No Muro de Berlim pintado em 1989, o beijo de Leonid Brejnev e Erich Honecker: “Meu Deus, ajudai-me a sobreviver a esse amor letal” FOTO DE JOACHIM THUM_ARTE DE DIMITRI VRUBEL
9 de novembro de 1989 e eu
Lembranças do dia em que a avenida Karl Marx ficou engarrafada pela primeira vez e as prateleiras se encheram de chocolates
Tim Apmann | Edição 38, Novembro 2009
Minha mãe nasceu na Prússia Oriental, em 1939, dois meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, e meu pai, na Pomerânia, um ano antes. São regiões que pertenceram à Alemanha, mas dela foram desmembradas no final do conflito.
Nos seis primeiros anos de vida da minha mãe morreram perto de 6 milhões de poloneses e 20 milhões de cidadãos da União Soviética. Com o fim da guerra, uma parte da Prússia Oriental ficou com a União Soviética e outra com a Polônia, enquanto a Pomerânia foi entregue em boa parte à Polônia, ficando o restante com a Alemanha. Os quase 10 milhões de alemães dessas duas regiões foram expulsos de suas casas.
Assim como a vida dos poloneses e russos foi um pesadelo durante a ocupação nazista, também a vida dos alemães nos territórios ocupados pelos exércitos soviéticos e poloneses tomou rumos sombrios.
Lembro-me do relato, feito por meu pai, a respeito da expulsão de sua família de casa, numa véspera de Natal, com pouco mais que a roupa do corpo e um mínimo de bagagem na mão, rumo a um destino desconhecido. Fazia 20 graus abaixo de zero quando eles se puseram em marcha com o objetivo de chegar à zona soviética da Alemanha. Sempre me pareceu assombroso que tivessem sobrevivido àquelas caminhadas sem fim, dia e noite, atravessando cidades e aldeias em ruínas e cobertas de gelo. Milhões não sobreviveram.
Minha mãe também tinha histórias para contar. Da última noite que passou em Königsberg, a capital da Prússia Oriental (uma cidade do tamanho da atual Santos) já totalmente em ruínas, ela se lembrava de vultos entre os escombros, arrancando pedaços de carne dos cavalos que jaziam nas ruas. Só sobreviveu devido ao nascimento da sua terceira irmã: toda mulher com quatro filhos pequenos tinha autorização para embarcar num dos últimos trens que ainda sairia da cidade. Com essa autorização concedida à minha avó, ela chegou à Saxônia.
Como aconteceu a tantos milhões de pessoas deslocadas pela guerra, foi assim que as famílias de meus pais recomeçaram a vida no que viria a ser a República Democrática Alemã, a RDA, ocupada pela União Soviética.
O reinício da vida foi de privações absolutas. Mas, depois de alguns anos, a população passou a ter, novamente, comida o suficiente. E o país foi se desenvolvendo.
Dadas as circunstâncias, os mais jovens abraçaram cordialmente a ideia oficial do governo — o socialismo pareceu a resposta lógica e luminosa ao que viera imediatamente antes. Todo o poder nas mãos dos trabalhadores e camponeses! Cada um ganhando de acordo com o seu trabalho! Mocidade alemã, para frente! Construa uma pátria que exprima a vontade do seu povo pela liberdade e igualdade!
Meus pais se conheceram, no início dos anos 60, numa pequena faculdade de belas-artes no litoral báltico. Basicamente, não tinham nada contra o país em que viviam, apenas possuíam uma certeza: os filhos que viessem a ter jamais se alistariam nas Forças Armadas, fossem quais fossem as penalidades por descumprirem as obrigações militares.
Embora a reconstrução de imóveis se intensificasse, a perspectiva de um jovem casal encontrar um apartamento na Berlim Oriental era pequena até os anos 70. Quando meus pais conseguiram um pequeno apartamento num bairro operário foi uma festa. O banheiro, com apenas o vaso sanitário, era externo. A cozinha tinha só uma pequena pia, com água fria, e servia de dormitório para um dos dois filhos — no caso, eu. Mas era um apartamento independente, coisa rara.
