Mangabeira Unger, no hotel, em Brasília: "Sou um homem sem charme. Sou de poucos sorrisos, não gosto de conversa pequena, sou naturalmente cerimonioso. Eu preciso aprender a ter charme." FOTO: ORLANDO BRITO_2007
A metamorfose
Para mudar o Brasil, Roberto Mangabeira Unger acredita ser necessário, primeiro, transformar a si mesmo para ficar completamente diferente do que sempre foi">Para mudar o Brasil, Roberto Mangabeira Unger acredita ser necessário, primeiro, transformar a si mesmo para ficar completamente diferente do que sempre foi
Consuelo Dieguez | Edição 11, Agosto 2007
“Sou um homem sem charme num país de charmosos. Isso é uma séria complicação. Sou de poucos sorrisos, não gosto de conversa pequena, sou naturalmente cerimonioso. Eu preciso aprender a ter charme.” A confissão veio acompanhada de uma gargalhada que parecia um espasmo, tal a força com que Roberto Mangabeira Unger sacudia o corpo inteiro. Logo em seguida, como se submisso a um severo comando interior, seu rosto readquiriu as feições graves, e a voz, o tom solene. “Descobri que, para ajudar a transformar o Brasil, em primeiro lugar tenho que transformar a mim mesmo. Uma transformação radical. Tenho que ser completamente diferente de como sou. E isso, para mim, é o aspecto mais interessante dessa empreitada.”
Eram 9 horas da noite em Brasília, mês de julho. Mangabeira estava no quarto de hotel onde se instalara, um mês antes, à espera da sua posse na Secretaria de Planejamento de Longo Prazo – a empreitada que lhe exige a metamorfose. A mudança, em certos aspectos, já parece estar em curso. Sua expressão estava menos tensa que nos dias que antecederam a entronização no cargo. A boca, antes severamente crispada, agora se entreabria em sorrisos suaves. O terno preto e grosso – que lhe conferia um ar de presbítero inclemente e contrastava com a secura e o calorão da capital – foi substituído por um mais levinho, cinza-claro.
Mais: apesar de ter pego no batente às 7 da manhã, Mangabeira estava eufórico. Sua fala ora lembrava os rompantes de um tribuno exaltado, ora um professor inebriado pelas próprias idéias. Embora o ambiente acanhado do quarto não se prestasse como cenário para sentenças históricas, e a peroração fosse endereçada a si mesmo, ele parecia discursar para multidões, para a eternidade: “Eu tenho que encontrar uma série de setores que permitam a construção de um novo consenso brasileiro. Para isso, eu tenho que submergir as minhas preferências, as minhas tendências, e tenho que fazer um trabalho coletivo. Eu tenho que encontrar meios-termos, tenho que falar pouco e ouvir muito”. Fez uma pausa dramática. E arrematou: “Enfim, eu tenho que fazer tudo contra a minha natureza”.
Naquela manhã, ele se encontrara com o comando da Aeronáutica, uma das áreas sensíveis do governo. Havia certo desconforto por parte dos oficiais presentes à reunião com o ministro encarregado de preparar o futuro. Afinal, o problema deles era imediato: o pandemônio aéreo. Assim, a primeira frase de Mangabeira foi no sentido de desarmar a má vontade dos militares. “Os senhores são o segundo e o terceiro oficiais da Aeronáutica com quem eu conversei durante toda a minha vida”, disse ele para os dois militares. “O primeiro foi o brigadeiro Eduardo Gomes, com quem eu conversava incessantemente quando era criança.” Foi o que bastou.
O ministro contou aos fascinados interlocutores que, embora tivesse se mudado para os Estados Unidos aos seis meses de idade (seu pai era um advogado americano), costumava passar as férias no Brasil. Ficava com o avô materno, Otávio Mangabeira, governador da Bahia, um dos fundadores da União Democrática Nacional, que foi cassado e exilado por Getúlio Vargas. No fim dos anos 50, Otávio Mangabeira já recuperara seus direitos políticos e se elegera senador. Hospedava-se no Hotel Glória, no Rio, onde o neto vinha encontrá-lo. O menino acompanhava o avô, a pé, até o Palácio Monroe, sede do Senado, e ouvia, encantado, os debates parlamentares. À noite, no hotel, assistia às conversas dos velhos liberais, como Milton Campos e o brigadeiro Eduardo Gomes. “Para um menino que morava nos Estados Unidos, aquilo era uma coisa fantástica”, lembrou o ministro. “Aquelas figuras pareciam ser de outro século, de outro mundo, era como a República Romana, algo que transfigurava a imaginação.”
