O ataque à TC Telévision, em Guayaquil: o Equador se transformou num importante hub de exportação da cocaína, na rota do Pacífico. O lucro no transporte da mercadoria ultrapassa 1.500% CRÉDITO: CORTESIA TC/HANDOUT VIA REUTERS_2024
A guerra do Equador
A tragédia de uma democracia ameaçada por 22 facções do narcotráfico
Mónica Almeida | Edição 210, Março 2024
Tradução de Sérgio Molina e Rubia Prates
Eles começaram a chegar no início de dezembro sem dar explicações e se impuseram à força. Disseram que iriam proteger a comunidade de facções interessadas em roubar ou matar. Agora, apenas dois meses depois, já estão presentes em muitos bairros do noroeste de Guayaquil, uma região parecida com uma imensa colcha de retalhos de ruas e vielas que sobem e descem por pequenos morros, cobertos por barracos e casas inacabadas, onde falta luz, água encanada, escolas e parques. Os nomes desses bairros na cidade mais populosa do Equador, com 2,7 milhões de habitantes, às vezes remetem a um dos líderes que ocuparam aquelas terras, como Balerio Estacio, outras vezes são mais líricos, como Flor de Bastión. Em todos eles, a pobreza e as facções criminosas estão arraigadas.
Karina, que por medo das facções criminosas pede para omitir seu sobrenome, nasceu há 45 anos na província de Manabí, no noroeste do Equador. Desde 2001, vive numa dessas comunidades de Guayaquil, onde comprou um lote e logo ergueu sua casa. É empregada doméstica e ganha um salário mínimo por mês – 460 dólares (cerca de 2,3 mil reais). O grupo de homens e mulheres da facção que ocupou a comunidade em dezembro faz questão de ser chamado de La Guardia e passa na rua de Karina sempre aos sábados. Ela paga 1 dólar por semana de taxa de extorsão. O valor é baixo porque sua casa é bem pequena e fica próxima da via principal. Quem mora mais para dentro do bairro, em casas maiores, chega a pagar até 7 dólares por semana.
Da rua, os extorsionários chamam os moradores, que saem de suas casas para fazer o pagamento. É um ritual de humilhação em uma sociedade subjugada. Ninguém pode reclamar. Ninguém tem a quem recorrer. Uma moradora se queixou e foi ameaçada: pouco depois apareceu um grupo de motoqueiros para intimidá-la. Quando indagada se esses homens e mulheres têm alguma ligação com traficantes, Karina hesita um pouco. “Bom, eles devem ter mandantes, mas não sei…” Depois diz: “Quem manda mesmo no bairro são outros, que ficam observando à distância. Somos vigiados o tempo todo.” As facções se abastecem dos jovens desses bairros onde a esperança de encontrar emprego é quase nula e o futuro pode acabar na esquina. A tatuagem dos rapazes, escondida embaixo da camiseta, indica a que facção pertence cada um e qual o seu destino.
A polícia, que no Equador não é vista como um agente de violência e crimes, quase não passa nessas áreas, que por isso são consideradas perigosas. Na noite de 13 de janeiro, entretanto, algo diferente aconteceu. Os moradores viram desembarcar ali dezenas de militares. Amparados pelo drástico Decreto nº 111 assinado pelo presidente Daniel Noboa, eles chegaram a bordo de caminhões, espalharam-se por várias ruas e, desde então, podem usar suas armas letais sem hesitação. O decreto, emitido em 9 de janeiro, declara que o Equador vive um “conflito armado interno” – um eufemismo para referir-se à luta contra a expansão incontrolável do crime organizado – e convoca as Forças Armadas para enfrentarem 22 facções em todo país, com respaldo legal para o uso da força. É a primeira vez desde a volta do regime democrático em 1979 que isso acontece no Equador.
Desde o decreto, Karina não viu nenhum membro de La Guardia perto de sua casa, mas sabe que continuam cobrando a taxa semanal em outras áreas. “Eles têm medo dos militares”, diz ela, que, como milhões de equatorianos, apoia a medida do presidente de 36 anos, empossado no dia 23 de novembro. De acordo com uma pesquisa feita em janeiro, o governo tem 76% de aprovação.