Por lei, todo prédio novo era obrigado a alocar 3% de seu orçamento para a decoração de suas paredes externas. Como minha mãe tinha estudado pintura mural na escola de Belas-Artes, coube a ela dedicar-se a essa tarefa. Segundo a orientação do regime, a arte mural deveria exprimir a felicidade das pessoas que tinham a sorte de viver na parte socialista da Alemanha. Poderia também retratar a miséria dos que viviam na parte capitalista da Alemanha — cujo governo era manipulado pelos nazistas e pelos imperialistas americanos — onde não existia o direito ao emprego, à educação ou à habitação. Como eles sobreviviam, só Deus sabia!
A construção do muro erguido para manter inviolável a Berlim socialista coincidiu com o meu nascimento (em 1962) e o do meu irmão (três anos depois). Ela também levou meus pais a dar nomes americanos aos dois filhos — Tim e Tom. Se na Alemanha de hoje você conhecer alguma mulher de prenome Mandy, pode ter certeza de que ela é originária da antiga Alemanha Oriental.
Tom e eu entendíamos que o muro, erguido a não mais de dez minutos a pé de onde morávamos, era necessário para manter os nazistas no Ocidente. Era óbvio que os nazistas estavam se preparando para ocupar o nosso país a qualquer momento e acabar com o nosso regime progressista e socialista. Só não entendíamos por que não podíamos, nós, dar um pulo do outro lado e ver como era um país cheio de nazistas. Tom e eu daríamos qualquer coisa só para ter uma oportunidade de ver esse lugar misterioso atrás do Muro de Berlim, tão perto e ao mesmo tempo tão distante.
Quando perguntávamos por que os berlinenses ocidentais não vinham todos para o nosso lado, onde havia trabalho, educação e sistema de saúde gratuito para todos, meus pais se entreolhavam. E então respondiam de forma enigmática: “Tenho certeza que eles sabem por que não querem viver no nosso lado.” Era óbvio que evitavam o assunto.
No início dos anos 70, durante quatro inesquecíveis dias de um feriadão de Páscoa, o Muro se entreabriu. Era a terceira vez desde a separação física dos dois mundos que se permitiu que famílias ocidentais visitassem seus parentes do nosso lado oriental. Pela primeira vez, a visita era permitida com carro. Recebemos reiterados avisos nas escolas para não nos deixarmos enganar: talvez os ocidentais chegassem com aparência de ricos, mas seria somente aparência. Lembro que não entendi bem o que a professora queria dizer: parecer rico sem ser rico. Achei estranho.
E eles chegaram. Foi uma loucura. De um dia para outro as nossas ruas se encheram de carros, a avenida Karl Marx ficou engarrafada. Nem o nosso governo tinha carros assim tão chiques. Como os meus pais não eram originários de Berlim, não recebemos a visita de nenhum ocidental.
Passada a Páscoa, fui trocar confidências com meu melhor amigo, Uwe Loschert, o Loschi. Ele tinha um tio no lado ocidental, que trabalhava numa fábrica de eletrodomésticos. Sabíamos que a classe trabalhadora do Ocidente era oprimida. Só que esse tio do Loschi morava num apartamento de dois quartos e tinha um carro enorme. Ninguém que conhecíamos tinha carro. Ele já tinha viajado várias vezes para a Itália e a Espanha. Quando veio visitar a família de Loschi, na famosa Páscoa, trouxe de presente bananas, chocolate e café — mercadorias que, caso aparecessem nas nossas lojas, seriam caríssimas. O tio claramente não sofria de fome e nem parecia oprimido. A definição de oprimido precisava ser refeita.
Infelizmente, meus pais não respondiam a contento às nossas perguntas. Preferiam não confundir a cabeça dos filhos além do necessário. Já bastava nos proibirem de participar dos jogos militares na escola.
A concepção artística de minha mãe não se ajustava à orientação de pintar camponesas felizes ordenhando vacas socialistas. Ela mesma tinha tirado leite de vacas desde os 7 anos da idade e sabia que era um trabalho extremamente duro. Nada que fizesse uma camponesa sorrir em beatitude, mesmo sabendo estar construindo o socialismo.
Os meus pais tinham tido contato com outros estilos de arte, por meio de visitas a galerias de Praga, Varsóvia e Cracóvia, mais influenciadas pela arte decadente da burguesia ocidental. Uma arte difícil de entender… muito estranha… mas estranhamente legal… que respirava um ar de liberdade.
