
Em uma palestra, Taís Araujo disse: “No Brasil, a cor do meu filho é a cor que faz com que as pessoas mudem de calçada, escondam suas bolsas e blindem seus carros” CRÉDITO: BOB WOLFENSON_2023
Taís Araujo, a imparável
Como a atriz mastigou o racismo – na teledramaturgia, nas revistas femininas e na publicidade
João Batista Jr. | Edição 198, Março 2023
Depois de um dia de gravação interpretando Alícia, a patricinha mimada da novela A Favorita, a atriz Taís Araujo deixou os estúdios da Globo rumo à sua casa. Durante o trajeto, voltou a pensar num tema que não saía de sua cabeça: a entrevista do autor Manoel Carlos, publicada pela colunista Regina Rito, no jornal O Dia, na qual ele dizia que a próxima Helena, nome de todas as protagonistas de suas novelas, poderia ser interpretada por uma atriz negra, pela primeira vez. Taís Araujo estava feliz em A Favorita, a novela das 9 naquele ano de 2008, embora sua personagem não fizesse parte do núcleo central. Interpretar Helena – personagem que já estivera na pele de atrizes como Vera Fischer, Maitê Proença e Regina Duarte – seria um salto na sua carreira e, por ser negra, emplacaria um ineditismo marcante na teledramaturgia brasileira.
Ainda dentro do carro, Araujo ligou para Manoel Carlos se oferecendo para trabalhar na novela que entraria no ar no segundo semestre de 2009. A conversa correu bem, mas não durou mais do que cinco minutos. Para convencer o autor, a atriz disse que sua experiência de vida estava à altura de Helena, uma personagem de classe média, moradora do Leblon e sempre envolvida com candentes questões de família. Araujo, ela própria moradora do Leblon, lembrou que já passara por um casamento e um divórcio. Na época, ela estava separada do ator Lázaro Ramos, mas a separação durou apenas oitos meses. Manoel Carlos escutou e não disse nem sim, nem não.
Cinco meses depois, quando A Favorita terminou, Araujo pensou em realizar o sonho de aprender francês. Alugou um apartamento em Paris, na Rua Saint-Guillaume, no 7º arrondissement. Fechou contrato de seis meses. Ainda na primeira semana na capital francesa, subiu a escadaria da Basílica de Sacré Coeur, em Montmartre, e fez uma promessa para Santa Teresinha do Menino Jesus: se fosse escalada para o papel de Helena, entregaria rosas vermelhas, ali na escadaria, a quem estivesse passando. Em menos de quinze dias, seu celular tocou. Era Manoel Carlos. Taís Araujo acabara de ganhar o papel. Encerrou o contrato de aluguel, distribuiu rosas em Montmartre e pegou o avião de volta para o Brasil, pronta para encarnar Helena na novela Viver a Vida.
Era um sonho. Virou um pesadelo.
A primeira Helena negra era glamorosa. Modelo de sucesso internacional, linda e rica, ela se apaixona por um homem mais velho (José Mayer) e passa a lidar com a antipatia da ex-mulher (Lilia Cabral) e uma das filhas (Alinne Moraes) do novo companheiro. A filha, por coincidência, é também modelo e rivaliza com Helena nas passarelas. Ciumento que só, o galã exige que Helena encerre a carreira para seguir a relação. Ela topa, mas acaba sendo traída por ele. Além disso, ela se recusa a compartilhar seu carro com a enteada, que acaba sofrendo um acidente que a deixa tetraplégica.
Ao contrário das outras Helenas de Manoel Carlos, que nas novelas Por Amor e Laços de Família viveram experiências redentoras na relação entre mãe e filha, a Helena negra era uma mulher independente e, no começo da trama, nem tinha filhos. “Em Viver a Vida, minha sensação é de que Helena tinha de ter sido a personagem da Lilia Cabral, que era brigada com a filha e, depois do acidente de carro, acaba fazendo um acerto de contas com o passado”, diz Araujo. O fato é que o folhetim do horário nobre, que pela primeira vez tinha uma atriz negra como protagonista, não emplacou.
O clima no set de filmagem era péssimo. As críticas negativas, frequentes. A jornalista Gabriela Germano, no portal Terra, disse que “o dramalhão tem cansado telespectadores” e especulou que “até Roberto Carlos não estaria gostando de ver sua canção A Mulher que Eu Amo como pano de fundo do chororô de Helena”. A colunista Patrícia Kogut, de O Globo, reclamou da falta de química entre o casal protagonista. A coisa degringolou tanto que a Globo escondia Helena no material de divulgação. No jornal O Estado de S. Paulo, a jornalista Keila Jimenez registrou: “Nem sinal de Taís Araujo, a Helena da vez, no material promocional de Viver a Vida no estande da Globo na MIPTV, feira de audiovisual que acontece em Cannes.”
Taís Araujo foi perdendo a autoconfiança. “Eu lia as páginas do roteiro sem enxergar nada. Eu não conseguia encontrar a personagem, entrei em desespero”, recorda. Pediu então ajuda à amiga Aracy Balabanian, que não estava no elenco de Viver a Vida. Acostumada a acordar ao meio-dia, Balabanian recebia Araujo em sua casa na Gávea todos os dias às nove da manhã para as duas passarem o texto. Nos estúdios, Araujo era apoiada por Alinne Moraes e Marcelo Valle. “Foram apenas eles que me deram amparo. Durante essa novela, foi a primeira e única vez na vida em que tomei um porre e, no outro dia, não consegui ir trabalhar.”
