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    Fotomontagem a partir de O anjo caído, de Alexandre Cabanel: a direita no Brasil sempre caminha para o extremismo se políticas públicas alteram o status quo econômico, racial e sexual CRÉDITO: FOTOMONTAGEM DE BETO NEJME (2024) SOBRE DETALHE DO QUADRO O ANJO CAÍDO_1847_ALEXANDRE CABANEL (1823-89)

questões políticas_réplica

O ressentimento é real

Ao contrário do que pensa Vladimir Safatle, a psicologia afeta concretamente a política, como atesta um estudo recente

Cesar Zucco, David Samuels e Fernando Mello | Edição 209, Fevereiro 2024

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No texto Os limites do ressentimento (piauí 206_novembro de 2023), Vladimir Safatle critica o uso de conceitos da psicologia – especialmente o “ressentimento” – para explicar o apoio à extrema direita. O ponto central do professor de filosofia é que o recurso a tais conceitos leva a crer que a adesão à extrema direita é uma reação patológica das sociedades contra a democracia, advinda de processos irracionais, como as “regressões”, no sentido psicanalítico. Na visão de Safatle, essa interpretação psicologizante, formulada sobretudo pela esquerda, conduz a uma “moralização extensiva do campo político”, ao separar os eleitores progressistas daqueles que “não são como nós” – ou seja, os ressentidos. Com isso, tende-se a colocar no mesmo nível “pessoas beneficiadas pela ordem econômica” (que aderem à extrema direita para manter seu status e privilégios) e “pessoas em situação de extrema precariedade social” (que aderem à extrema direita por não verem outra saída). Para Safatle, as explicações psicológicas acabam servindo mais para esconder a “impotência das políticas progressistas” do que para explicar de fato o que leva “trabalhadores e grupos precarizados a se converterem à extrema direita”.

Concordamos que não faz sentido explicar um processo político como uma falha moral ou uma reação patológica de parte da sociedade. No entanto, é fundamental reconhecer a forma pela qual o “ressentimento” está intimamente conectado à realidade material. Os gatilhos do ressentimento variam conforme o contexto, mas em todos os casos há alguma relação com mudanças econômicas e sociais concretas e a maneira como são percebidas. Em todos os países nos quais o conceito veio à baila para explicar a ascensão da extrema direita, notou-se que há uma relação entre o ressentimento e a percepção de determinados grupos de que mudanças sociais em curso estão prejudicando suas vidas e alterando as hierarquias sociais.

Esse é também o caso do Brasil, como revela uma pesquisa de opinião que fizemos em setembro de 2023, cujos dados aparecem nesta réplica pela primeira vez. A pesquisa foi realizada com o objetivo de entender como os brasileiros encaram os benefícios sociais dados pelo governo aos grupos em situação de vulnerabilidade e saber se a visão política das pessoas é afetada pelo sentimento de que seu status socioeconômico está amea­çado. Na pesquisa, realizada pela Atlas­Intel, foram ouvidas, via internet, 2 037 pessoas de diferentes classes sociais, com idades entre 18 e 90 anos, em 801 municípios. A cada entrevistado, apresentamos uma série de perguntas para medir se a importância que ele atribui a si mesmo e a pessoas como ele aumentou ou diminuiu nos últimos vinte anos – ou seja, desde que o PT chegou à Presidência pela primeira vez, com a posse de Lula em 2003. Uma das perguntas, por exemplo, foi formulada da seguinte maneira:

Entre 2003, quando o PT chegou à Presidência pela primeira vez, e 2023, quando o PT retornou à Presidência, você diria que você e pessoas como você: 1) Ganharam muita importância na sociedade; 2) Ganharam alguma importância na sociedade; 3) Nem ganharam, nem perderam importância na sociedade; 4) Perderam alguma importância na sociedade; 5) Perderam muita importância na sociedade.

Buscamos ainda aferir a percepção dos entrevistados sobre ganho ou perda de status de outros grupos sociais, definidos por critérios socioeconômicos, regionais, étnico-raciais, de gênero, entre outros aspectos.

Os resultados indicam que 43% dos brasileiros consideram ter ganhado importância nos últimos vinte anos, enquanto 30% pensam o oposto: que perderam a importância que tinham. A percepção de ganho é maior entre as mulheres (46,2%), os pretos e pardos (48,5%) e as pessoas do Nordeste (61%) do que entre os homens (40%), os brancos (34%) e as pessoas do Sul e do Sudeste (32,5%). O mais alto índice de ganho de importância aparece entre as mulheres nordestinas e não brancas de baixa renda (71%). Já o menor índice está entre os homens brancos e mais velhos, com renda média ou alta do Sudeste (25%) – são os polos antagônicos da pesquisa.