Esse sentimento de liberdade desapareceu em agosto de 1968, com a ocupação de Praga pelos exércitos da União Soviética e dos países do Pacto de Varsóvia, entre eles a República Democrática Alemã. A partir daí, a vida ficou cada vez mais difícil para os meus pais artistas.
Em 1973, meu pais fizeram duas malas e nos disseram que iríamos todos esquiar nas montanhas Tatra, na Polônia, durante as férias escolares de inverno. Com passaportes falsos, aportamos no centro de refugiados em Marienfelde, um subúrbio de Berlim Ocidental, para onde uma parte dos amigos da família já tinha fugido. A intenção era ficarmos definitivamente por lá.
Desde o início, achei a riqueza de Berlim Ocidental impressionante. Igualmente impressionante era o fato de meus novos colegas da escola não perceberem a abundância na qual viviam. Ostentavam a riqueza para se destacarem dos outros. No outro lado do muro simplesmente não se tinham tantos produtos para desenvolver esse tipo de atitude.
Vivíamos numa cidade de porte médio, Braunschweig, onde terminei o Ensino Médio. Estudei antropologia, história e literatura polonesa na universidade de Frankfurt am Main. Ao mesmo tempo, comecei a pintar. Meu irmão Tom já havia concluído a faculdade de escultura e artes gráficas, também em Braunschweig.
Em agosto de 1989, pouco antes de concluir meu mestrado, trabalhei como professor de alemão na Irlanda. Éramos uma equipe de professores bem diversificada, a começar por Ella. De estatura miúda, Ella tinha fugido de Berlim para Viena acondicionada numa bolsa enorme, como bagagem. Jamais retornara a Berlim Oriental e sentia saudades infinitas. Poucos ocidentais a entendiam: por que ter saudades de uma ignóbil ditadura, na qual o nível de vida era mais baixo? Ella tinha dificuldade de explicar que a vida tem outros aspectos, dos quais se pode sentir falta.
Na minha viagem de volta para a Alemanha, passei por Londres. Foi nos jornais ingleses que li pela primeira vez que algo estranho ocorrera na Europa Central. Um grande número de refugiados da Alemanha Oriental tinha chegado à Áustria, aproveitando o fato de que os soldados húngaros quase não patrulhavam mais a fronteira para o Ocidente.
Não entendi.
Sabia que, desde o início dos anos 80, a RDA tinha mudado bastante. As pessoas falavam publicamente sobre temas que antes ficavam restritos a quatro paredes, em família. Na Berlim Oriental surgiram grupos de rock e companhias de teatro underground que faziam shows em apartamentos ou igrejas.
Mas centenas de pessoas fugindo para o Ocidente! Isso tinha outra dimensão.
Cada vez que eu saía do quarto para assistir ao noticiário na tevê havia mais novidades. As manifestações nas ruas da Alemanha Oriental começaram em Leipzig, com umas poucas dezenas de pessoas. Mas a cada semana o numero de manifestantes duplicava, e elas se espalhavam por cidades menores do nordeste da RDA, até então completamente pacatas.
Era um mistério e um milagre ao mesmo tempo.
Mergulhei de novo no meu trabalho, continuando a escrever a minha tese sobre artistas malditos da Alemanha Oriental.
Para o dia 13 de novembro os meus pais tinham planejado uma exposição no centro de Berlim Ocidental. A galeria onde se realizaria a mostra ficava num espaçoso escritório de advocacia voltado para a clientela do meio artístico. Inúmeros artistas que fugiram da Alemanha Oriental até hoje se lembram com grande gratidão desse grupo de advogados. Muitas carreiras de artistas recém-chegados do Leste começaram na galeria desse escritório da Uhlandstraße.
Meu pai exporia esculturas metálicas, minha mãe mostraria pinturas, meu irmão compareceria com esculturas, pinturas e gravuras, e eu, desenhos e pinturas. Uma mostra familiar, em suma.
No dia 9 de novembro o sol nasceu pouco depois das 7 horas. Era um dia lindo. Sol em novembro, naquele parte do mundo, é mais uma exceção do que regra. Meu pai, Tom e eu tínhamos alugado uma caminhonete para transportar as obras de seu estúdio, em Braunschweig, até Berlim.