A extorsão das facções – também chamada “vacina” – se espalhou como um vírus por todo o Equador, um país de 17 milhões de habitantes e um dos dois únicos da América do Sul que não faz fronteira com o Brasil (o outro é o Chile). No início dos anos 2000, a extorsão era aplicada esporadicamente e só nas zonas rurais próximas da fronteira com a Colômbia, onde transitavam membros das Farc, a narcoguerrilha colombiana, e de grupos paramilitares deste mesmo país. O sistema acabou chegando às áreas mais pobres de Guayaquil pelas mãos de facções equatorianas, e se espalhou para vários setores. A extorsão cobrada semanalmente salta para 1 mil ou 2 mil dólares por mês (entre 5 mil e 10 mil reais) para os donos de lojas e restaurantes em Guayaquil ou na capital Quito, variando conforme o tamanho do comércio. Para evitar pagar a “vacina”, alguns pequenos empresários optaram por colocar um cartaz de “vende-se” na fachada de seus estabelecimentos e trabalhar de portas fechadas, uma estratégia que provavelmente os protege apenas por um tempo. A maioria dessas pessoas extorquidas não registra nenhuma denúncia, prefere guardar silêncio.
Além da “vacina”, há o sequestro. A modalidade mais simples é a chamada express, na qual apenas levam a vítima até um caixa eletrônico para que ela saque dinheiro vivo. Depois a soltam numa via periférica qualquer. Às vezes, a retenção dura algumas horas, até a família pagar os 4 ou 5 mil dólares exigidos em troca da libertação. A variante mais complexa de sequestro é aquela que, muito bem planejada, pede um resgate milionário, dada a importância da vítima.
A extorsão realizada por La Guardia e paga por Karina é apenas a base da pirâmide de economias ilícitas vigentes no Equador. Conforme as facções locais vão ampliando seus negócios, acabam se ligando aos cartéis e máfias internacionais do narcotráfico. Uma professora universitária e ativista social que conhece esse problema de perto (e pede para manter seu nome em sigilo por receio da violência) diz que é preciso atacar todas as camadas dessa atividade. Da base à mais alta esfera, envolvendo pessoas do meio financeiro e gente que se dedica à lavagem de dinheiro ilegal na economia dolarizada do Equador.
O professor Luis Córdova concorda. Coordenador de um programa dedicado ao estudo da violência na Universidade Central do Equador, ele explica que é importante entender as diferentes configurações do que define como “governança criminal”, que “ocorre quando grupos criminosos controlam governos locais, populações e territórios, mas sem substituir o aparelho estatal: em vez disso, aproveitam seus recursos, funcionários e instituições para impor as próprias regras”. Há lugares em que as facções disputam com o Estado, como em Durán, cidade com cerca de 300 mil habitantes, vizinha de Guayaquil, onde o prefeito já não pode despachar na sede municipal. Há também enclaves criminosos financiados por empresas privadas, como em Esmeraldas, na fronteira com a Colômbia, voltados ao desmatamento ilegal.
É uma trama criminal com muitas variáveis, que vai corroendo os alicerces do país. Até poucos anos atrás, o Equador era considerado um lugar pacífico, com uma taxa de homicídios que não passava de 8,3 mortes violentas por 100 mil habitantes. No ano passado, tornou-se um dos mais violentos da América Latina, com 46,5 homicídios por 100 mil. É mais do que o dobro da taxa do Brasil, que nem de longe é considerado um oásis de segurança pública.
O primeiro domingo de 2024 não foi um dia normal no Equador. No início da noite de 7 de janeiro, o governo confirmou um rumor que já se espalhara pelas redes sociais: o temido José Adolfo Macías Villamar, conhecido como Fito, havia escapado do Presídio Regional de Guayaquil, um dos maiores do país. Ele é o chefe máximo de Los Choneros, a organização criminosa de maior visibilidade, criada em 1998 na cidade de Chone. A fuga aconteceu pelo portão principal. O presidiário saiu da cadeia vestindo um terno e era esperado por um veículo blindado, contou à piauí uma autoridade (que pediu para não ser identificada). Supõe-se que vazou a informação de que Macías, de 44 anos, seria transferido para o La Roca, um presídio de segurança máxima, e então ele resolveu fugir. Essa pode ser mesmo a causa, tanto mais que, quatro semanas antes, o presidente Noboa tinha dito em uma entrevista à Ecuadoradio: “Temos um belo plano, só não contem a Fito.”
