Nos dois últimos romances de Ricardo Lísias, Céu dos Suicidas e Divórcio, os narradores levam o seu prenome. A opção por escancarar o duplo ficcional do autor sugere a intenção de passar a vida a limpo na escrita, mas se trata de tentar reinventá-la simbolicamente FOTO: JOSH SOMMERS
A raiva do enxadrista
Trauma, humor, sujeitos esfacelados e identidades possíveis nos romances de Ricardo Lísias
Fábio de Souza Andrade | Edição 85, Outubro 2013
Em um ponto a “Avó detrás do toco, sempre-livre docente e doutora honoris calça pela Universidade do Toco” e Leyla Perrone-Moisés, decana da crítica franco-brasileira, discípula de Barthes e professora titular aposentada da USP, tendem a concordar: Ricardo Lísias é escritor dos bons. A Avó, “(ex)-analista de Derrida” e “única sobrevivente dos célebres cursos de Saussure”, às vezes fica na dúvida: homem ou moleque de letras? Mas a dúvida não alcança o calibre do escritor, que a senhora faz questão de sustentar, virgo exemplaris, em fluente latim macarrônico.
As duas mulheres cruzaram a vida de Lísias em circunstâncias e tempos separados: Leyla assina o posfácio elogioso do seu Anna O. e Outras Novelas (Editora Globo, 2007) e crava a aposta: “Um dos melhores escritores brasileiros revelados nos últimos anos.” Já a Avó remonta a seus tempos da graduação em letras, no Instituto de Estudos da Linguagem, o IEL, da Unicamp, universidade em que Ricardo também defendeu, em 2001, seu mestrado, um estudo da produção drummondiana anterior a Alguma Poesia, na década de 20, dispersa em periódicos como Ilustração Brasileira e Para Todos. Às turras com a Tia Encaiada, a personagem serviu-lhe para afiar precocemente a veia (ou seria a véia?) satírica, em meio às aulas de literatura e à política estudantil dos anos 90. Em tempo: Avó e Tia figuraram em panfletos, sério-jocosos, que Lísias e colegas fizeram circular em disputas pelo Centro Acadêmico campineiro.
Política, a militância, aliás, como o xadrez, é um interesse recorrente em Lísias, volta e meia apontando em seus livros, plaquetes e publicações avulsas, que ele mesmo inventa e cultiva aos montes, como o Silva, jornal literário semestral, produzido artesanalmente para acomodar a ficção, própria e de amigos, e distribuído em pequena escala, ensacado no papel pardo que embrulha pão. Nada de amador no gesto, contudo: Ricardo persegue a literatura com método e, desde seu livro de estreia, Cobertor de Estrelas (Rocco, 1999), vem publicando sistematicamente – contos, novelas, romances –, ensinando língua e literatura e frequentando a lista final dos principais prêmios literários do Brasil, os oficiais (terceiro colocado do Portugal Telecom, em 2006, com Duas Praças, lançado pela Globo) e os divertidos, como a Copa de Literatura Brasileira, em 2011, em que seu O Livro dos Mandarins (Alfaguara), na decisão, jogou para escanteio O Filho da Mãe, do ótimo Bernardo Carvalho.
O leitor de piauí acompanhou a gestação de seu último romance, Divórcio (Alfaguara, 2013), em dois instantâneos: o colapso (já chamado “Divórcio”, na edição 62) e o ressurgimento (“A corrida”, ed. 65). Sucesso de escândalo instantâneo, confundiu crítica e público porque seu narrador, em primeira pessoa, parecia se sobrepor de maneira perturbadora ao que se conhece do próprio autor. O enredo rumoroso, feito do que fez a fama do romance realista moderno (sexo, poder, sucesso e derrocada, em chave individual, um casamento desfeito traumaticamente em cena pública, com direito a bastidores do mundo editorial, jornalismo cultural, inclusive), espicaçava o lado voyeur de todo leitor, de resto, sempre bem acordado em nossa sociedade do espetáculo. Literalismo míope à parte, o autor de O Céu dos Suicidas não escreve em registro confessional ingênuo, nem “baseado em fatos reais”, como se buscasse uma reinvenção anacrônica da receita realista clássica.