Berlim Ocidental ficava encravada, como uma ilha, dentro do território da Alemanha comunista. Pegamos a estrada bem cedo e usamos uma das três rodovias que serviam de corredor de acesso a essa ilha. Sintonizamos uma emissora no rádio do carro para ouvir alguma musiquinha. Só que, no lugar de música, havia a transmissão de um debate entre cidadãos de uma cidade do Leste e funcionários do Partido da Unidade Socialista local. Os moradores usavam palavras fortes. Os oficiais se mantinham na defensiva. Essa transmissão numa estação de rádio da Alemanha Oriental seria inimaginável poucas semanas antes. “E quando vão abrir o muro?”, perguntou um dos participantes do debate. Ele pronunciou a palavra “muro”, que nunca fora usada na imprensa oficial da RDA! A expressão obrigatória para a fronteira entre as duas partes da Alemanha sempre fora “barreira contra o fascismo”.
Prosseguimos incrédulos a bordo da nossa caminhonete rumo a Berlim Ocidental. Lá chegando, tudo parecia normal. Uma vez no centro da cidade, descarregamos as pesadas esculturas do meu pai e depois levamos todas as obras para o 5º andar do prédio dos advogados. Isso nos fez esquecer a intrigante entrevista ouvida no rádio do carro.
Enquanto meu pai voltava a Braunsch-weig para devolver a caminhonete, Tom e eu continuamos em Berlim Ocidental com um Renault. Visitamos Ella e a conversa girou em torno dos acontecimentos recentes. Dado que não apenas a Hungria, mas também a Tchecoslováquia tinha entreaberto as comportas para quem quisesse fugir para a Alemanha Ocidental, nos perguntávamos se alguém ainda ficaria no Leste Europeu. Sim, ficariam provavelmente todos aqueles participantes de uma grande passeata em Berlim Oriental, dias antes, que pediam a demissão do governo com palavras de ordem como “Nós ficamos aqui!” e “Nós somos o povo!”.
Chegamos ao anoitecer na casa do amigo que nos abrigaria, Andreas. Ele era, como nós, filho de pais que tinham escapado para Berlim Oriental quando ainda era criança. Ligamos a tevê para assistir ao noticiário, por volta das sete da noite, de uma emissora da RDA. O locutor discorria sobre uma reunião da cúpula do partido, que discutiria mudanças futuras. Era difícil saber o que havia por trás da linguagem obscura do locutor, mas mesmo assim continuamos sintonizados. A reunião de cúpula transcorria no Palácio da República, situado a apenas quinze minutos do apartamento de Andreas, mas num outro país, num outro mundo.
Após um intervalo, surgiu na tela o rosto do político mais graduado do Partido da Unidade Socialista da capital, Günther Schabowski. Ele se pôs a ler o texto da folha de papel que trazia nas mãos. Suas palavras foram mais ou menos estas: “Por decisão da presidência do partido, a partir da meia-noite de hoje, todos os cidadãos da República Democrática Alemã podem viajar para qualquer país de sua escolha. Os vistos devem ser solicitados em qualquer delegacia de polícia.”
A realidade simplesmente acontece.
Olhei para Tom e Andreas. Eles me olharam com o mesmo semblante de confusão e espanto. Mesmo sem falar, nós três pensamos as mesmas coisas: Schabowski falou mesmo isso?
Nossa reação seguinte foi: deve ser uma tática deles. Não seria a primeira vez que enganavam a população.
Logo depois brotou um pensamento: e se fosse mesmo verdade?
Meu Deus! Imagina só!
Uma coisa era verdade. Milhões de pessoas dos dois lados da fronteira haviam assistido ao mesmo anúncio na televisão.
Espera aí! Caramba! Tem cerveja na geladeira? Temos que festejar!
E olha só, se todo mundo ouviu isso… todo mundo vai querer ir até o muro hoje à noite… quem sabe daqui a pouco! Ou vai ver que é tudo mentira, que nada vai acontecer. Mas uma coisa é certa: vai ter um milhão de pessoas dos dois lados! Vai ter um festão, pelo menos. Depressa, vamos até o Portão de Brandemburgo! Agora!