Depois da fuga, uma onda de rebeliões se espalhou por seis presídios no dia 8, segunda-feira. O objetivo da revolta – especula-se – foi disseminar o caos no sistema penitenciário e manter os agentes da Polícia Nacional ocupados durante a escapada de Macías dentro do país. Os presos rebelados fizeram mais de duzentos reféns, entre agentes penitenciários e funcionários da administração. Em várias cidades, criminosos sequestraram policiais, incendiaram veículos, provocaram explosões, incluindo um posto de gasolina. O país ficou assustado, o que vem se tornando cada vez mais frequente com o crescimento, desde 2021, dos motins nas prisões e da violência nas grandes cidades.
Seguindo um roteiro já empregado por governos anteriores, o presidente Noboa assinou no mesmo dia 8 de janeiro um decreto de estado de exceção, com vigência de sessenta dias, restringindo o movimento para a maioria dos cidadãos das 23h às 5h e decretando uma zona de segurança no perímetro de 1 km em torno dos presídios. O decreto também autorizou que as Forças Armadas patrulhassem as cidades, realizassem operações policiais e até entrassem nas prisões, chamadas eufemisticamente de centros de reabilitação social. Os militares são muito respeitados no Equador, contando com uma aura heroica de “árbitros da democracia”. Na exposição de motivos, o Decreto nº 110 cita o aumento exponencial dos homicídios dolosos no país – de 4 859 em 2022 para 8 mil em 2023 – e o chamado Caso Metástase, no qual, a partir das mensagens trocadas por um narcotraficante assassinado na prisão, a procuradora-geral Diana Salazar revelou o envolvimento de juízes, promotores, políticos e empreiteiros com o narcotráfico.
O decreto chegou apenas dois meses depois que havia sido suspenso o estado de exceção decretado por Guillermo Lasso (2021-23), o presidente anterior. Lasso, um político de direita, próximo da Opus Dei, não chegou a completar seu mandato: decretou a antecipação das eleições executivas e legislativas para o mandato que acabará em maio de 2025. A medida de Noboa, divulgada no calor da hora, causou certa tranquilidade ao país, porque não se sabia o que a fuga de Macías poderia desencadear. Mas a calma durou pouco, muito pouco.
Às 14h15 de 9 de janeiro, a rede estatal TC Televisión, que tem grande audiência no país, estava transmitindo seu jornal local em Guayaquil quando um grupo de jovens armados entrou nos estúdios. Com máscaras e balaclavas cobrindo os rostos, eles carregavam granadas, bananas de dinamite, armas de fogo e estiletes. A invasão ocorreu sem resistência das pessoas que trabalhavam no local, de onde ninguém conseguiu escapar – e tudo foi transmitido ao vivo. Alguns funcionários chegaram a se esconder nos banheiros, mas foram arrancados de lá. Jornalistas, produtores e assistentes foram ameaçados pelo grupo armado, que obedecia a instruções transmitidas via celular e radiocomunicadores. Um jornalista ficou com um fuzil apontado contra o pescoço, enquanto era pressionado pelos invasores a pedir à polícia que não entrasse. Finalmente um dos criminosos declarou o objetivo da ação: “É para aprenderem que com a máfia não se brinca”, disse. Outros invasores gritavam: “Vamos matar um!” O sinal da tevê aberta foi cortado, mas o do cabo continuou por mais alguns minutos. A câmera enquadrava somente o set de gravação. Não se sabia o que estava acontecendo ao fundo. Cerca de meia hora mais tarde, ouviram-se tiros e gritos: “Não atirem!”