Mas, aos poucos, uma coisa notável começou a acontecer.
Filha de uma professora negra e um economista branco, Taís Bianca Gama de Araujo Ramos nasceu no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro. Caçula de duas meninas, tinha 5 anos quando alguém no colégio lhe disse que ela era negra. Ao voltar para casa, intrigada com o comentário, teve o seguinte diálogo:
– Mãe, eu sou negra?
– Sim. Por que está me perguntando isso?
– Porque me chamaram de negra na escola.
– Tenha muito orgulho disso – ensinou a mãe. – Se você não fosse negra não seria minha filha.
Quando a menina começou a perguntar aos parentes e amigos se gostavam de ser negros, a avó paterna, de origem austríaca, chamou a atenção da mãe, pois achava cedo demais para introduzir assuntos dessa natureza na educação da criança. Na escola, ela tinha um único colega negro, chamado Rafael.
Quando tinha 10 anos, sua família se mudou para um condomínio de alto padrão na Barra da Tijuca. Tinha anfiteatro, duas piscinas, quadra poliesportiva e quatro blocos com 36 apartamentos cada. A família Araujo era a única negra do novo endereço. No Anglo-Americano, o colégio bilíngue em que estudavam, Taís Araujo e a irmã Cláudia também não tinham colegas negros. Só na sua adolescência a escola recebeu o filho de um diplomata angolano e uma menina negra que, por coincidência, caiu na sala dela. Foi quando escutou um colega, branco, lhe dizer: “E aí, negralhaça, outra aqui, não! A gente aceita só você.”
Desde pequena, Araujo amava seus cabelos cacheados. Gostava de mantê-los longos, até a altura da cintura. Já mais crescida, passou a frequentar um salão de beleza especializado em penteados afro, onde se deu bem com a cabeleireira. Quando a profissional foi trabalhar no salão que pertencia à modelo Monique Evans, em Botafogo, Araujo foi junto. Assim que chegou acompanhada da mãe, ainda vestindo o uniforme do colégio, Evans encantou-se com a menina de 13 anos. “Você precisa fazer um book e ser modelo”, disse a loira, com os cabelos enrolados em bobes gigantes. Araujo viu graça na ideia e, em suas palavras, ficou “perturbando” a mãe.
Na época, ela e a irmã faziam curso de etiqueta. “Minha mãe, talvez por ser uma emergente que se mudou para a Barra, nos colocou em cursos de boas maneiras”, relembra. Araujo gostava mais das aulas de postura, onde aprendia a andar como modelo. Quando Monique Evans saiu-se com a dica de que deveria fazer um book, ficou muito entusiasmada.
Seu primeiro emprego foi na antiga agência de modelos Class, então uma das mais relevantes do mercado. Ali, começou uma rotina que perduraria por anos: sua mãe, Mercedes, a acompanhava em todos os testes e gravações, coisa que faria até que a filha atingisse a maioridade. Como modelo comercial, a adolescente magra e espevitada foi contratada para campanhas de tevê do Guaraná Antarctica e da Mesbla, a loja de departamentos que foi à falência em 1999. Também estampou capas dos cadernos da Tilibra. Em paralelo, fez cursos de teatro com a atriz Kátia D’Angelo e integrou a Companhia dos Bananas, ao lado de colegas como André Gonçalves e Carolina Dieckmann.
Em 1994, quando Araujo completou 16 anos, D’Angelo falou aos seus pais sobre uma novela nova em gestação na TV Manchete. Tocaia Grande estava formando o elenco. No dia do teste, havia uma grande mesa para leitura do texto baseado no livro homônimo de Jorge Amado. “Eu me vi sentada ao lado de medalhões como Rosamaria Murtinho, Ângela Leal e Roberto Bonfim”, diz. Em menos de uma semana, assinou o primeiro contrato de sua vida – até que a cor da pele apareceu. A mãe se recorda: “Antes da novela ir ao ar, a minha filha tomou a primeira porrada da vida dela.”
Taís Araujo ensaiou, provou figurino e decorou textos ao longo de quatro meses para viver a personagem Ressu, uma das filhas da protagonista. Faltando um mês para a estreia, o diretor Régis Cardoso chamou a atriz e a mãe em seu escritório. “Não quero choro nem nada, mas você não pode fazer a Ressu porque ela vai contracenar com um personagem racista”, disse ele, segundo a lembrança da mãe. (Régis Cardoso morreu em 2005, aos 70 anos.) Era uma decisão estranha. Afinal, nos quatro meses de ensaio, nunca surgira qualquer sinal de que havia algum embate sobre racismo na trama. Araujo tem uma explicação. “Quando eles se deram conta de que uma negra estaria com um papel de destaque na novela, resolveram me tirar. Foi uma puxadona de tapete”, diz. Ressu foi interpretada pela atriz Giovanna Antonelli. Araujo se manteve no elenco, só que interpretando Bernarda, a irmã de Ressu, que tinha menos relevância na novela.
