanto cineasta, não posso nem julgar, nem perdoar, nem apagar as faltas dos culpados. Que se trata da memória, do destino humano. Que eu não era neutro e que não estava do lado deles.”
Panh é claro: “O cinema não pode ser uma prova para condenar alguém em face à justiça. Deve-se permanecer nos limites da sétima arte.”
A citação incompleta, feita no final de Martírio, encobre uma divergência. Em Carelli, ao contrário do que ocorre em Panh, há duas vocações simultâneas entre as quais ele oscila – a militância e o cinema. Isso, quando a primeira não se sobrepõem à segunda, como ocorre algumas vezes.
Carelli reafirma sua convicção no poder transformador da imagem quando volta, em 2014, ao acampamento de retomada Pyelito Kue, no município de Iguatemi (MS), onde os guarani-kaiowá ocuparam a sede da fazenda construída em cima da antiga aldeia. Depois de ouvir os relatos sobre os ataques a tiros que vinham sofrendo (“Passava bala por cima da gente por todo lado […] Vimos tudo acontecer com nossos olhos. Todos nós vimos eles. A Polícia Federal disse que precisava de prova, mas a gente não tinha máquina pra fotografar.”), de ver as marcas das balas e ter notícia de que os acampados receberam um ultimato dos pistoleiros, Carelli deixa uma câmera com os índios. Iniciativa que paradoxalmente atesta um dos limites de seu trabalho de cineasta militante não-índio – por definição incapaz de estar sempre presente apto a gravar o que acontece.
A última sequência de Martírio, gravada pelos guarani-kaiowá de Pyelito Kue, 5 dias após receberem a câmera de Carelli, é o registro com imagens oscilantes, à distância, do ataque de pistoleiros à comunidade. Misturado ao som do tiroteio, ouve-se o vozerio agitado de índias e índios: […] “Eles estão atirando! Cuidado! Cuidado! Meu Deus! […] Por favor, muito cuidado, ou vão levar um tiro! Estão atirando ali! […] Vamos filmar daqui! […] Querem nos amedrontar soltando fogos! […] Olha ele vindo lá com a arma na mão. […] Cuidado, eles vão atirar!”
“Depois deste ataque, outros 25 se deram em outros acampamentos, com mortos e feridos”, a narração informa. Martírio termina com uma série de perguntas. A última é: “Como crescerão essas crianças que vivem o terror imposto aos acampamentos de retomada?” As imagens do ataque tampouco são conclusivas. O desfecho do conflito entre os guarani-kaiowá e os proprietários rurais é previsível. À luz do tratamento dado aos índios não cabe otimismo. Ainda assim, Carelli mantém a esperança.
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Não previa que este comentário sobre Martírio fosse se estender por 5 posts, a partir de 1 de dezembro, ao longo de três semanas. Considerando o valor do filme, espero ter contado com a indulgência das leitoras e leitores. Mudarei de assunto a partir de 5/1/2017, após o recesso de fim de ano que começa amanhã (22/12).
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Termino este último post do ano lembrando da informação, divulgada no final de novembro, de que após 30 anos de atividade o Vídeo nas Aldeias está ameaçado de acabar. A se confirmar a notícia, estaremos diante do atestado de um fracasso – nosso, da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura e da Ancine. Considerando o que já realizaram, tanto Carelli pessoalmente, quanto o Video nas Aldeias, deveriam receber todo o apoio necessário para continuarem seu trabalho. Sem isso, só nos restará a desesperança. (Fim)
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As citações de Rith Panh feitas acima provém do artigo “Sou um agrimensor de memórias” e da entrevista “Meu projeto excede o de um cineasta”, textos reproduzidos no catálogo “O cinema de Rithy Panh, Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2013, disponível para download aqui.
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