Quando a polícia conseguiu entrar no local, uma parte dos invasores levou os reféns para outro estúdio. Depois, o grupo armado se dispersou pelas instalações. Quando a situação ficou sob controle, os invasores foram desarmados. Lá dentro eram apenas treze, nenhum com mais de 26 anos. Do lado de fora da emissora, havia mais alguns comparsas, de vigia. O único ferido foi um operador de câmera, atingido com um tiro na perna.
Quase na mesma hora da invasão da TC Televisión, outro grupo fortemente armado atacou as instalações do Centro Comercial Albán Borja, um shopping em Guayaquil onde funciona a unidade de flagrantes do Ministério Público e vários juizados e tribunais. Primeiro, o grupo queimou um carro no estacionamento ao ar livre e provocou várias explosões. Dois guardas do shopping foram mortos, e duas mulheres, feridas. O grupo fugiu numa caminhonete. Durante a perseguição, houve troca de tiros e mais duas pessoas morreram: o conhecido cantor Diego Gallardo, de 31 anos, que tinha ido buscar o filho na escola, e o motorista de uma caminhonete municipal. Não se sabe se o objetivo do ataque foi apenas espalhar terror ou se os criminosos planejavam invadir as dependências judiciais – no que foram impedidos pela polícia.
Pouco depois das 15h do interminável 9 de janeiro, o presidente Noboa assinou um novo decreto, o 111, que complementava o do dia anterior, reconhecendo, logo no primeiro artigo, “a existência de um conflito armado interno” no Equador. A nova medida focava na “presença exacerbada do crime organizado”, que usa armamento de uso exclusivo das Forças Armadas e “se transformou num ator não estatal beligerante”. Apoiando-se no arcabouço legal da ONU e da OEA, classificou as 22 organizações criminosas como “terroristas”, inclusive algumas que a grande maioria dos equatorianos desconhecia: Águilas, ÁguilasKiller, Ak47, Caballeros Oscuros, ChoneKillers, Los Choneros, Corvicheros, Cuartel de las Feas, Cubanos, Fatales, Gánster, Kater Piler, Los Lagartos, Latin Kings, Los Lobos, Los p.27, Los Tiburones, Mafia 18, Mafia Trébol, Patrones, R7, Los Tiguerones. Antes de aparecer essa longa lista, dois relatórios policiais publicados no ano passado falavam em pouco mais de dez grupos de delinquência organizada (GDOs), como são chamados.
Em meio ao caos, os equatorianos não sabiam ao certo quem eram os responsáveis pelo ataque contra a TC Televisión, nem sua motivação. Os delinquentes não tinham feito um comunicado escrito nem havia um líder no local. Depois da insólita invasão do estúdio televisivo, do tiroteio no shopping center e da morte do cantor Gallardo, o Estado ainda não conseguira reassumir o controle das prisões, que continuavam em estado de rebelião. O alcance da medida governamental tampouco podia ser avaliado a fundo. O país estava numa guerra civil? Contra quem?
No mesmo dia 9, quando circulou o rumor de que um grupo criminoso tentara sequestrar estudantes numa das mais importantes universidades públicas do país, a de Guayaquil, algumas escolas de ensino superior fecharam as portas e passaram às aulas virtuais. (Era um rumor, apenas. A universidade não chegou a ser invadida.) As autoridades suspenderam as aulas nas escolas de ensino fundamental e médio pelo resto da semana. As grandes cidades entraram em pânico: o trânsito virou uma enorme confusão, pois todo mundo queria chegar logo em casa para se proteger, temendo ser vítima de alguma bala perdida ou de uma bomba. As facções tinham conseguido seu objetivo. O Equador estava convulsionado.
Em meio à anarquia no presídio de Riobamba, no centro do país, fugiu outro criminoso, Fabricio Colón Pico, um dos líderes de Los Lobos, facção que supostamente compete com Los Choneros. Ele é suspeito de envolvimento no assassinato do jornalista e candidato a presidente Fernando Villavicencio, em agosto do ano passado. A procuradora-geral do Estado, Diana Salazar, uma mulher de extraordinária coragem, afirmou que Colón também estava organizando um plano para assassiná-la. Ele havia sido preso em 5 de janeiro, sob a acusação de ter sequestrado o familiar de um líder de outra facção. A fuga de Macías e Colón expôs a incapacidade do governo para controlar os centros de detenção. No Equador, as prisões têm sido também usinas de massacres. Calcula-se que nos últimos três anos morreram mais de quatrocentas pessoas durante rebeliões nos presídios.
