ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
A metamorfose
Da medicina às passarelas
Paulo Sampaio | Edição 127, Abril 2017
Ao ouvir a expressão bullying, Liao Tao Ming – chinês de 52 anos que, há sete, se transformou em chinesa – faz uma careta de desprezo. Para ela, depois que virou moda, o termo em inglês se esvaziou. “Todo mundo agora se diz perseguido, humilhado.” A observação um tanto rabugenta revela-se muito compatível com quem precisou tatuar as nádegas para esconder as sequelas de um trote sofrido na faculdade de medicina. Três veteranos da PUC de Sorocaba, no interior paulista, fizeram Ming permanecer sentada numa barra de gelo seco até que sua pele sofresse queimaduras de segundo grau e ficasse em carne viva. Por isso, para a chinesa, bullying é algo inominável. Na ocasião, o arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, grão-chanceler da PUC, perguntou se a vítima queria que os alunos fossem punidos. Ela disse que não. “Além das marcas do trote, eu amargaria a responsabilidade pela expulsão dos estudantes.”
Apesar do começo doloroso, Ming levou o curso até o fim. Perseverou em nome da necessidade jamais saciada de compensar os pais, bastante pobres, por tudo que lhe tinham feito. Natural de Taiwan, ela veio para São Paulo com a família aos 4 anos. Muito católico, o pai, Liao Kun Siu, morto em 2007, pensou em ser padre. Já a mãe, Liao Yu Tsai, age até hoje como uma madre superiora, nas palavras da própria filha: “Eu a amo demais. E a odeio com a mesma intensidade.” O casal ganhava a vida como mascate, vendendo bugigangas que vinham do Oriente. De português, eles sabiam apenas os números. Nunca aprenderam a falar corretamente a língua, mas dominavam as quatro operações.
Com sacrifício, conseguiram matricular Ming no ensino médio do Colégio Bandeirantes, um dos mais respeitados (e caros) de São Paulo. Também criaram Liao Te Lan – ela, sim, menina de nascença. Sua educação, no entanto, ficou em segundo plano. Além de ser adotiva, não poderia gozar dos mesmos privilégios de um filho homem, segundo a tradição chinesa.
Pode-se imaginar a incredulidade do senhor e da senhora Liao quando o varão que deveria ter se tornado um médico respeitado se assumiu, por volta dos 45 anos, como transexual. Pôs seios de silicone e passou a usar cílios postiços, vestidos decotados e sapatos com 10 centímetros de salto. Àquela altura, a borboleta das nádegas já havia se mimetizado no meio das mais de 100 tatuagens que Ming espalhou pelo tronco, braços, pernas, mãos e pés.
Sentada na ampla sala de seu sobrado na Vila Mariana, bairro paulistano de classe média, ela tenta organizar cronologicamente sua atribulada existência. “Eu era um menino apagado na escola, ingênuo, assexuado”, recorda. “Perdi a virgindade somente aos 27 anos, com um homem.” Bebericando uma cerveja, ajeita-se numa das duas camas grandes que fazem as vezes de sofá. Nas paredes, sobressaem desenhos de figuras femininas e roliças, que fumam ópio em poses lânguidas. O pano de fundo é a canção How to Save a Life, da banda americana The Fray. “Tudo começou a mudar quando meu pai pediu ao arcebispo de Taipé [capital de Taiwan] que me arrumasse uma residência médica num hospital católico.”
Na China, Ming saltou da especialização em cirurgia plástica ao mundo esteticamente implacável da moda. A partir do encontro fortuito com um agente de modelos, começou a vender aspirantes brasileiros à carreira no mercado asiático. “Naquele tempo, anos 90, os modelos só pensavam em ir para a Europa e Nova York, no rastro da Gisele [Bündchen]. Eu trabalhava com um pessoal que estava na prateleira, meio esquecido, aguardando uma oportunidade. Levei para China e Japão o [Reynaldo] Gianecchini, a Alinne [Moraes], a Fernanda [Lima], muita gente.” O nicho acabou se revelando bastante lucrativo.
Na volta ao Brasil, depois de abandonar definitivamente a medicina, Ming enriqueceu ainda mais. Abriu uma agência de cabeleireiros e maquiadores chamada Truco i Capelli, que se tornou prestigiadíssima. “Eu morava num apartamento de quase 300 metros quadrados na avenida Paulista. Dava festas quase todos os dias. Torrei muito dinheiro em droga, gastava descontroladamente.” Então, uma agência dos Estados Unidos lhe fez um convite: trabalhar de scouter (caçador de talentos) em Nova York. “Foi como se tivessem me desligado da tomada. Parei completamente com a loucura.” A grande transformação, porém, ainda estava por vir.
Ao retornar de Nova York, Ming costumava frequentar salas de bate-papo na internet usando trajes de mulher. Certo dia, num dos chats, conheceu um jovem por quem se apaixonou perdidamente. O apreço pela indumentária feminina surgira antes, em 2007, quando Ming resolveu aparecer de vestido e peruca numa festa a fantasia. A partir daí, começou a gastar fortunas com maquiagem, acessórios, saias, tailleurs e afins, sobretudo para se exibir no mundo virtual.
Ao perceber que a paixão pelo jovem deixara de ser correspondida, Ming tentou reconquistá-lo. Empenhou-se tanto que acabou radicalizando. Se o rapaz havia sentido atração por uma “mulher”, nada mais lógico do que eternizá-la. Iniciou-se, assim, a metamorfose que converteria o chinês em chinesa. A paixão se arrastaria por anos, mas aí Ming já estava mais entretida com as reações que sua nova persona causava.
Hoje proprietária de uma agência de modelos, ela gosta de levar a mãe e a irmã para viagens ao redor do mundo. Recentemente, as três estiveram em Milão, Londres e, na volta, Poços de Caldas. Liao Te Lan – que, aos 57 anos, cultiva uma aparência austera – aceitou bem a mudança de Ming. “Minha mãe, em compensação, ainda ignora a opção dele. Sempre pergunta quando meu irmão vai se casar e ter filhos. Eu digo: ‘Mãe, agora que ele colocou busto, ficou mais difícil.’”
Certa vez, um psiquiatra quis saber como Ming se definia. “O cara devia estar pensando que eu me declararia travesti ou transgênero, mas respondi que só desejava ser feliz. Ele me achou supercriativa.”
Nos tempos de “gay discreto”, Ming não fazia nenhum sucesso na seara amorosa. “Eu simplesmente não existia.” Como mulher, porém, viu tudo mudar “da água para o champanhe”. Só no Tinder, aplicativo que promove encontros românticos, a chinesa contabiliza mais de 1 200 interessados. Detalhe: a maioria se proclama heterossexual. Ela mostra na tela do celular os perfis de quem a galanteia. “Tem de tudo: skatista, executivo, corintiano. Boa parte dos gays valoriza os homens héteros porque acredita que são mais másculos e os associa à ‘normalidade’. Só que, em geral, o hétero másculo prefere um tipo como eu, que muitos gays desprezam por ser excessivamente feminino.” Ming descobriu na prática a razão da preferência: “Em geral, os homens que transam com travestis não se consideram homossexuais. Eles acreditam que o outro é mesmo uma mulher. Interessante, não? Você sabe se já fizeram matéria sobre isso?”
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