O Portão de Brandemburgo é uma antiga porta de alfândega que data da época em que as cidades ainda eram entidades políticas autônomas. Com a construção do muro o monumental portal acabou aprisionado na barreira que dividiu a cidade em duas. Na verdade, o Muro de Berlim nunca foi um muro só. Eram dois muros entre os quais havia uma faixa. A faixa da morte. Quem tentava fugir para Berlim Ocidental, e conseguia atravessar o primeiro muro, desembocava nessa faixa. Ali, tal qual um coelho encurralado, ficava exposto à mira dos soldados da RDA postados nas torres de vigilância. A cada 100 metros havia uma.
O Portão de Brandemburgo ocupava um trecho dessa faixa da morte, entre os dois muros. O meu pai ainda se lembrava de quando atravessava o monumento de bicicleta, antes da separação física de Berlim. Como cresci com o portal já inacessível, fincado na faixa da morte, me parecia inimaginável algum dia poder passar por seu histórico arco. Acho que todo jovem da RDA algum dia sonhou em passar pelo Portão de Brandemburgo.
Quando saímos da casa de Andreas, a noite estava gelada. Como de hábito, naquela noite de quase inverno, poucos carros circulavam pelas ruas e avenidas: pedestres, menos ainda. O Portão de Brandemburgo ficava no final da avenida 17 de Junho, uma das mais largas da cidade. Foi ali que notei uma pequena diferença: ainda não era um trânsito intenso, mas havia bem mais carros, às oito da noite, naquela avenida sem saída, que acabava no muro.
Estacionamos sem problemas e fomos a pé até a barreira de ferro que indicava a linha da divisa. O muro ficava dentro do território da Alemanha Oriental. Estava um frio danado. Além de nós, havia umas cinquenta ou 100 pessoas por ali, todos provavelmente se perguntando se aconteceria algo. Ficamos parados diante da barreira, olhando o muro cheio de pichações, com o Portão de Brandemburgo emergindo ao fundo. Era um monumento silencioso na noite, sua parte inferior iluminada pelas luzes da fronteira, a parte de cima desaparecendo no escuro.
De repente, ouvi o grito de Tom: “Olha lá! Têm gente subindo o muro! Caramba! Vamos também, agora!”
Foi tudo muito rápido. Não consegui impedir que meu irmão passasse pela barreira de ferro nem pará-lo antes que subisse o muro. E tampouco recordo como aconteceu, mas pouco depois eu também estava lá em cima. Me lembro de não ter gostado nem um pouco. Bastou uma olhada para o lado oriental: os soldados das torres de controle se mantinham na escuridão.
Éramos talvez dez pessoas em cima do muro, que tinha perto de 3 metros de altura e, naquele trecho, mais de 1 metro de largura. Não era fácil de subir, mas uma vez lá em cima dava até para andar sobre ele.
Enquanto isso, mais carros chegavam. Vista de cima do muro, a avenida 17 de Junho parecia uma cobra de luzes que se aproximava de nós. Não pensei em mais nada. Bati com a sola do sapato para testar a solidez do muro e comecei a andar sobre ele de um lado para o outro. Girava a minha cabeça para ver Berlim Ocidental e em seguida olhava para a Berlim do Leste. Quantas vezes imaginei como deveria ser fantástico poder fazer isso! Naquele momento, no entanto, a minha cabeça parecia vazia.
Cada vez mais pessoas pediam ajuda para subir. Confesso que os ajudei por motivos matemáticos. Achei que, com apenas dez ou vinte pessoas em cima do muro, os soldados da RDA atirariam e tudo não passaria de um problema político. Os familiares das vítimas receberiam uma indenização, seus nomes seriam listados no jornal, talvez até virássemos nomes de rua ou praça. Praça Tim e Tom! Já matar 100 ou mais pessoas seria mais grave, difícil de ser esquecido na Berlim do fim dos anos 80. Por isso, ajudei o maior número de pessoas, o mais rápido possível, a subir o muro.
Em determinado momento, os soldados do Leste recorreram a uma mangueira de bombeiro para tentar nos desalojar daqueles 3 metros de altura. Mas o jato de água não chegava até lá muito forte. Mesmo assim, com temperaturas beirando o zero, a água nos congelava. Ensopados, perdemos um pouco do entusiasmo inicial. Resolvemos voltar para casa para trocarmos de roupa. Vários outros fizeram o mesmo.