Dez meses depois, quando Tocaia Grande estava terminando, ela soube que o diretor Walter Avancini faria uma novela sobre Xica da Silva, imortalizada pela atriz e cantora Zezé Motta em 1976, com o filme de Cacá Diegues. Araujo entrou em contato com Avancini em busca de algum papel. Avancini falou que não tinha nada para ela. Mas, uma semana depois, Araujo estava hospedada com a mãe em uma pousada de Maricá, onde ficava a cidade cenográfica de Tocaia Grande, quando Avancini ligou com um convite inusitado: queria lhe oferecer o papel da própria Xica da Silva. De cara, Araujo recusou. Não queria ficar nua na tevê. Avancini não aceitou a negativa, pegou seu carro e foi até Maricá.
Nesse meio-tempo, a adolescente ligou para o pai e falou do convite. Se surpreendeu com a reação: “Na vida, minha filha, o importante é ter dignidade.” Ela também quis saber a opinião de Ângela Leal, que apoiou. Quando chegou a Maricá, Avancini já encontrou Taís Araujo e a mãe mais inclinadas a dizerem sim. Ele pediu que elas não assistissem ao filme nem lessem nada sobre Xica da Silva para não criarem uma ideia preconcebida a respeito do texto de Walcyr Carrasco. A história girava em torno de uma escrava inteligente, atrevida e vingativa que se tornou rainha em pleno século xviii.
A adolescente ainda virgem (“Eu era invisível na Barra da Tijuca, sequer beijei na boca de alguém do condomínio”) interpretaria uma personagem conhecida pela sensualidade. Avancini capitalizou em cima da pouca idade da atriz. “O Avancini era genial. Muito do que sei de comprometimento e disciplina, aprendi com ele. Mas era extremamente abusivo.” No segundo dia de gravação de Xica da Silva, o diretor virou para a protagonista no meio do set e, sem qualquer preâmbulo ou contexto, disse: “Você é a maior decepção da minha vida.” Araujo saiu humilhada – e pediu à mãe que dissesse que não iria mais fazer o papel.
Avancini pediu desculpas, as gravações foram em frente, mas a relação entre a atriz e o diretor só piorou. Nos onze meses de trabalho, por inúmeras vezes, ele se dirigia a Araujo e dizia: “Eu tenho ódio de você, porque olho para sua cara e não sei o que você está pensando!” Era uma estratégia abusiva do diretor, que gostava de criar tensão com o objetivo de levar o artista a fazer atuações mais viscerais. Muitas vezes, ele pediu para Araujo olhar no rosto de todos os colegas de elenco para depois dizer: “Ninguém gosta de você, todos queriam fazer o seu papel.”
A novela estreara em setembro, nove semanas antes de Taís Araujo completar 18 anos – até que Avancini, sem o conhecimento da atriz ou de seus pais, resolveu explorar ao máximo a chegada de sua maioridade. A TV Manchete fez uma ação publicitária vendendo nudez e erotismo. Um anúncio veiculado na Folha de S.Paulo, no qual Araujo aparecia na capa da Manchete cobrindo os seios com um tecido branco, ia direto ao ponto: “VOCÊ VAI VER TUDO!! Agora não há mais limites para XICA DA SILVA. Fotos exclusivas revelam toda a beleza de Taís Araujo, a nova rainha das novelas brasileiras.”
A edição da Manchete reproduzida no anúncio da Folha trazia fotos extraídas de takes da filmagem da novela – que deveriam ter ficado apenas em poder da tevê. As imagens mostravam a personagem de Araujo tomando banho de cachoeira em Diamantina, Minas Gerais, e exibiam seus seios e suas nádegas. Quando foi feita essa filmagem, ela ainda tinha 17 anos. As fotos foram propositalmente vazadas para outros veículos de imprensa. “A Tatá me ligava de madrugada chorando, dizendo que estava possessa de escutar grosserias do Avancini e de fazer filmagens sem roupa”, conta a amiga Dalce Maria Souto Lima, jornalista que à época atuava na Editora Bloch.
Araujo sentiu-se desrespeitada. Afinal, era a sua cara e o seu corpo, e ela não teve nem o direito de saber com antecedência. As fotos sensuais estavam em outdoors e chamadas na tevê. Jornais e revistas estampavam o material que deveria ficar restrito à direção da novela. Ela então ligou para Avancini para entender o que tinha acontecido. A resposta, segundo ela relembra, veio em tom de deboche. “Jura? Não tenho culpa. Se quiser, processa as revistas.” Avancini morreu em 2001, aos 66 anos.
O clima piorou quando a atriz se recusou a gravar uma cena em que simulava sexo anal. A negativa não caiu bem. Araujo foi criticada publicamente pelo diretor e pelo autor da novela. “Seria ingênuo pensar que uma mulher negra, no garimpo, atraísse o homem mais rico do momento sem passar pela cama”, disse Walcyr Carrasco, em reportagem publicada pela Folha de S.Paulo, na época. “Taís não tem currículo para falar sobre criação e direção”, disse Avancini ao Estado de S. Paulo. Na mesma reportagem do Estadão, a atriz disse que não temia ser boicotada em sua carreira por ter coragem de se recusar a fazer determinado tipo de cena.