Mangabeira é um homem magro e pequeno de 60 anos. Seus cabelos são grisalhos, e os olhos, azuis e míopes, ficam no fundo das grossas lentes de óculos de aros metálicos. Também de metal são as ligações que lhe sustentam os joelhos, estragados pelo hábito de caminhar enquanto fala, que desenvolveu nas suas aulas na Universidade Harvard. Em função disso, Mangabeira caminha com passos tortos, quase se arrastando. Tudo isso lhe confere uma aparência frágil e até alquebrada. No entanto, ele é de uma enorme vitalidade. Aboletado numa cadeira de rodinhas, que empurrava vigorosamente com os pés, o ministro deslizava pelo quarto do hotel, enquanto falava – contrariando sua determinação de ser melhor ouvinte – sem se deixar interromper:
“Eu tenho o culto da vontade, da tarefa, da mobilização. Mas agora estou tendo uma experiência de me entregar às circunstâncias. De deixar correr, como os brasileiros, meus concidadãos, fazem naturalmente. Eu nunca fiz isso. Nem quando criança. Estou chegando tardiamente à experiência que eles têm com tanta naturalidade. Estou seguindo os conselhos de meu amigo Caetano Veloso, que me sugeriu ser menos prussiano e mais baiano.” E gargalhou novamente.
No começo de junho, quando se instalou no hotel às margens do Lago Paranoá, Mangabeira não gargalhava. Passou dias irritado, batendo o telefone na cara dos jornalistas que o procuravam. A espera tornou-se tão exasperante que foi acometido por uma crise de asma. Os ataques vinham de todos os lados: da entourage de Lula, de petistas, da imprensa, de intelectuais. Todos citavam o artigo que ele publicara na Folha de S.Paulo, em novembro de 2005. No auge da crise do mensalão, acusara o governo Lula de ser “o mais corrupto da história nacional”. O tom era peremptório: “afirmo ser obrigação do Congresso Nacional declarar prontamente o impedimento do presidente”, propunha. Agora, todos lhe criticavam o oportunismo. Merval Pereira Filho, colunista de O Globo, por exemplo, escreveu: “Mangabeira Unger não passa de um arrivista político em busca de poder, por mais efêmero que seja”.
Os petistas também o rejeitavam por ter prestado consultoria ao banqueiro Daniel Dantas, dono do Opportunity, na briga deste com os fundos de pensão das empresas estatais pelo controle da Brasil Telecom, empresa de telefonia que atende principalmente aos estados do Sul e do Centro-Oeste. A agravante era que, dias antes, o vice-presidente José Alencar, companheiro de partido de Mangabeira – o PRN, partido minúsculo, mas de apetite maiúsculo por verbas e cargos – pedira ao presidente Lula que intercedesse junto aos fundos de pensão, para que retirassem as ações que moviam contra o seu apadrinhado. Alencar não sabia, contudo, que, no mesmo momento, Mangabeira entrara com uma ação contra a Brasil Telecom, pedindo indenização de 1 milhão de dólares pelos serviços prestados à companhia, quando ainda estava sob o comando de Dantas.
Por isso, a imprensa especulava que Lula desistiria da indicação. Havia, inclusive, a expectativa de que Mangabeira, para evitar constrangimentos ao presidente, abriria mão do ministério. O advogado Francisco Assis, que é seu amigo desde a adolescência, quando freqüentaram o Colégio Santo Inácio, no Rio, disse que desistência era impossível. “Ele tem uma inteligência enorme e um ego do mesmo tamanho, não se deixa abalar por esses ataques.” O convite formal chegou, finalmente, numa noite de quinta-feira, por meio de um telefonema de Gilberto Carvalho, assessor especial do presidente, que o convocou para um café da manhã com Lula, no Palácio da Alvorada.
Além de imune a críticas, ele não demonstra o menor constrangimento pelos ataques que fez a Lula. “O presidente me convidar para essa tarefa foi de certa maneira um milagre”, disse. “Publicaram aí um artigo em que eu pedia o seu impedimento, mas não publicaram os artigos anteriores, mostrando que sempre fui um crítico histórico dele.” Então, por que aceitou a função? Mangabeira interrompeu a frenética circulação na cadeira de rodinhas, estacionou-a em frente à bancada de madeira e – deixando de lado todo o esforço que fizera para conseguir o posto – disse que não tivera outra escolha: “Eu não tinha maneira honrosa alguma de dizer não, apesar do sacrifício acachapante que é estar aqui, nessa situação, longe de minha família”.