Lísias é dos que levam a sério a tarefa de escrever. Se algo salta aos olhos, ao longo de sua já considerável trajetória, esse traço é a inquietação com a forma de expor uma matéria variada de experiência moderna, urbana e brasileira. Mesmo quando às voltas com o submundo acre e cruel, a candelária-praça-da-sé dos meninos de rua abandonados à própria sorte, tema de seu primeiro romance, a escolha de um ponto de vista voluntariamente simplificado, assumindo a perspectiva remota de um deles, ainda aquém do mundo da escrita e anônimo sob o rótulo genérico de “menino”, anuncia uma preocupação que ecoa na solução narrativa engenhosa do bem posterior, diverso no assunto e no alcance, O Livro dos Mandarins.
No romance de 2009, os estragos que o mundo corporativo globalizado, indiferente aos esforços anódinos e espertalhões da autoajuda, impõe aos destinos individuais são vazados a partir de um narrador que, como o de Cobertor de Estrelas, força o leitor a abandonar temporariamente suas convicções e comprar neuroses, valores, limites e objetivos, enfim, o suprassumo de uma existência pessoal muito diversa da sua, no caso a do protagonista, um executivo em ascensão no mundo da ciranda financeira internacional. O paradoxo é que essa subjetividade de empréstimo, engolida por determinações gerais e abstratas, rala e facilmente reconhecível sob o exagero das tintas que, de propósito, beira a caricatura, também ganha maior eficácia expositiva quando privada de um nome singular. Se Cobertor de Estrelas fazia de todos o menino, em O Livro dos Mandarins, todos os gatos são pardos e todos os homens são Paulos, salvo quando a errância em escala global, cômica e forçada, a que o enredo do romance os submete, os transforma em traduções locais, em genéricos equivalentes (Omar Hassan Ahmad al-Bashir ou Lin San San, por exemplo, conforme a oscilação das Mecas dos mercados).
Lísias não é o primeiro a empregar o recurso técnico que serve à revelação da falta de substância de uma subjetividade emprestada, aquém da dignidade da nomeação, e lhe impinge uma classificação geral, operando, sob o aspecto de falsa familiaridade, como um mecanismo de estranhamento, forçando nosso olhar à cisma súbita sobre o que o hábito convertia em natureza. Para ficar na escala doméstica, João Antônio também fez Jacarandá servir como etiqueta comum aplicada a uma família variada de personagens antiépicos, mais ou menos impotentes, movendo-se de alto a baixo na pirâmide social brasileira, evidenciando como vasos comunicantes as festas de publicitários arrivistas e o meio-fio imundo dos guardadores de carros.
Esse duplo do homem comum, Everyman contemporâneo, tão humilhado e ofendido quanto cada um de nós, não se deixa, apesar disso, reduzir a receptáculo passivo do mundo raso das aparências socialmente produzidas. Não se trata apenas de um tipo social – o menor abandonado, o executivo de sucesso, as vítimas do cárcere arbitrário, da paranoia descontrolada ou da violência sexual –, estamos longe da dissipação naturalista. A crise desempenha um papel decisivo no projeto: o disfuncional é que interessa a Lísias e essa ruptura se traduz na estrutura do romance, no emprego de recursos técnicos caracteristicamente modernos – a elipse, a repetição, os saltos, a representação imiscuída de mundo interior e exterior – que acabam, pela estranheza bem-vinda à narrativa, mergulhando-a no desacerto da experiência narrada. Quando sob controle e bem realizada, a falha vertebra o enredo dos romances de Lísias e organiza o equilíbrio estrutural, controladamente instável. A receita é inteiramente compatível com a mescla de candura e violência, humor e revolta que se pode identificar desde o princípio como a vocação da sua escrita.