Taís Araujo desfrutava de um privilégio. Filha de uma família de classe média alta, já tinha visitado a Disneylândia duas vezes, estudava em colégio caro e, sobretudo, não era arrimo de família, não dependia do trabalho para viver. Podia tomar algumas posições mesmo correndo o risco de ser demitida. Tinha receio de ganhar fama de mimada ou difícil, o que poderia arruinar sua carreira artística, mas tentava colocar alguns limites. Na época, dizia, inclusive, que papéis de atrizes negras não deveriam ser restritos às sinopses de Casa-Grande & Senzala. “Não acho inviável uma protagonista negra numa história que não fale de escravos”, disse, numa entrevista.
Mesmo sendo protagonista de uma novela que ficou onze meses no ar, cravando picos de 18 pontos no Ibope e deixando a Manchete em segundo lugar na audiência, Taís Araujo nunca foi convidada para estrelar uma campanha publicitária. Exceto pelas revistas da própria Editora Bloch, do mesmo grupo da TV Manchete, ela só apareceu em duas capas. Na Interview, publicada pela Editora Azul, ela surgiu com os braços cruzados escondendo os seios e a seguinte chamada: “Taís Araujo faz 18 anos e tira a roupa em Xica da Silva.” Fez a reportagem por falta de outros convites. “Ninguém me obrigou a fazer essa foto, mas é claro que ali eu cedi às pressões”, diz a atriz.
A segunda capa em que apareceu era de uma revista segmentada. O jornalista Aroldo Macedo, diante da carência de mulheres e homens pretos nas capas, decidiu criar uma publicação dedicada à população negra. A Raça Brasil, veiculada pela Editora Símbolo, teve seu primeiro exemplar rodado no mês de setembro de 1996, mesma data da estreia de Xica da Silva. A edição de número 3 trouxe Taís Araujo ao lado de Zezé Motta. Ambas aparecem sorrindo, com uma novidade singular: não há qualquer menção ao tom de pele ou à sexualidade. O título: A força de Xica da Silva.
Com o fim da novela da Manchete e o rompimento com Avancini, Araujo foi convidada por Carlos Manga para fazer o remake de Anjo Mau, originalmente escrita por Cassiano Gabus Mendes. Foi sua estreia na Globo. A trama foi ao ar entre setembro de 1997 e março de 1998. A personagem de Araujo não estava no núcleo principal, mas fez sucesso, tanto que a capa do CD de músicas internacionais da novela estampava o seu rosto. Naquela época, sem redes sociais, os artistas faturavam aparecendo em eventos – a inauguração de uma loja, um desfile de moda. Enquanto suas contemporâneas Carolina Dieckmann, Alessandra Negrini, Luana Piovani, Ana Paula Arósio e Fernanda Rodrigues não tinham agenda livre nos fins de semana, Araujo não ganhava um centavo com eventos.
Quando recebia um convite, não havia cachê. “Como ofereciam passagem e hospedagem, as pessoas achavam que era a nossa obrigação aparecer”, conta Mercedes, a mãe da atriz. “Quase como se estivessem nos fazendo um favor.” Durante a exibição de Anjo Mau, Araujo foi convidada para estampar a capa de duas revistas, a Boa Forma e a Carícia, ambas então publicadas pela mesma Editora Azul. Os títulos: “A beleza negra que conquistou o país” e “Preconceito é uma droga”. Nos dois casos, ela ilustrava a capa das edições de fevereiro. “Não dá para deixar de registrar que, depois de nos ignorar durante todo o resto do ano, escolher uma negra para a edição do mês de Carnaval é também sinal de racismo”, avalia Araujo.
No segundo semestre de 1998, a atriz entrou no ar com Meu Bem Querer, novela de Ricardo Linhares. Mais uma vez, nenhuma capa de revista, nenhum convite para fazer campanha publicitária ou aparecer em eventos. Em 2001, fez Porto dos Milagres, de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares. De novo, foi ignorada pelas revistas e pelo mercado publicitário. No ano seguinte, esteve na minissérie de época O Quinto dos Infernos, de Carlos Lombardi. Outra vez, não recebeu convite algum. Só em 2004, quando finalmente fez Da Cor do Pecado, de João Emanuel Carneiro, a primeira novela da Globo com uma protagonista negra sem que o roteiro fosse sobre escravidão, as coisas começaram a mudar – um pouco. “Não tínhamos uma segunda opção. A Taís era quem queríamos para realizar esse marco histórico”, diz a diretora Denise Saraceni.
Estrela de um sucesso global, Araujo começou a ser notada pelas revistas. “Só que as capas eram explicitamente racistas, como se quisessem justificar a presença de uma negra em um espaço tão nobre”, diz Marcelo Sebá, à época empresário da atriz. “E tinha mais: quase sempre era exigido que ela fizesse fotos mostrando o corpo, tudo bem sexualizado.” Em fevereiro de 2004, a edição da IstoÉ Gente mostrou Araujo usando um maiô laranja cavado até a altura do umbigo com a seguinte manchete: “A musa negra da elite branca.”
As revistas de celebridades – como Contigo!, da Editora Abril, e Quem Acontece, da Globo – continuaram ignorando a atriz, mas a Marie Claire, também da Editora Globo, finalmente lhe deu uma capa na edição de maio de 2004, quando faltavam três meses para o fim da novela. Com cabelo preso rente à cabeça, a atriz apareceu com a manchete “Talento além do preconceito”. No mesmo período, Araujo foi convidada para sua primeira campanha publicitária, promovendo a marca Grendha, da empresa de calçados Grendene. “As minhas colegas de elenco tinham feito, sei lá, vinte propagandas durante a novela”, diz a atriz.