Contou que Lula não lhe cobrou explicações sobre o discurso. “O presidente é muito cordial comigo e eu sou muito cerimonioso com ele, que é o meu jeito de ser”, disse. “Ele sempre me pareceu um homem muito prático. Faltava a ele aquele espírito visionário de meu avô e de Brizola. No entanto, nesse episódio do discurso, ele revelou uma grande magnanimidade. Eu sinto que há um potencial grande nele.”
Ele esperava pela oportunidade de participar de um governo, qualquer governo, há trinta anos. Já demonstrara interesse em atuar na vida política brasileira em 1977, ao elaborar, com o economista Edmar Bacha, que naquela época era pesquisador visitante em Harvard, um trabalho intitulado Um Projeto de Democracia para o Brasil. O texto, batizado nos meios acadêmicos de Mangabacha, propunha voto direto para presidente, mandato de quatro anos, salvaguardas para os militares e uma discussão em voga atualmente: o financiamento público das campanhas eleitorais, para evitar a corrupção. Pouco depois, aproximou-se daquele que seria o seu grande ídolo político, Leonel Brizola, que vivia exilado em Nova York. Ele ainda se emociona ao falar do político gaúcho: “Brizola tinha qualidades morais e um sentimento de identificação com a causa nacional que contrabalançavam todos os seus equívocos.”
Mas como Brizola estava nos Estados Unidos e era carta fora do baralho político, Mangabeira aproximou-se do MDB de Ulisses Guimarães, a oposição consentida pelo regime militar. Quando os militares extinguiram o partido, ele escreveu um esboço de programa para o novo partido, o PMDB. Na tarefa, entrou em choque com o atual governador de São Paulo, José Serra. Numa conversa em seu escritório, no Rio, Raphael de Almeida Magalhães, então um dos caciques do partido, contou que Mangabeira sugeriu a Ulisses que colocasse os dois programas – o dele e o de Serra – em votação, durante a convenção partidária. “O doutor Ulisses tinha um grande respeito pelas idéias de Mangabeira”, lembra Magalhães. “Mas me perguntou se Mangabeira conhecia o Brasil, e disse que já imaginava como a imprensa trataria o assunto, caso a idéia de colocar as duas propostas em votação fosse adiante: PMDB já nasce dividido.”
Mangabeira tinha na época tanta gana de fazer política que se juntou a um grupo de políticos numa caravana pelo interior do Bahia. A idéia era mobilizar comunidades carentes e propor uma nova forma de organização econômica e social, as cooperativas. “Deu tudo errado”, contou Magalhães. Logo de saída, Mangabeira foi atropelado, acidentalmente, pela Kombi que os transportaria. Mesmo com as pernas machucadas, ele insistiu na viagem. No meio do caminho, colocou a mão para fora da janela e foi atingido por um galho, que lhe encheu a mão de espinhos. Numa das comunidades carentes, provocou forte reação ao propor a coletivização do trabalho. Ao bater em retirada, caiu num poço e quebrou o braço. Assim que pôde, ligou para o amigo e desabafou: “Raphael, estou aqui andando mal, com a mão inchada, o braço quebrado e a experiência de mobilização foi um desastre”.
Aquietou-se, então. Voltou a se interessar pela política brasileira, em 1982, quando Brizola ganhou as eleições para governador do Rio. Mas não a ponto de abandonar Harvard, onde se tornara professor titular, de Direito e Filosofia, com 25 anos. Mangabeira voltaria à cena nacional abrigado nas asas do PPS, o partido surgido dos escombros do PCB. Em 2000, ele disputou com Emerson Kapaz a convenção que escolheria o candidato do partido à prefeitura de São Paulo. Foi acusado de ter comprado filiações para ganhar a disputa. As denúncias levaram Roberto Freire, então presidente do PPS, a decretar intervenção no diretório paulista e barrar a candidatura de Mangabeira.