Na média, os brasileiros acham que os segmentos sociais que mais ganharam importância nos últimos vinte anos foram as mulheres, os nordestinos, os negros, os indígenas e os grupos LGBTQIA+. Em contraste, os que menos ganharam importância foram os homens, os brancos e as pessoas de renda alta. O resultado não é muito controverso, mas confirma que existe, sim, em todos os segmentos da sociedade a percepção de que nos últimos vinte anos alguns ganharam importância e outros perderam.

Perceber a si mesmo e ao seu grupo social como ganhador ou perdedor produz não apenas reações psicológicas como também consequências políticas, inclusive em termos de preferências partidárias. Considere, preliminarmente, que em nossa amostra completa 40% se identificam como antipetistas e 27% como petistas. Esses números médios, no entanto, escondem forte variação entre grupos ganhadores e perdedores. Em meio aos que consideram ter perdido importância social nas últimas décadas, o número de antipetistas sobe para 70% e o de petistas cai para apenas 2%. Em contraste, entre os que consideram que ganharam importância, o número de antipetistas cai para 16% e o de petistas sobe para 50%.

Os dados mostram, portanto, uma forte associação entre a adesão à extrema direita e a percepção de perda de status, em sintonia com pesquisas similares feitas nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, que constataram a mesma conexão. E o motor por trás desse movimento é o ressentimento, como veremos a seguir.

 

Na pesquisa, incluímos três baterias de perguntas desenvolvidas em estudos internacionais para medir de forma consistente percepções em relação ao esforço/merecimento das pessoas pobres, e também ao machismo e ao racismo. Perguntamos aos entrevistados, por exemplo, se concordavam ou discordavam de afirmações como “a maioria dos desempregados não quer realmente arranjar emprego” ou “os problemas raciais no Brasil são situações raras e isoladas”. Com base nas perguntas de cada bateria, produzimos três índices (que variam de 0 a 1), referentes a merecimento, machismo e racismo. Essa escala é o que nos permite medir o grau de ressentimento em relação aos mais pobres, às mulheres e aos negros. Os três índices são moderadamente correlacionados. Ou seja: indivíduos ressentidos em relação a um grupo podem não ser em relação aos demais. Mesmo assim, os números são mais parecidos entre si do que divergentes. Quem considera ter perdido status social apresenta valores altos em cada um dos três índices, o que indica a conexão entre a percepção de perda de status e o ressentimento com relação a pobres, mulheres e/ou negros.

A descoberta-chave, aqui, é que o ressentimento permite prever a preferência política. Pessoas com elevado grau de ressentimento nos três índices têm probabilidade muito alta de serem antipetistas e probabilidade muito baixa de serem petistas. Por exemplo, pessoas situadas no ponto mais alto de ressentimento têm probabilidade 0,8 de ser antipetista e 0,04 de ser petista. Com relação a pessoas com baixo grau de ressentimento nos três índices, ocorre exatamente o contrário: a probabilidade de ser antipetista é apenas 0,1, ao passo que a de ser petista é 0,55. Ainda que Safatle considere que o ressentimento de classe, raça ou gênero não seja um conceito útil para explicar a adesão à extrema direita, nossa pesquisa sugere que, sem eles, deixamos de entender completamente esse fenômeno.

Suspeitamos que variações nas percepções de ganho ou perda de status, talvez coloridas pelas preferências partidárias, sejam as causas dos ressentimentos, mas não há como inferir uma relação absoluta de causalidade entre os dados. Não há dúvida, porém, de que o ressentimento afeta grande parte da sociedade, e sua existência tem base material bastante clara. Nossa pesquisa mostra que as pessoas que se situam politicamente à direita tendem a acreditar que perderam status nas duas últimas décadas e se ressentem dos ganhos obtidos por outros grupos – exatamente os mesmos que julgam ter ganhado mais status, especialmente os pobres, os negros e as mulheres.

Indo mais longe, podemos dizer que a associação entre a adesão à esquerda e a percepção de ganho nas últimas duas décadas indicam que a relação entre o ressentimento e o apoio à extrema direita pode ser interpretada como consequência não dos fracassos, mas dos sucessos de governos de esquerda. É o exato oposto do que propõe o artigo de Safatle.

Em termos especulativos, uma das bases concretas de tal ressentimento está relacionada às políticas públicas implementadas pelo PT – que ocupou a Presidência quatro vezes entre 2002 e 2022 – com o objetivo de reduzir as desigualdades sociais, raciais e de gênero no Brasil. Entre os esforços mais proeminentes estão o aumento real do salário mínimo, a facilitação do acesso à Previdência via MEI, a estruturação de um sistema de assistência social com transferências diretas de renda, a redução da insegurança habitacional, a regularização do emprego de trabalhadores domésticos, o aprimoramento da segurança alimentar, a expansão maciça do acesso à educação superior, a implementação de ações afirmativas de classe social e raça, o reconhecimento e a demarcação de quilombos, entre outras iniciativas.