Entre as marcas de grife, que costumam emprestar suas roupas para os artistas numa estratégia de marketing, o cerco se manteve. “Com a Taís, nenhuma assessoria de moda nos atendia. Sempre tinha uma desculpa”, lembra Sebá. O empresário avalia que, em alguns casos, brigar ou ficar calado não resolve a questão. A única saída seria ela própria comprar suas peças de roupa – e se posicionar no mercado como uma mulher antenada para as tendências de moda. Nas viagens ao exterior, Sebá voltava carregado de sacolas da Marc Jacobs e da Balenciaga.
Aos poucos, Taís Araujo foi conquistando espaço. Em fevereiro de 2007, estampou a primeira capa de Claudia, da Editora Abril, a principal revista feminina do país que chegou a ter uma tiragem de 390 mil exemplares. Estava ao lado da loira Adriane Galisteu. A chamada: “Paulista x Carioca – Adriane Galisteu e Taís Araujo mostram o estilo de se vestir de cada cidade.” Com a presença de Galisteu, evitava-se assim a “ousadia” de ter apenas uma mulher preta na capa. (Na década de 1990, em seus tempos de modelo comercial, Araujo apareceu nas capas da revista Carinho, da Editora Bloch, e Capricho, da Editora Abril. Em ambas, ao lado de uma mulher loira.)
O caminho, porém, não estava liberado. Em agosto de 2008, a capa da revista Criativa, da Editora Globo, estampou uma Taís Araujo estranha. “Eu peguei a revista na banca e, quando bati o olho, senti que tinha algo diferente”, lembra o jornalista Antonio Trigo, seu amigo e assessor de imprensa há quinze anos. Quando levou a revista para a atriz, ela disparou: “Esse rosto não é meu!” A equipe de Criativa havia tomado a iniciativa de afinar o nariz de Araujo. Na época, ela foi convidada para fazer a capa da RG Vogue, da Carta Editorial. Fez um ensaio fotográfico, mas não foi aprovado. Fez um segundo, também não deu certo. Só no terceiro as fotos emplacaram. Ouviu que, nos ensaios anteriores, seu cabelo não estava bom.
Até que, em meio a tudo isso, Taís Araujo começou o que seria o grande salto – e virou a fracassada Helena de Viver a Vida.
Enquanto era espinafrada pelo público e pela crítica, a atriz passou a perceber que algo importante estava acontecendo. Em conversa com o caracterizador Fernando Torquatto, ela decidira que sua Helena teria cabelos crespos. O autor da novela, Manoel Carlos, aprovou a ideia. Era uma novidade para a própria atriz. Até então, exceto por duas personagens que usavam tranças, todas as outras cinco que Araujo interpretara na Globo tinham o cabelo alisado. O resultado é que a coroa de Helena virou febre no país entre as mulheres pretas.
O caderno de televisão do Estadão informou: “Viver a Vida também anda fazendo sucesso nos salões. Os cachos esvoaçantes de Taís Araujo são o penteado que mais chama a atenção das telespectadoras que ligam na Globo.” A coluna Outro Canal, da Folha de S.Paulo, publicou uma reportagem cujo título era o seguinte: Taís e Seus Cachos Mudam a História do Negro na tv. Araujo sentiu o impacto. “Com Helena, eu fui parada na rua por mulheres negras agradecendo por estarem se vendo na tevê.”
A repercussão não foi ofuscada nem com a cena exibida na noite de 16 de novembro de 2009, na semana do Dia da Consciência Negra. Helena pede desculpas à personagem de Lilia Cabral e, no calor da discussão, ajoelha-se diante dela, recebendo em troca uma bofetada no rosto. A cena foi comparada à humilhação de uma mucama numa novela ambientada no Leblon em pleno século XXI. No site Observatório da Imprensa, as acadêmicas Gleiciele Oliveira e Shagaly Araujo escreveram que “muitos celebravam o fato de, pela primeira vez, uma atriz negra interpretar o papel principal” na Globo, mas concluíam que a personagem era “um presente de grego para qualquer atriz, uma vez que protagoniza uma trama que parece legitimar estereótipos sobre a figura do negro cristalizados no imaginário da população brasileira”.
O fato é que, com o sucesso de sua figura emoldurada pelo cabelo solto, Araujo finalmente passou a receber convites para campanhas publicitárias e capas de revistas. Nessa época, fechou um contrato com a L’Oréal, em vigor até hoje, para vender cremes e xampus para cabelos cacheados. Nos oito meses em que a novela esteve no ar, ela apareceu na capa de praticamente todas as revistas brasileiras – exceto uma. “Ela me procurava com frequência falando que a Nova era um espaço a ser ocupado. Estava coberta de razão”, conta Marco Antonio de Biaggi, cabeleireiro responsável por pentear as estrelas de 254 capas da Nova, que pertencia à Editora Abril. Biaggi dizia às diretoras da revista que precisavam fazer capas com Araujo e outras atrizes negras, mas sempre ouvia a desculpa de que “aquele não era o momento” ou “vamos esperar as vendas de tal publicação com ela na capa para saber se não encalhou”. (Em 2010, finalmente a atriz foi capa da Nova. De cabelo crespo, sorriso largo e maiô cheio de recortes, apareceu sob o título: “Taís Araujo é um luxo.” Foi a primeira mulher negra na capa em 37 anos da revista no Brasil.)
