As duas Ferrari Testa Rossa da escuderia Lagartixa foram longe. Uma venceu a corrida da inauguração de Brasília, com o sopro de Juan Manuel Fangio. A outra disputa meio século depois o recorde mundial de preço em leilões de automóveis FOTO: ÁLBUM DE FAMÍLIA
A corrida que Fangio venceu sem correr
Vida e obra da Ferrari que correu no Brasil e agora dispara no circuito internacional dos leilões de carros clássicos
Jean-Louis de Lacerda Soares | Edição 53, Fevereiro 2011
Nunca imaginei que a história da minha Ferrari 1958 pudesse interessar a mais do que dois ou três amigos durante um jantar. Mas, pensando bem, acho que de fato ela é, no mínimo, original e com um desfecho que supera qualquer fantasia.
Com ela participei da corrida que fez parte dos festejos da inauguração de Brasília, em abril de 1960. Ou melhor, embora disputado nas avenidas de um Plano Piloto ainda em obras, o Grande Prêmio Presidente Juscelino Kubitschek era seu principal evento. Houve desfiles, convidados e autoridades do mundo todo e intensa cobertura nacional e internacional.
Na véspera, de casaca, participei do jantar de abertura oferecido pelo presidente no Hotel Brasília Palace, do qual o argentino Juan Manuel Fangio era o convidado de honra. Correndo de Alfa Romeo, Maserati, Ferrari e Mercedes-Benz, Fangio tinha acumulado a essa altura cinco títulos de campeão mundial. E eu, com 29 anos, tinha uns dois anos de experiência em provas oficiais no Brasil. Com a Ferrari Testa Rossa que pilotaria no dia seguinte na nova capital, eu tinha no currículo algumas vitórias, como o primeiro lugar no circuito de Pirajuí, no interior de São Paulo, e na Barra da Tijuca, um bairro à época ainda em construção no Rio de Janeiro.
Tive a sorte de me sentarem ao lado de Fangio. Ele, muito simpático, me contou sobre corridas, riscos que enfrentou, lealdade e deslealdade de adversários. Eu, embevecido, só ouvia. Terminado o jantar, ele sugeriu prosseguirmos a conversa no bar do hotel. E foi ali que ele me disse, com a maior naturalidade: “Se você quiser ganhar amanhã, eu te digo como.”
Ouvindo-o com a atenção que um aluno prestaria a uma aula particular de física dada por Einstein, só consegui dizer que sim, claro. Fangio continuou: “Tenha calma, deixe os outros passarem você com a afobação da largada e da briga pela ponta. Após dez ou doze voltas, ninguém terá mais freio, com aquelas retas enormes.”
Aqui, cabe uma explicação. Naquele tempo não havia freios a disco. Os freios eram a tambor e, quando esquentavam, perdiam eficácia. Tinham de ser poupados ao máximo. Fiz o que ele mandou. Apavorado, mas fiz. Fui deixando todo mundo passar e ficando para trás. E vendo meu pessoal no boxe fazer sinais de que não estava entendendo nada.
Até que, como Fangio previra, os outros começaram a frear cada vez mais longe das curvas. Alguns, quando tentavam frear mais perto, saíam da pista. E eu fui passando, passando, descendo uma reta, freando, passando para outra faixa, sem o menor esforço ou risco e… ganhei! Ou melhor, o Fangio ganhou.
Fui chamado ao palanque pelo presidente Kubitschek, que me agradeceu (Por quê?!) e me premiou com um relógio. Fui fotografado, entrevistado, abraçado, uma loucura. Os jornais e a tevê deram enorme destaque à notícia.
Para coroar, houve uma cerimônia nos estúdios da Rádio Nacional em que Fangio me entregou a taça! Ele me abraçou e disse: “Você tem mãos de profissional.” Me senti como um soldado raso a quem Napoleão, depois de uma batalha, tivesse dito: “Você é um bravo!”
Na hora não me dei conta de que, além de pentacampeão de automobilismo, ele era também um pentacampeão de gentileza. Assim foi a corrida, vencida por quem não participou dela, num circuito sem qualquer característica que o torne remotamente merecedor do nome.