Chegamos em dez minutos. Ótimo! Calor! Chuveiro quente! Roupa seca! Ligamos a televisão certos de que apareceríamos no noticiário. Afinal, tínhamos sido os primeiros a escalar o muro do lado de cá. Mas na TV a história já era outra. Em cima do muro, em frente ao Portão de Brandemburgo, havia não 100, mas milhares de pessoas. Já não se via mais o chão, de tanta gente. Tudo isso em menos de meia hora.
Aos poucos, os carros de transmissão da emissora Berlim Livre foram se posicionando ao longo de vários pontos da fronteira. Era previsível que o ponto de controle na Bornholmer Strasse seria o local mais procurado por quem quisesse sair da RDA. Ali, a fronteira passava ao lado do bairro mais rebelde de Berlim Oriental, o Prenzlauer Berg, e uma massa já havia se formado em frente ao posto de controle aos gritos de “Abram a porta!” e “Nós somos o povo!”. Os soldados foram pegos de surpresa pelo turbilhão. Vimos quando eles entreabriram a barreira e a torrente de gente invadiu o bairro de Wedding, do lado ocidental. As pessoas riam ou choravam.
Um locutor que falava da Kurfürstendamm, a principal avenida de Berlim Ocidental, dizia: “Aqui chegam mais e mais pessoas dos dois lados de Berlim, a pé e de carro. Está começando a maior festa que Berlim já conheceu.” Via-se um mar de carros buzinando e multidões dançando. Voltamos ao nosso carro e seguimos para o centro.
“Olha! Um carro da RDA!”, apontei. Abrimos a janela e perguntamos:
— Como foi a passagem na fronteira? Correu tudo bem?
— Sim! Foi ótimo. Esperamos uma hora, mas depois não tinha como, e nos deixaram passar. Como podemos chegar à Kurfürstendamm?
Eles eram tecnicamente da mesma cidade, mas não tinham ideia de onde estavam. Berlim Ocidental era território desconhecido para a massa de recém-chegados.
— Sigam o nosso carro. E sejam bem-vindos!
Cada vez mais carros da marca Trabant (o Fusca da Alemanha Oriental) surgiam à nossa volta. Saudávamos cada um com um buzinaço que era imediatamente correspondido. Apesar de a noite estar gélida, parecia que Berlim havia se tornado uma cidade mediterrânea de noite morna. Já não era mais possível chegar perto do centro da cidade — o engarrafamento de 3 quilômetros parou a Kurfürstendamm.
Abandonamos o carro e continuamos a pé. Muitos motoristas deixaram abertas as portas de seus veículos e colocaram o som em volume alto. Havia quem dançasse. Houve muitos bares que anunciaram cerveja de graça para essa noite. Ocidentais compravam bebida e comida para os trânsfugas do Leste. Desconhecidos perguntavam por endereços, para tentar achar familiares e amigos.
Um grito e abraços — alguém encontrou alguém por acaso na multidão.
Havia um telão no cruzamento da Kurfürstendamm com a Joachimstaler, coisa bastante moderna para a época, e que transmitia os acontecimentos. Antes da meia-noite, quase todos os pontos de controle tinham sido abertos para a passagem livre entre o Leste e o Ocidente.
Num espaço de poucas horas o nosso mundo tinha mudado de concreto para ar livre. Eu já não sentia mais o frio da noite.
Pegamos o carro novamente e fomos até a primeira estação de trem do lado ocidental da fronteira, a Lehrter Bahnhof. Junto conosco chegou um trem suburbano vindo de Berlim Oriental. Todos os vagões estavam lotados e iluminados. Janelas abertas, os passageiros vindos do Leste cantando. Nós também. Bem-vindos.
Seguimos a pé até o posto de controle da Invalidenstrasse. Não era mais um posto de controle, mas um posto fora de controle. Dezenas de pessoas cruzavam de um lado para o outro, repetidas vezes, inebriadas pela experiência de atravessar sem mostrar documentos nem esvaziar bolsas e malas. Nem serem presas ou mortas pela polícia.