Os governos do PT também buscaram alterar as tradicionais hierarquias de gênero e o tratamento discriminatório de minorias sexuais, aprovando a primeira lei brasileira a respeito da violência doméstica (Lei Maria da Penha) e endurecendo as punições para casos extremos de abuso infantil (Lei Menino Bernardo), além de promover currículos antibullying nas escolas. Nem todas essas políticas foram bem desenhadas e aplicadas, mas no conjunto constituem uma agenda progressista que alterou o debate acerca das desigualdades no país.

Faz sentido conjecturar que essas políticas dos governos petistas tiveram efeitos concretos na percepção de ganhos e perdas dos brasileiros. Por um lado, acarretaram benefícios aos seus destinatários. Por outro, suscitaram preconceitos de classe em pessoas que temem perder a importância social. Esse desconforto muitas vezes ficou claramente manifesto em declarações que entraram para o anedotário nacional das últimas décadas, como quando reclamaram que os aeroportos estavam parecidos com rodoviárias, depois que o barateamento das passagens aéreas franqueou os voos às classes baixas.

Mas as divisões afetam também pessoas em situação de precariedade social. Algumas delas podem se ressentir por não terem tido acesso ao Bolsa Família ou a uma universidade pública, como aconteceu com outras pessoas da sua classe social. Podem se ressentir inclusive de avanços de grupos que até então tinham um status mais baixo que o delas. Fora isso, políticas relacionadas a gênero, sexualidade e família estão entre as que hoje, além de alimentar sentimentos populistas de direita, ampliam a polarização entre os que são a favor e os que são contra o PT.

 

O ressentimento é real. Ele não é a causa última da adesão à extrema direita, mas é esse campo político que dá vazão ao ressentimento até então latente, valorizando-o de forma explícita e até violenta, para fins políticos. Essa estratégia repete uma fórmula da direita radical que hoje lhe rende apoio e votos em diferentes países. Em cada caso, o ressentimento tem uma origem e um desdobramento particular. Em algumas nações europeias, por exemplo, é direcionado a grupos de imigrantes ou minorias culturais e religiosas vistas como estranhas à nação e dá origem ao populismo nacionalista e nativista e ao protecionismo econômico. No Brasil, como demonstra a pesquisa que fizemos, está relacionado à percepção de alguns grupos sociais de sua perda de status social nas duas últimas décadas em favor de outros grupos, antes subalternos.

O ressentimento, que se dá inicialmente no plano individual e psicológico, ganha a dimensão de fenômeno social quando se generaliza por todo um grupo e é em seguida compartilhado por outros. Por exemplo, homens – inclusive os que não pertencem à elite econômica – podem se ressentir de políticas que concedem às mulheres trabalhadoras mais direitos e benefícios. Ou brancos – inclusive os que não pertencem à elite – podem se ressentir por achar que não brancos em geral se beneficiam injustamente de programas de ação afirmativa. Por isso, não compartilhamos da visão de Safatle de que determinados aspectos psicológicos não sejam úteis para explicar a manifestação coletiva de adesão à extrema direita.

Safatle afirma que a esquerda brasileira atual exibe uma “incapacidade real em apresentar ações robustas e críveis para problemas de precarização e vulnerabilidade social”. Mas, como vimos, no Brasil parece ter acontecido o oposto. Os nossos dados sugerem, indiretamente, que foram os resultados concretos e simbólicos de políticas públicas bem-­sucedidas que alteraram relativamente as hierarquias sociais. Políticas que redistribuem recursos e/ou poder alteram o status relativo dos diferentes grupos, gerando resistências. A esquerda imaginou ter encontrado uma fórmula mágica de redistribuir poder e recursos sem gerar uma forte reação – mas essa reação foi apenas adiada. Por fim, a reação se materializou com a chegada ao poder da extrema direita, liberando e ativando politicamente o ressentimento.

A forma específica pela qual esse ressentimento se expressou é mais contingente do que necessária. Em termos históricos, a resposta típica da direita brasileira quando os anseios de mudança da população se acentuam é recorrer ao governo para manter (conservar) hierarquias sociais, econômicas e culturais. Pode-se sempre argumentar, como Safatle o faz, que a esquerda não está fazendo, nunca fez, o suficiente para eliminar as desigualdades históricas do país. Talvez a esquerda pudesse ter feito mais, porém o que fez foi suficiente para despertar um forte ressentimento. No Brasil, a direita sempre caminha para o extremismo quando políticas públicas ameaçam alterar bastante o status quo econômico, racial e sexual, e sempre se investe da tarefa de desfazer as conquistas sociais. Foi o que aconteceu novamente nos últimos anos, sob os auspícios de grupos afetados pelo ressentimento com os ganhos concretos obtidos por grupos historicamente marginalizados.