Os equatorianos ouvem falar de Los Choneros e de seu líder Macías há quinze anos. Sua facção criminosa tem como base o estado litorâneo de Manabí, onde fica um importante porto pesqueiro, na cidade de Manta. No ano passado, o portal Plan V publicou um documentário sobre Los Choneros (disponível no YouTube: Los Choneros, dos decadas de violencia), que mostra como a ascensão de Jorge Luis Zambrano González, conhecido como Rasquiña (literalmente, coceira ou comichão), ampliou a hegemonia da facção no controle das rotas de tráfico marítimo e estreitou seus laços com narcotraficantes da Colômbia e do México. Nessa época, o crime organizado começou a adotar a vuelta, como é conhecida a contratação de pescadores para entregar cargas de droga, combustível ou mantimentos aos navios-mãe em alto-mar. A cidade de Manta também é estratégica para o crime por estar situada a cerca de 1 mil quilômetros quase em linha reta das ilhas de Galápagos – e as rotas de abastecimento se estenderam também para esse arquipélago, longe do controle das autoridades continentais. Aos poucos, o país ia afundando na economia do narcotráfico.
Em 2011, o governo anunciou a detenção de Zambrano, Macías e outros chefes dos Choneros, que foram transferidos para La Roca, o inexpugnável presídio construído na periferia de Guayaquil. As prisões dos líderes deveriam acabar com esse capítulo aterrorizante. Mas não foi o que aconteceu. A despeito da alardeada segurança de La Roca, dois anos depois, aquele grupo de presos protagonizou uma fuga cinematográfica e, apesar de a polícia ter conseguido recapturá-los, logo se constatou que as lideranças haviam consolidado suas atividades criminosas desde dentro da prisão. Zambrano então foi transferido para a penitenciária de Latacunga, construída numa antiga área militar. Mas conseguiu se aliar com outras facções que atuavam sobretudo nos portos de Guayaquil e Esmeraldas, ampliando o alcance territorial de sua atividade criminosa. Foi quando começaram a aparecer os grupos Los Lobos, Los Tiguerones, ChoneKillers e Los Lagartos.
Na prisão, Zambrano formou-se em direito e andava sempre acompanhado de guarda-costas. Com a cooptação de membros do Poder Judiciário, conseguiu se beneficiar com uma redução de pena e obteve liberdade condicional em meados de 2020. Refugiou-se em Manta, como homem livre e dedicado aos seus negócios. Em 28 de dezembro, seis meses depois de obter a liberdade, foi assassinado num café do shopping de Manta. Até hoje o crime não foi esclarecido, mas especula-se que sua execução tenha sido ordenada pelos mexicanos do Cartel de Sinaloa, em resposta a algum assassinato cometido por ele.
Os relatórios de inteligência policial indicam que a eliminação de Zambrano provocou uma disputa pela liderança de Los Choneros, opondo dois chefes: Macías e Junior Alexander Roldán Paredes, conhecido como JR. Por uma estranha coincidência, os dois cumpriam pena por vários delitos graves na Penitenciária do Litoral, em Guayaquil. Novamente, o mesmo esquema: a prisão serviu para os criminosos ascenderem dentro da organização, segundo informações obtidas pela própria polícia.
Em 2021, o advogado de Zambrano, Harrison Salcedo, foi assassinado em Quito. Ele também defendia o ex-vice-presidente Jorge Glas Espinel, que se encontrava preso por associação ilícita no caso da empreiteira Odebrecht e de recebimento de suborno num esquema de corrupção do partido governista Alianza Pais (agora Revolución Ciudadana). A morte do advogado Salcedo foi a primeira de uma onda de assassinatos que tiraria a tranquilidade da capital equatoriana. Em novembro de 2022, Glas foi autorizado a deixar a prisão. Pelos chats investigados no Caso Metástase, suspeita-se que um narcotraficante pagou 250 mil dólares a um juiz para sua liberação. Agora, Glas está refugiado na Embaixada do México, furtando-se à convocação do Ministério Público.