No plano da linguagem, a fragilidade emocional das personagens eclode como destempero linguístico, súbitas explosões palavrosas que perturbam a sintaxe ordenada do texto, desorganizam a coerência construída de seu modo de ser e pensar (quase sempre flagrado sob a forma de monólogo interior) e promovem hiatos na continuidade do enredo. São a expressão de uma verdade subterrânea e mais forte sob a superfície satírica, explosões não involuntárias, mas contraintuitivas, surpreendentes. Atuam como uma recusa de alguma modalidade bem-comportada de ironia, espécie de defesa contra um protesto anódino a caminho, insubordinação do discurso à reconciliação formal dos modelos bem-acabados, harmônicos, falseando a capacidade de incomodar da realidade.
Assim, o inconformismo do menino que acredita que será resgatado da miséria, simbólica e material, pelo assistencialismo bondoso do padre gordão disposto a lhe ensinar aos saltos, literalmente, as primeiras letras (apenas as poucas com que se escreve seu nome, menino), aflora numa litania infantilizada, regressiva e escatológica, mas nem por isso menos jactante, patética e inesperada, contra tudo e contra todos, inclusive seus iguais, como a mendiga sem teto que inadvertidamente o agride: “Tem que ir para o inferno, mulher tonta, horrorosa, bruxa desgraçada, louca, velha porcona, cara de idiota, não sabe de coisa nenhuma, mulher analfabeta, não tem nada na cabeça, velha nojenta, faz cocô na rua, não tem comida, mulher porca, medonha, horrorosa e burra, mais burra do mundo, besta de tudo, não sabe pensar, nem consegue segurar o lápis, velha tonta, idiota, cabeça de porco, nunca toma banho, velha fedida, não sabe de nada, não tem casa, velha retardada” (Cobertor de Estrelas, p. 73).
Um destempero análogo curiosamente acomete o Paulo executivo d’O Livro dos Mandarins, o que reza no altar do neoliberalismo e cultua Fernando Henrique Cardoso, e, sem se permitir pontos sem nó nos passos largos da carreira promissora e meteórica, multiplica relatórios, acumula informações úteis e aprende mandarim – “um bom executivo se antecipa ao mundo”. Quando contrariado, também ele reage com fúria análoga à do menino, traído pela mesma fala feita de farrapos de lógica e insultos em profusão atirados a torto e a direito, perturbando a linha narrativa da sátira em andamento: “No começo, Pau** ficou muito irritado. Então o Paul o está fazendo de bobo! Aquele desgraçado, aquele gringo gago. Ninguém pode falar, mas ele é gago. É gago. É gago. Pois é, o gaguinho não tem respeito por ninguém mesmo […] um verdadeiro absurdo, aquele gago filho da puta. […] É um bando de filho da puta mesmo. Ainda mais aquele gago idiota. Sem falar no Godói, Pau** complementou” (O Livro dos Mandarins, p. 49). De modo inverso e simétrico ao aprendizado do menino, que aos poucos vai se assenhorando das vogais e consoantes do seu nome, e reforçando sua escassa identidade, que se dissolve e tenta se refazer contra a contundência das ameaças exteriores, a cada degrau que galga na carreira, Paulo vai perdendo as letras que o singularizam, substituídas pelos asteriscos coringa. Ordem, plano e método alternam-se, portanto, com desequilíbrio, esgarçamento e ruínas.
A mesma desconfiança de uma literatura que se pretenda mero depósito de um real pré-formado, anterior a sua conversão em linguagem, está por trás da estratégia narrativa aparentemente diversa de seus últimos romances. O Céu dos Suicidas e Divórcio são escritos em primeira pessoa, num registro que sugere um programa literário que equivaleria ao da vida passada a limpo na escrita. Longe do anonimato anterior, os protagonistas levam o prenome do autor e sugerem aos desavisados um trabalho de luto catártico, quase sem mediações, reelaborando na linguagem romanesca duas experiências pessoais traumáticas sentidas como irreparáveis e examinadas sem pudor num ritual de autoexposição máxima: a perda trágica de um amigo próximo, o fim desastroso de uma relação afetiva.