“Foi tudo uma armação para garantir a candidatura de Kapaz”, defende Guilherme Dias, na época advogado do partido e hoje chefe de gabinete do ministro. Roberto Freire acusa o ex-companheiro de falta de caráter. “Mangabeira sempre buscou o poder a qualquer custo”, disse. Embora em confronto com o PPS, Mangabeira, pouco depois, agarrou-se a Ciro Gomes, e o assessorou na campanha à presidência em 2002. Depois, juntou-se ao vice-presidente José Alencar, no partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus. Essa frenética busca por um suporte político levou Roberto Pompeu de Toledo a comparar Mangabeira a um espírito em busca de um corpo para encarnar. “O professor é um teórico cheio de receitas para o país”, escreveu o jornalista, na sua coluna em Veja. “Busca um político com popularidade e poder para implementá-las.”
Mangabeira não discorda da tese. Mas reveste-a com uma roupagem filosófica: “Quem lê as minhas obras percebe que elas têm uma continuidade programática muito grande”, disse ele, enquanto abria, com impaciência, uma resma de papel, de onde tirou uma folha para anotar os títulos dos seus livros. “Eu sempre tive uma proposta alternativa para o país, mas precisava encontrar um instrumento para transformar isso em realidade.” Foi essa a razão, explica, de ter procurado líderes políticos que ele considerava terem coragem suficiente para implementar suas idéias. “Tentei trabalhar com Brizola e com Ciro Gomes”, afirmou. “Mas julgo que cometi o erro clássico dos filósofos em política, que é buscar outra pessoa para fazer o serviço.” Sacudiu então a cabeça, teatralmente, como se inconformado com o erro. “Então decidi, mais recentemente, passar direto para a linha de frente.”
Ele agora entretém grandes esperanças. “Vamos ser francos, no governo só há dois generalistas, dois postos que dizem respeito a tudo: o do presidente e o meu. Ele tem todo o poder, eu tenho nenhum, mas as duas posições são análogas”, afirmou.
Quase um mês depois da posse, ele ainda estava instalado na sala do presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, num prédio antigo no setor bancário de Brasília. Da sala, mobiliada com sofás gastos de courvin e um carpete puído, ele tem uma visão magnífica da esplanada dos ministérios. Trabalhava com apenas três assessores – jovens advogados que foram seus alunos em Harvard. O ministério, porém, foi autorizado a contratar cerca de oitenta funcionários. Como ainda não encontrou um espaço definitivo para se instalar, o ministro adia as contratações. “Não tenho lugar para colocar novos colaboradores”, explicou. Sua idéia é recrutar técnicos nos ministérios e no próprio Ipea. “Estou procedendo com cuidado, para identificar pessoas extraordinárias, com qualidades técnicas e morais”, disse, garantindo não ter recebido qualquer pressão para fazer nomeações de gente do PRN.
Ele já visitou vários ministros, mas sua atenção está voltada para três áreas: educação e tecnologia, política industrial e energia. “Temos que estimular o ensino da ciência na escola básica, e precisamos desenvolver novas tecnologias que beneficiarão a periferia da economia brasileira”, disse. Ele admira o modelo que ajudou a Índia a dar um salto tecnológico.
O segundo ponto é o que ele chama de política industrial da inclusão: “Se você olhar a economia brasileira, verá que há um setor organizado, que abrange um terço dos trabalhadores, e, em volta desse setor, uma vasta periferia desorganizada, sem acesso ao crédito, à tecnologia, ao conhecimento, a nada.” Sua idéia seria ampliar não só o crédito, mas também multiplicar o trabalho de organizações de apoio às pequenas e médias empresas, como o Sebrae, e a Embrapa, que desenvolve tecnologia para a agricultura. “Não é algo de fantástico, nem de misterioso”, explicou. “É apenas voltar a atenção e os recursos do Estado para essa multidão empreendedora, que só precisa de um impulso maior para se desenvolver. Foi isso que os Estados Unidos fizeram com sucesso no final do século XIX.”
A terceira questão é a mudança da base energética: “No século XIX, ocupamos o litoral; no século XX, avançamos para o centro-oeste, e agora, no século XXI, a tarefa é transformar a Amazônia. Esse é o principal motivo pelo qual o resto do mundo olha para o Brasil. A Amazônia funciona hoje como um instrumento de pressão sobre o Brasil, e nós teríamos que reverter isso para que fosse uma oportunidade brasileira, produzindo biodiesel.”