Roldán, o suposto rival de Macías, deixou a prisão em liberdade condicional – por ter cumprido parte da pena – em fevereiro de 2023. Refugiou-se em El Triunfo, pequena cidade agrícola de 60 mil habitantes, próxima de Guayaquil. Tentaram matá-lo um mês depois, mas não conseguiram. Ele sumiu do mapa. Mas, em maio do ano passado, foi assassinado em Antioquia, na Colômbia. E, assim, com a morte do rival, a liderança de Macías se consolidou.
Um fator que pode ter contribuído para seu fortalecimento é o tráfico de combustível. O subsídio estatal aos combustíveis no Equador tem grande utilidade para os narcotraficantes peruanos e colombianos, que transformam até barcos de pesca em verdadeiros postos de gasolina flutuantes, estendendo o tráfico até Galápagos. O pagamento do combustível traficado não é necessariamente em dinheiro: a moeda de troca é muitas vezes armamento de grosso calibre – inclusive proveniente das Forças Armadas peruanas –, além de cocaína e seus resíduos. O equatoriano Édison “Gerald” Washington Prado Álava, detido na Colômbia em 2017 e extraditado para os Estados Unidos, é acusado de organizar esse mercado ilícito para o cartel mexicano de Sinaloa. Assim como Macías, a mulher de Prado enfrenta um processo por crime organizado em razão desse comércio ilícito.
Macías assumiu a liderança de Los Choneros, mas sua ascensão não foi unanimidade. As facções Los Lobos, ChoneKillers e Los Tiguerones, negando-se a reconhecer sua liderança, romperam com Los Choneros para crescerem por conta própria. Passaram a dominar vários pavilhões prisionais. Uma inscrição com as insígnias desses grupos foi encontrada em um presídio em 2022 com os dizeres: “Cartel Nueva Generación”.
A polícia suspeita que as rotas do Equador, de onde parte a cocaína produzida na Colômbia e no Peru, estão sendo disputadas pelos cartéis mexicanos. O Cartel Jalisco Nueva Generación (CJNG) briga por esse controle com o Cartel de Sinaloa. Também estão presentes no Equador as máfias calabresa e albanesa. Um dos principais criminosos albaneses, Dritan Rexhepi, foi detido em Quito, em 2014. Obteve liberdade condicional em 2021 e, ao que parece, burlou a obrigação de se apresentar à Justiça semanalmente enviando um substituto – até que apareceu na Turquia, no ano passado. Lá foi identificado como líder do Kompanio Bello, um dos grupos que controla a entrada de cocaína e heroína na Europa, e preso novamente. Segundo a Agência da União Europeia para a Cooperação Policial (Europol), Rexhepi se fortaleceu durante o tempo que esteve preso no Equador, na penitenciária de Latacunga, no centro do país.
Há muitos indícios de que a fuga de Macías em 7 de janeiro foi planejada. Em 2023, na sua queda de braço com o governo do então presidente Lasso, ele foi transferido outra vez para a prisão de segurança máxima La Roca. Ficou lá por poucas semanas, pois logo conseguiu que um juiz determinasse sua devolução à Penitenciária do Litoral. Ali, durante uma crise carcerária em julho do ano passado, Macías gravou um vídeo fazendo um apelo à paz entre as facções. Mas seria mesmo uma mensagem de paz ou de força? Que tipo de paz?
Em setembro, ainda na prisão, ele publicou no YouTube um vídeo em que dois cantores interpretam a música El corrido del león, no estilo narcocorrido – um gênero musical de origem mexicana que enaltece os líderes e as atividades do narcotráfico. A letra apresenta Macías como um “bom amigo, cheio de humildade”. As imagens mostram o traficante na época em que estava solto – de barba longa, estilo hipster e chapéu de palha – e sua filha, apresentada como Queen Michelle. No vídeo, Macías se autodenomina “o Leão”. Na mão direita, ele exibe dois pesados anéis de ouro com pedras preciosas, um estampando a cara de um leão, outro, a de um tigre.