Alguns anos depois, quando já era figura manjada nas capas de todas as revistas e garota-propaganda de margarina, sapato, maquiagem, leite, aspirina, água, banco etc. etc., Araujo passou a concentrar suas preocupações com a falta de representatividade na imprensa. Ela e a atriz Camila Pitanga eram as únicas negras com espaço nas revistas femininas. (A atriz Zezé Motta, inesquecível no papel de Xica da Silva e dona de uma carreira de sucesso por décadas, recebeu o primeiro convite para fazer uma propaganda em 2022, aos 78 anos.)
Para combater essa falta de representatividade, Araujo pediu ao assessor Antonio Trigo que agendasse uma visita às principais redações do país. Em novembro de 2017, ela passou dois dias em São Paulo visitando as editoras Abril, Condé Nast, Glamurama, Globo e Trip. Nas visitas, observou in loco o que intuía: uma ausência profunda de jornalistas negros nas redações. A maioria das revistas não tinha uma única repórter preta na equipe.
Dias depois, Araujo mandou uma proposta às diretoras de redação mais importantes do país. No e-mail, em tom cordial e amigável, registrava a ausência de negros e negras nas redações e propunha realizar encontros para um debate sobre a situação. Sugeria levar Djamila Ribeiro, mestre em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo, e Adriana Barbosa, empreendedora social – ambas negras. Propôs até o local (L’Hotel, onde se hospedava em São Paulo) e os dias (terças e quintas). E terminava com um amistoso “Simbora! Beijos e muito obrigada, Taís”.
Araujo recebeu mensagens em privado de algumas destinatárias parabenizando pela iniciativa. Mas, por falta de adesão, nenhum encontro aconteceu.
A experiência de fazer Helena, uma frustração como atriz e um sucesso como estrela negra, mudou a cabeça de Taís Araujo. Ela decidiu que, daí em diante, todas as suas personagens seriam pensadas a partir da negritude. “Teve uma tendência minha de embranquecer Helena em termos de interpretação e de histórico. O meu núcleo era composto por irmã, pai e mãe, com os quais ela não tinha tanto contato”, recorda.
Em Cheias de Charme, seu primeiro trabalho na tevê depois de Viver a Vida, ao lado das atrizes Leandra Leal e Isabelle Drummond, Araujo fez um trio de empregadas domésticas que se tornam cantoras de sucesso depois que viraliza um vídeo em que as três satirizam as patroas. Tendo como pano de fundo a ascensão das classes C, D e E no segundo governo Lula, a novela faz um estrondoso sucesso. “A Globo tinha receio de que eu fosse protagonista depois do fracasso de Viver a Vida, tanto que inicialmente o papel foi oferecido para a Camila Pitanga. Ao término de Cheias de Charme, abracei a diretora Denise Saraceni e choramos emocionadas. Deu tudo certo.”
Em seu projeto seguinte, agora já mãe de João Vicente e Maria Antônia, Araujo manteve a linha de valorizar a negritude. Ela e o marido, Lázaro Ramos, protagonizaram a série humorística Mister Brau, cujo roteiro retratava um casal de artistas de Madureira, subúrbio do Rio, que ascendera na vida e vivia agora nos nichos opulentos da Barra da Tijuca. “Ali era o auge do orgulho negro”, diz ela. Em uma das cenas, sua personagem se serviria em uma quentinha de alumínio. Ela achou caricato e inverossímil. “A personagem não nega as suas raízes, mas gosta de usufruir as conquistas obtidas por sua ascensão social.” Mister Brau foi ao ar entre 2015 e 2018.
Mas, quando as coisas pareciam estar se transformando, o Brasil já tinha deixado de ser o mesmo. A crise econômica no governo do PT, o avanço da Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff e a formação de milícias digitais de extrema direita começaram a turvar o ambiente. Como mulher, negra e artista, Araujo tornou-se um alvo preferencial.
Na noite de 31 de outubro de 2015, a atriz foi vítima de crime de ódio em seu perfil no Facebook. Uma foto em que aparecia com blusa preta e cabelo cacheado recebeu mais de setenta comentários racistas, coisa que nunca havia acontecido antes. Os comentários incluíam barbaridades como “me empresta teu cabelo para eu lavar louça” e “te pago com banana”. Araujo prestou queixa na Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática e uma investigação resultou na prisão de quatro pessoas.[1]
Com sua voz contra o racismo e pela diversidade, ela começou a ter a vida observada com lupa. Em maio de 2017, ao se recusar a comer um nhoque de abóbora no programa Mais Você, de Ana Maria Braga, ganhou fama de antipática e grosseira. “Eu só não como duas coisas na vida: abóbora, porque detesto, e lagosta, porque minha mãe de santo pede”, diz. A situação gerou muitos memes e piadas racistas e preconceituosas. Em junho, ganhou imagem de desaforada ao responder a Otaviano Costa, no Vídeo Show, qual era o estilo de cabelo que seu marido mais gostava. Ela respondeu: “Eu não sei, porque eu sempre me preocupei com o que eu gosto.”