Mangabeira abordou algumas dessas idéias no seu discurso de posse. Mas nenhuma delas repercutiu. Tanto a mulher, Tamara, executiva de um banco americano, como os quatro filhos, que o assistiram pela televisão a cabo, nos Estados Unidos, não gostaram da sua oratória. “Eles disseram que o tom do presidente estava correto, era conversacional”, contou. “Mas que o meu tinha um tom imperial. Eu vou aprender a mudar isso também. É que a minha concepção da ação pública é heróica. É uma cruzada pela mudança do mundo. Mas eu estou tentando suavizar.” Não foi apenas o discurso que saiu errado no dia da sua posse. Tentando fugir dos jornalistas que queriam entrevistá-lo, Mangabeira saiu tropeçando pelas cadeiras do auditório e, na fuga, acabou perdendo-se pelos corredores do Planalto, até ser resgatado por seu chefe de gabinete.
Era quase meia-noite quando Mangabeira pediu licença para interromper a conversa. Ele precisava levantar antes das 6 da manhã. Acompanharia o presidente numa visita ao projeto do submarino nuclear, na base de Aramar, em São Paulo. Antes de se despedir, mostrou seus CDs, empilhados numa pequena mesa, ao lado de um pequeno aparelho de som. A maior parte eram sonatas e sinfonias de Beethoven, seu compositor predileto. “A música de Beethoven tem essa visão heróica combinada com extrema ternura”, disse. “Isso é a essência da nossa civilização. A grandeza e o amor, que se contradizem, mas de alguma forma se complementam.”
Às 6 horas e 15 minutos do dia seguinte, Mangabeira já estava se servindo do café da manhã do hotel. Enquanto comia mamão, dizia: “Hoje, a política brasileira é dominada por uma única idéia, que se poderia chamar de Suécia tropical. É uma cópia da social-democracia européia. Mas, dadas as nossas desigualdades, humanizada com políticas sociais. Aqui tudo é social-liberal, social-isso, social-aquilo. Nós temos que criar alternativas. Um programa não é uma família. É uma trajetória, uma direção para o país”.
Ele diz que não se encaixa em qualquer escola de pensamento, nem no liberalismo nem no marxismo. Nitidamente, o que propugna é diferente do que o governo Lula faz. Ele acha que a inclusão social não deve ser feita com políticas sociais compensatórias, caso do Bolsa-família, e sim por meio de mecanismos do próprio mercado. “A questão básica nesse começo de século não é discutir se temos que ter mais ou menos mercado, mas sim que tipo de mercado devemos ter para promover maior inclusão”, explicou.
Ele expôs seu grande receio enquanto se servia de uma porção de ovos mexidos. “O que mais me angustia no Brasil não é algum obstáculo político ou econômico. É que o Brasil, apesar de toda essa vitalidade, não se reconhece como um país grande. Os brasileiros se sentem pequenos, e todas as minhas atitudes são em torno da idéia da grandeza.” No final de julho o ministro foi flagrado num gesto pequeno. Ele usava o carro oficial, fora do horário de expediente, para fazer compras em um shopping de Brasília. Enquanto esperava pelo chefe, seu motorista estacionou o carro numa vaga para deficientes físicos.
Boa parte da intelectualidade brasileira, à esquerda e à direita, não o leva a sério. O economista Gustavo Franco, um dos expoentes do modelo social-liberal, é um exemplo. “Passei a vida ouvindo que Mangabeira era um louco, e nunca me interessei pelas idéias dele”, disse. Um dos melhores amigos de Mangabeira, o advogado Joaquim Falcão, não se conforma com esse desconhecimento. “Como não podem desqualificar as idéias dele, desqualificam a pessoa,” diz. Mangabeira publicou mais de uma dezena de livros, que tratam de direito, filosofia, política e economia. O último deles, O que a esquerda deveria propor?, sem tradução para o português, foi elogiado pelo The New York Times, que classificou o autor de “visionário incansável”.
Mangabeira atribui as críticas dos intelectuais brasileiros à mentalidade nacional, que seria fatalista. “O problema é que os brasileiros acreditam no que podem tocar, e eu acredito no intangível”, disse. “Então, meus concidadãos podem me achar estranho, dogmático, intransigente, mas eu os considero extremamente mundanos. E estou convencido de que homens mundanos não conseguem mudar o mundo.”
Às 6 horas e 45 minutos, o motorista parou o carro em frente ao hotel. Mangabeira despediu-se, não sem antes fazer uma última brincadeira: “Vou agora dar mais um passo no meu trabalho de mudança interior. Vou conversar com as pessoas sobre assuntos que nada têm a ver com a República. É um processo lento. Mas no dia em que eu conseguir dar um tapinha nas costas de alguém, terei promovido uma revolução.”