Em 5 de janeiro, poucos dias antes da fuga, sua família mudou-se para uma luxuosa mansão na Argentina, num condomínio fechado nos arredores de Córdoba. As autoridades argentinas dizem que a propriedade foi comprada à vista em novembro passado por 300 mil dólares (cerca de 1,5 milhão de reais). A mulher do traficante, Inda Mariela Peñarrieta, uma enfermeira que trabalhava no hospital público de Manta, visitou a mansão em três ocasiões, até que se mudou de vez com os três filhos. O plano de Macías era viver ali sua aposentadoria? Quem o substituiria no Equador?
Com uma velocidade inusitada para a América Latina, a Argentina iniciou imediatamente uma investigação e pediu ajuda – por meio de um ato de colaboração penal internacional – do Equador, onde o caso estava a cargo do promotor da Unidade Nacional Especializada em Investigação do Crime Organizado Transnacional (Unidot, na sigla em espanhol), César Suárez. Em 17 de janeiro, mesmo dia em que acionou seus pares para lhe darem acesso às investigações abertas contra a mulher de Macías, o promotor foi assassinado em Guayaquil. Estava trabalhando em home office e não devia deixar sua residência. Aparentemente, recebeu uma ligação, saiu no próprio carro sem pedir proteção e foi alvejado por dezoito tiros.
A reação da Argentina foi contundente: o governo determinou a expulsão da família de Macías. A ministra de Segurança do país, Patricia Bullrich, rodeada de outras autoridades, tentou demonstrar pulso firme ao dizer em uma entrevista coletiva que “a Argentina é território hostil aos narcocriminosos”. Um avião militar equatoriano transportou Peñarrieta e seus filhos para Guayaquil, onde todos chegaram no dia 19 de janeiro. Em contraste com a rapidez argentina, as autoridades equatorianas não tinham nenhum processo em curso contra a mulher de Macías e, por isso, tiveram que libertá-la poucas horas depois da chegada. Ela havia sido absolvida num caso de lavagem de dinheiro envolvendo empresas que dirigia com os irmãos. Macías, até o fechamento desta reportagem, continuava desaparecido.
Para a procuradora-geral Diana Salazar, o assassinato do promotor César Suárez foi um golpe baixo. Com 42 anos, essa advogada afrodescendente – num país em que todos pretendem ter origem europeia – se impôs como uma autoridade que busca a justiça dentro de um sistema cooptado por criminosos de colarinho branco e narcotraficantes. “Apesar desses golpes que tentam nos intimidar, temos que continuar fortes até o último dia”, declarou ela numa entrevista. Salazar passou quase duas décadas na promotoria. Em 2019, assumiu o Ministério Público, ao vencer o concurso realizado pelo novo Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, formado depois de uma consulta popular promovida pelo presidente Lenín Moreno (2017-21), que permitiu a troca de todas as autoridades do país. Apesar da tristeza e da indignação pelo assassinato do promotor Suárez, ela disse se sentir confiante porque “às vezes é preciso tocar o fundo para começar a ver a luz, e acho que esse é o momento que o Equador está vivendo”.
Salazar esteve à frente do Caso Subornos, que condenou à revelia o ex-presidente Rafael Correa (2007-17) e o ex-vice-presidente Jorge Glas a oito anos de prisão, além de sentenciar outros funcionários do governo de ambos e também alguns empresários. O esquema envolvia o financiamento ilícito de campanha por empreiteiras contratadas pelo Estado, mediante o pagamento de faturas fraudulentas a fornecedores. O partido Revolución Ciudadana, de Rafael Correa, querendo neutralizar o rigor da procuradora, já pediu o impeachment de Salazar na Assembleia Nacional. Não teve sucesso, mas insiste em seu intento, embora os outros dois partidos que integram a coalizão governista continuem garantindo que não apoiarão a iniciativa.