Agora vamos ao desfecho, que é o destino daquela Ferrari 250 Testa Rossa , uma história que nem mesmo o maior dos mentirosos teria coragem de inventar. Tive, na minha escuderia, duas Testa Rossa. Quando parei de correr em 1962, vendi a que me restava por 2 mil dólares – equivalentes, em dinheiro de hoje, a pouco mais de 14 mil dólares. Logo depois, um rapaz a partiu em duas contra um eucalipto em Interlagos. O motor foi parar num barco. O chassi e o resto da carroceria, num canto de garagem.
Normalmente a história terminaria aqui. Mas não com a Ferrari. Alguns anos depois, recebi o telefonema de um senhor, que disse estar à minha procura fazia tempo. Ele havia comprado o motor, o chassi, o que havia sobrado da carroceria e recuperado o carro. E me perguntou se eu tinha alguma prova ou documentação que identificasse a Ferrari como sendo uma Testa Rossa, pois sua suspensão traseira era diferente. Sim, respondi, era uma suspensão De Dion, instalada a meu pedido, por ser mais adequada aos circuitos brasileiros.
Eu lhe disse que tinha fotos e textos de jornais confirmando o pedigree. Como eu iria a Paris dali a pouco, levaria comigo a papelada. O interessado era gerente do Berkeley, um centenário hotel de cinco estrelas em Knightsbridge, Londres, e me agradeceu efusivamente (logo veremos que tinha razões para isso). Convidou-me para ir a Londres, para conversarmos.
Aceitei. Lá chegando fui instalado numa suíte do tamanho de um aeroporto, e fomos jantar. Ele contou que iria tentar certificar a Ferrari como Testa Rossa – quer dizer, “Cabeça Vermelha”, porque vermelha era a cor com que a Ferrari passara a pintar a tampa do motor – e explicou que, uma semana antes, uma delas fora vendida pela Christie’s, em Monte Carlo, por 800 mil dólares! Se conseguisse…
Passados quase cinquenta anos do Grande Prêmio de Brasília, os jornais de 2009 noticiaram a venda de uma Testa Rossa igual à minha no leilão “Leggenda e Passione”, em Maranello, o berço da Ferrari no norte da Itália. Fora arrematada por 11 milhões e 400 mil dólares, batendo todos os recordes mundiais em leilões de automóveis. E isso, sublinhou na época o leiloeiro, “em meio a uma das piores recessões econômicas desta era”.
Tratava-se de uma Ferrari , mesmo modelo que passei adiante com deságio de 81 400% nos anos 60, e do qual apenas 21 exemplares foram produzidos pela fábrica italiana na época em que os pilotos amadores começavam a ceder lugar nas pistas aos corredores profissionais, contratados por grandes marcas e apoiados por patrocínios estratosféricos. Era “um carro de Fórmula 1 com para-lamas”, segundo seu designer Sergio Scaglietti, autor de várias outras carrocerias clássicas da Ferrari.
O nome Pontoon Fender vinha dos para-lamas dianteiros criados por Scaglietti, salientes como flutuadores de hidroavião. Pelos critérios da RM Auctions, o leiloeiro de automóveis para colecionadores que vendeu a Testa Rossa recordista, trata-se de “um dos mais belos desenhos automotivos de todos os tempos”.
Desde o ano passado, contudo, vejo que no catálogo da mesma RM a frase acima descreve a Testa Rossa número 0738/TR – a “minha” Ferrari.
Ela voltou a ser amarela. Não traz mais no capô o emblema da Escuderia Lagartixa (pronuncia-se “largatisha”, segundo o catálogo). Lagartixa foi meu apelido de corredor, antes que eu passasse a me inscrever nas provas com o nome de batismo. Parece nova em folha, depois de rodar várias décadas como Ferrari GTO cupê. Recuperou a carroceria de Scaglietti, refeita à mão nas oficinas do restaurador David Cottingham, da Inglaterra. “Não dá para superestimar o quão original e intata esta Ferrari se encontrava antes da restauração”, ressalta o catálogo da RM.
A 0738/TR foi a leilão no ano passado em Monterey, na Califórnia. Recebeu uma oferta de 10 milhões e 700 mil dólares. Mas a RM se recusou a bater o martelo por menos de 12 milhões de dólares.
Realismo mágico é isso aí.
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