Será que Tom, Andreas e eu deveríamos mesmo entrar em Berlim Oriental? Tudo parecia bem seguro, mas será que passada meia hora a situação seria a mesma? O que faremos se eles fecharem a fronteira de novo e ainda estivermos do lado de lá?
Um passo pequeno, um passo grande.
Demos uns passos e já estávamos no lado oriental de Berlim.
Me dei conta, ali no posto de controle da Invalidenstrasse, de como era mínima a distância entre os dois lados de Berlim — só alguns passos. Que estranho!
Mesmo depois de tantos anos, me senti em casa naquelas ruas tão mal iluminadas, se comparadas ao lado ocidental, e sem painéis de publicidade cintilantes. Do cruzamento da Friedrichstrasse com a Unter den Linden podíamos ver o Portão de Brandemburgo de novo. Só que desta vez sob a ótica de quem está do lado oriental. Tinha alguma confusão entre manifestantes e polícia ao lado do monumento. Decidimos retornar a Berlim Ocidental pelo caminho mais curto, o lendário Checkpoint Charlie de tantos romances e filmes de espionagem. Reservado para estrangeiros e soldados aliados, era o posto de controle mais célebre da Guerra Fria. Sempre fora vetado para alemães, daí o sabor redobrado em atravessá-lo agora. Os policiais de plantão pareciam fantoches.
Já eram quase três horas da madrugada quando emergimos novamente em Berlim Ocidental. Levaríamos pelo menos uma hora a pé até chegarmos ao local onde tínhamos deixado o carro. Nos demos conta novamente do frio e pedimos carona. Naquela noite, todo mundo deu carona para todo mundo.
Ao chegarmos em casa, telefonamos para os nossos pais, que tinham viajado para uma cidade do sul da Alemanha, próxima à França. Como eram quatro horas da manhã, eles estavam dormindo.
— O muro está aberto! — gritamos ao telefone.
— Meninos! Que palhaçada e essa? — queriam saber.
Compreensivelmente levaram algum tempo até acreditarem na nossa narrativa.
Meus pais voltaram para Berlim no dia seguinte a duras penas, pois todas as rodovias estavam lotadas. Meio mundo estava a caminho de Berlim. Na cidade era quase impossível entrar nas lojas, de tão cheias. Os supermercados estavam abarrotados de recém-chegados da Alemanha Oriental. Os metrôs ficaram entupidos e algumas estações entraram em colapso. A partir do meio-dia tornou-se impossível transitar a pé nos arredores da Kurfürstendamm.
Três dias depois, nosso vernissage virou uma festa com família e amigos vindos das partes mais distantes da Alemanha Oriental. Todo mundo veio. Era quase impossível ver as obras entre a multidão.
Um ano depois, o sentimento de festa tinha murchado. Eu trabalhava como professor em Liverpool, na Inglaterra, e acompanhava a galopante curva de desemprego da antiga Alemanha Oriental. Para um país que sempre olhara para o desemprego como sendo um problema do capitalismo, o despertar foi duro e o êxodo, maciço.
Mesmo assim, cheguei à conclusão de que eu poderia voltar a viver na Alemanha Oriental. Já que não havia mais fronteiras, eu viajaria a qualquer hora, visitaria quem quisesse e voltaria para casa de novo. Foi essa percepção que me fez ver o quanto algo havia relaxado dentro de mim. A tensão que sempre viveu comigo, e na qual sequer reparava, fora embora. O muro, que dividiu as nossas vidas e famílias, tinha desaparecido. Tive o imenso privilégio de ver como o concreto havia se transformado em ar livre.
Existe uma única foto minha dessa noite de 9 de novembro, estampada em duas publicações alemãs (a foto está na pág.6). Não estou propriamente numa posição de estrela, mas sou eu. No centro da foto está um jovem de pé, braços para o alto — deve ser um dos que subiram primeiro no muro e que meu irmão avistou logo que chegamos na barreira de ferro. Eu sou o cara agachado à direita, de óculos. O Tom pode ser visto de costas, bumbum erguido — sabemos que é ele pela jaqueta amarela, fosforescente. A foto consta da capa de um livro didático para estudantes irlandeses. Seu título: Understanding the Present, “Compreendendo o presente”.