Em novembro do mesmo ano, foi convidada para palestrar no TEDx São Paulo. O tema era “Como criar crianças dóceis em um país ácido”. O racismo era o pano de fundo. “No Brasil, a cor do meu filho é a cor que faz com que as pessoas mudem de calçada, escondam suas bolsas e blindem seus carros”, disse. Apesar da verdade elementar que a frase expressava, a atriz novamente virou alvo de uma maré montante da milícia digital extremista de direita. A coisa chegou à lista dos assuntos mais comentados do Twitter. Naquele dia, Araujo passeava de barco na Costa de Alagoas. “Até pensei em fazer um post daquela situação, da negra feliz curtindo a vida. Aí é que os racistas iriam se morder mesmo”, diz. Mas acabou ficando em silêncio.
Só piorou. Em 2018, Trigo, seu assessor de imprensa, recebeu e-mails e ligações com ameaças. “Uma ligação anônima dizia a cor da roupa que ela estava usando”, conta ele. Taís Araujo, dessa vez, não quis procurar a delegacia com receio de amplificar o assunto. Comunicou sobre as ameaças à Globo, que lhe ofereceu motorista e segurança. Ela recusou e decidiu se recolher. “Fiquei com medo de morrer. Tenho dois filhos pequenos. A minha vida e a do meu marido estavam em risco. E minha mãe me falou: ‘Eu não nasci para ser mãe de mártir.’”
Recolhida, não participou do movimento Ele Não, contra Bolsonaro, e evitou repercutir os desastres do governo. Por segurança, mas também para não dar corda a discussões inúteis. “Eu não discuto com quem não quer debater, não quer estudar. Veja o caso da Lei Rouanet. Existe um grande problema que tem de ser revisto, de modo que artistas populares recebam mais patrocínio de empresas. Mas as pessoas querem comprar uma ideia processada, como se fosse salsicha, de que essa lei não serve para nada. Por que discutir com quem não quer aprofundar uma discussão? Eu sou funcionária há 26 anos de uma empresa privada e me chamam de ‘mamateira’”, diz.
Em maio de 2019, Araujo e o marido remontaram no Rio de Janeiro a peça O Topo da Montanha, de Katori Hill, que narra uma conversa entre Martin Luther King Jr. e Camae, a camareira do hotel, na véspera do assassinato do líder negro, em 1968. O espetáculo fora apresentado em onze estados e atraíra um público enorme. Com o novo clima de intolerância no país, o casal decidiu fazer uma pequena mudança no texto. No final da peça, a camareira argumenta com Luther King que os negros precisam criar seus próprios espaços, em vez de ficar disputando os espaços dos brancos, e proclama: “Fodam-se os brancos!” Na adaptação, ficou apenas: “Fodam-se!”
Na eleição passada, quando foi votar num colégio na Barra da Tijuca no primeiro turno, Araujo foi hostilizada fora do mundo virtual pela primeira vez. Ela descreve a situação enxugando as lágrimas: “Estávamos eu, o Lázaro e um primo meu, que foi de segurança. Então um homem de meia-idade, que poderia ser o meu pai, começou a confusão. O clima era tenso por si só. O homem me disse que ‘a mamata iria acabar’. Eu disse que, se Deus quisesse, iria acabar mesmo. Daí ele começou a gritar ‘Lei Rouanet’. Eu respondi que trabalhava em uma empresa privada. Daí esse mesmo homem falou que o Lázaro havia empurrado uma mulher que estava de andador, uma mentira sem cabimento. Entramos no carro, essa pessoa subiu em uma moto e começou a nos xingar. Eu chorei muito. Eu estava vestida de branco, não de vermelho. Não fiz cara feia para quem vestia verde e amarelo. Cada um tem o direito de votar em quem quiser. Eu nunca tinha sido atacada ao vivo.” No segundo turno, ela contratou uma segurança profissional para acompanhá-la. Dessa vez, não houve agressão.
Em um período em que a Globo quase não mantém contratos de longa duração, Taís Araujo renovou com a emissora até 2025. Ela está no ar como jurada do reality musical The Masked Singer Brasil e vai protagonizar a série Reencarne, da Globoplay, que começa a ser gravada em abril. “Taís é uma expoente do seu tempo, uma mulher que não estabelece fronteira entre arte, política e vida”, elogia José Luiz Villamarim, diretor do núcleo de dramaturgia. “Ela é uma mulher que abre portas, não só para si como para tantas outras. Foi a primeira protagonista preta da Globo e sua Preta chegou fazendo história”, diz Natalia Grimberg, amiga e diretora em alusão à novela Cheias de Charme.
“Até pouco tempo, eu era a única negra protagonista de novelas, mas avançamos”, diz Araujo. De fato, pela primeira vez, os protagonistas das três principais novelas da Globo serão interpretadas por pessoas negras. Sheron Menezzes é estrela de Vai na Fé, atual novela das 7. Em março, o garoto Levi Asaf vai protagonizar Amor Perfeito, na faixa das 6. Em abril, Barbara Reis será a mocinha de Terra e Paixão, a nova trama das 9. (Laços de Família, veiculada em 2000, tinha apenas três atores negros num elenco de 49 artistas. Em Mulheres Apaixonadas, de 2003, era ainda pior: de 63 atores, só três eram negros – e uma das atrizes pretas vivia uma empregada doméstica.)