Não seria preciso evocar modelos literários ilustres no romance moderno (de James Joyce e seu amigo triestino Italo Svevo, passando por Thomas Bernhard e Philip Roth, até W. G. Sebald e J. Coetzee) para se dar conta de que o expediente estranhador – introduzir na narrativa um duplo ficcional do autor –, ainda que pareça servir apenas a uma relativização dos limites entre o fato e sua recriação ficcional, na verdade investe pesadamente na autonomia do literário, reforça a percepção de que o simbólico produz consequências tão sérias e reais quanto o vivido, alimentado por seus impasses e percalços.
Os dois romances mais recentes de Lísias seguem este itinerário comum: acompanham sujeitos em crise, esfacelados, e seus programas da refundação de uma identidade possível em meio a uma rotina arruinada de maneira abrupta e drástica. Tanto o narrador que, defendendo sua integridade, não soube ler os sinais do amigo à beira de desistir da vida quanto o ex-marido, escritor feliz e seguro de si, que vê o chão abrir-se aos seus pés e se descobre enganado, lamentam equívocos irreversíveis, buscam um renascimento possível. Nos dois casos, o foco é o processo difícil de fundar, na linguagem, uma identidade a partir de um punhado de cacos, reinventar-se no olho do furacão de uma crise essencial e que transcende os indivíduos isolados.
Para além das frágeis tentativas de lê-los como romans à clef, escarafunchando os detalhes que pudessem trair a possível identidade da gente de carne e osso por sob as personagens da trama (o que, sem entrar em considerações morais sobre os limites da arte, é compreensível do ponto de vista psicológico, mas sem repercussões sobre o valor estético, apenas na família e no círculo próximo de todo escritor, mesmo dos mais etéreos), ambos valem pela reconstituição metódica e crua das etapas da convalescença de criaturas subitamente desprovidas de couraça, como somos todos quando na muda. Não estão distantes da preocupação antiga de Lísias com a desordem entrópica que ronda toda modalidade de equilíbrio possível a suas criaturas, sempre precário e provisório, difícil e incomunicável, se não acomodado.
A linguagem alternando melancolia e euforia, furiosa e fora de si, vulcânica, não acomoda a angústia da descoberta da fragilidade – extravasa no corpo, somatiza as inseguranças, como toda boa ficção moderna, desde Dostoiévski, demonstra à exaustão. O sofrimento comunicante de corpo e alma, atravessado pelo fio tenso da linguagem, se revira em fórmulas verbais – paródicas, paranoicas, satíricas – de revide contra o mundo, escrita pouco acomodatícia, e dão um gume mais fundo a sua sátira, buscam alimentar um certo mal-estar na civilização que dá um passo adiante de seus primeiros livros.
Divórcio, assim como seu antecessor, é também um livro sobre a criação de um novo hábito, a cicatrização possível do eu sob a disciplina de uma nova rotina. Aprender a ler mandarim, conquistar a China, ou correr a São Silvestre são projetos que no percurso literário de Lísias se equivalem nesta finalidade de prover seus personagens de um esteio próprio ao enfrentar o mundo. Considerados do ponto de vista da economia narrativa, servem ao autor como elementos estruturalmente importantes, eixos cronológicos em torno do qual ele pode ordenar o feixe nervoso que compõe a identidade caótica e ameaçada de suas criaturas, gente como a gente, mas ainda criaturas de papel, protagonistas de vidas paralelas e convincentemente inventadas.
Literariamente, não falta coragem a Lísias, que arrisca e não teme as eventuais imperfeições estruturais que às vezes se infiltram no equilíbrio instável, contrastivo, de seu estilo, cindido entre uma ironia cândida, simplificadora, e o transporte de uma linguagem turbulenta, pura tempestade e ímpeto. Voltado tanto para as cismas da intimidade quanto para temas públicos, como a tortura ou os labirintos empresariais, senhor de seus recursos e paciente na construção sistemática de um projeto original, já se provou mais que aposta segura entre os novos da literatura brasileira. Tem voz singular e vem cobrindo de razão Leyla Perrone-Moisés, nos obrigando a fazer coro com sua antecessora remota, a Avó detrás do toco: o menino chegou longe.
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