Claro que Taís Araujo é parte dessa mudança e não a principal alavanca. A grande guinada da Globo deu-se com a montagem do elenco de Segundo Sol, de João Emanuel Carneiro, de 2018. Ambientada em Salvador, onde 80% da população se declara negra ou parda, a novela tinha apenas brancos entre os seus três protagonistas: Giovanna Antonelli, Deborah Secco e Emílio Dantas. Os protestos foram sonoros. O Ministério Público do Trabalho do Rio notificou a Globo pela falta de negros e sugeriu catorze medidas para promover a inclusão. A União de Negras e Negros pela Igualdade (Unegro Brasil) ajuizou uma ação contra a emissora em Salvador. A Globo não mudou o núcleo central, mas foi aumentando o número de personagens e figurantes negros ao longo da novela.
“A Globo mudou muito, e para melhor, nos últimos anos”, avalia Joel Zito Araujo, diretor de cinema e autor do livro A Negação do Brasil: O Negro na Telenovela Brasileira. Essa mudança se deu em parte pela concorrência com as séries de streaming e pela pressão das redes sociais. “Os autores e atores mais jovens já têm uma outra educação e compreensão da questão racial. A nova geração de atores exige também maior protagonismo. Aquela cena da Helena negra ajoelhada levando um tapa na cara de uma branca nunca mais será aceitável. Mostrava uma intencionalidade para além da personagem, tinha uma perversão e humilhação contra a atriz.”
Lázaro Ramos, que compartilha com sua mulher a luta antirracista, concorda. Depois de lançar sua autobiografia Na Minha Pele, em 2017, o ator e diretor fez um documento sobre como fotografar e filmar um elenco negro e onde buscar roteiristas negros. Entregou o material à Globo. Depois, fez outro documento mostrando que a diversidade, além de tudo, rende audiência e gera receita. “O setor de responsabilidade social da Globo abraçou a causa”, diz ele. “A partir desse movimento, a empresa adquiriu um filtro especial para colocar nos refletores pensando nos atores negros.”
Examinando a Helena negra em retrospecto, Taís Araujo acha que todos ali foram vítimas da empulhação nacional segundo a qual o Brasil é uma democracia racial. “A culpa não foi minha. Ou não foi exclusivamente minha. Eu fui espinafrada e pensava que aquele era o fim da minha carreira. Todo mundo caiu na questão de tratar a personagem como branca, acreditando na democracia racial, de que somos todos iguais. Não é assim na rua, pois o Brasil é racista. Então ficou inverossímil. O erro ou ingenuidade minha, do Maneco [apelido do autor Manoel Carlos], do Jayme Monjardim e da Globo, é que caímos no mito da democracia racial. Olhamos como se o negro no Brasil tivesse o mesmo trânsito de um branco. Não tem.”
Formada em jornalismo, Araujo tem o desejo, já expresso à direção da Globo, de apresentar um programa de entrevistas e variedades nos moldes da apresentadora Oprah Winfrey, a maior estrela negra da tevê norte-americana. “Atrizes negras ocupando espaços em telenovelas virou uma realidade, mas esse lugar do apresentador de entretenimento ainda precisa ser mais bem explorado.” Também está em seus planos produzir uma série sobre Elza Soares. Três meses antes de falecer, a cantora pediu ao seu empresário, Pedro Loureiro, para encaminhar uma mensagem de WhatsApp para Araujo: “Você está em tudo, de um comercial para outro, de um programa para outro. Amo ver o seu rosto lindo tomando conta da tevê e da internet. É como me ver também: uma mulher poderosérrima. Meu, Deus, deu certo. Pedro, deu certo. Quando for, eu vou em paz.”
Taís Araujo está com 44 anos. É garota-propaganda de cinco grandes empresas. Um contrato anual com ela varia entre 1,5 e 2 milhões de reais. Mora com o marido e os dois filhos num edifício no Flamengo, com uma vista deslumbrante do Pão de Açúcar. Não aceita propostas de estrelar publicidade com as crianças. “Quando crescerem e, se quiserem, podem usar as redes. Mas eu, podendo, preservo.” Em seu último aniversário, quando completou 7 anos, em janeiro passado, Maria Antônia pediu um presente à mãe. Que postasse uma foto dela em sua conta no Instagram, com 12,7 milhões de seguidores. Araujo explicou que ainda não era a hora.
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_198 com o título “A imparável”.
[1] Em março de 2016, a Operação Cyberstalking prendeu Tiago Zanfolin Santos da Silva, na cidade de Brumado, na Bahia; Pedro Vitor Siqueira da Silva, em Sertãozinho, em São Paulo; Francisco Pereira da Silva Júnior, em Navegantes, em Santa Catarina; e William dos Santos Trisch, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, que, segundo sua mãe disse na época, sofria de transtornos mentais. Um quinto acusado, Gabriel Sampietri, de São José dos Pinhais, no Paraná, já estava preso desde o ano anterior, pelo crime de pedofilia. A investigação mostrou que as agressões partiram de integrantes de um grupo no Facebook chamado “QLC” (“Que loucura, cara”), criado em 2013.
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