Em 14 de dezembro passado, quando lançou a Operação Metástase, Salazar colocou o país em suspenso. A operação foi deslanchada depois da descoberta de mensagens de celular trocadas pelo narcotraficante Leandro Norero que mostravam o envolvimento de juízes, promotores, políticos e empreiteiros com os criminosos. Nesse dia, houve diversas diligências em várias cidades, com a detenção de mais de trinta pessoas, entre elas Wilman Terán, o presidente do Conselho da Magistratura – órgão máximo de decisão do Judiciário, incluindo o próprio Ministério Público –, e o general de polícia Pablo Ramírez, que até recentemente era o czar antinarcóticos do Equador. Outros juízes, promotores e advogados engrossaram a lista. Alguns fugiram do país, supostamente alertados por um tuíte do ex-presidente Rafael Correa.
As mensagens do narcotraficante Norero expuseram as relações de cumplicidade de diversas figuras com o crime organizado. Entre as conversas, fala-se inclusive em forjar um assalto contra uma jornalista com o objetivo de assassiná-la. Embora se recuse a definir o Equador como narcoestado, a definição de Salazar é aterrorizante: “O Caso Metástase é uma radiografia de como o narcotráfico tomou conta das instituições do Estado para, através do dinheiro ilícito, operar em instâncias judiciais e políticas a fim de obter impunidade em certos casos.” Muitos analistas asseguram que o Caso Metástase, pelas implicações nas altas esferas políticas, pode ser uma das causas da onda de violência iniciada em 7 de janeiro.
Norero havia integrado a gangue dos Ñetas, que, junto com a dos Latin Kings, entrou em processo de pacificação em 2009, durante o governo de Rafael Correa. Depois disso, Norero passou a atuar como empresário em Guayaquil, mas não abandonou os negócios ilícitos. Ao contrário: subiu alguns degraus na pirâmide do crime. Em 2014, chamou a atenção das autoridades do Peru por pagar dois peruanos para servirem de “mulas” no transporte de cocaína para a República Dominicana. Aproveitou a pandemia para se passar por morto, mas voltou à ativa em maio de 2022. A promotoria revistou sua mansão e encontrou lingotes de ouro, joias e dinheiro vivo, num total de 10 milhões de dólares. Especula-se que Norero também queria a paz entre as facções, mas, com a morte de Zambrano, em 2020, tentou disputar a liderança de Los Choneros com Macías, mudou de facção e passou a financiar Los Lobos, Los Tiguerones, Los Lagartos e ChoneKillers. Em outubro de 2022, Norero morreu, supostamente assassinado, durante uma rebelião no presídio em que estava encarcerado. Ninguém sabia da existência dos quinze celulares que ele mantinha na prisão com as mensagens comprometedoras, até que Salazar deflagrou a Operação Metástase.
Colômbia e Peru são os principais produtores de cocaína, mas o Equador se transformou num importante hub de exportação da droga, na chamada rota do Pacífico. De acordo com especialistas, o lucro no transporte da mercadoria ultrapassa 1.500%. Os cartéis mexicanos, que se impuseram sobre os colombianos, usam os portos equatorianos para suas exportações destinadas à Costa Oeste dos Estados Unidos, à Ásia e à Europa (via Canal do Panamá). O porto mais procurado é o de Guayaquil, um dos maiores da América Latina. Os contêineres de bananas e outros produtos são adulterados no porto ou em alto-mar para transportar cocaína.
Por causa da pandemia de Covid, em março de 2020 o consumo de cocaína explodiu na Europa. O porto belga de Antuérpia é considerado o centro europeu da droga, por isso o julgamento do líder da chamada Mocro Maffia – que atua na Bélgica e nos Países Baixos – provocou mortes e ameaças que chegaram até a princesa herdeira do trono holandês. À diferença dos Estados Unidos, os países europeus desenvolveram sistemas de investigação muito sofisticados que renderam bons resultados, diz o professor Luis Córdova, da Universidade Central do Equador.
Outro fator geopolítico desestabilizou a fronteira Norte do Equador: o acordo de paz entre as Farc e o governo colombiano, em 2016. Alguns grupos dissidentes das Farc, como a Frente Oliver Sinisterra, preferiram seguir por conta própria no negócio do tráfico de cocaína. Um dos líderes desse grupo, o equatoriano apelidado Guacho – homem de várias identidades, cujo nome verdadeiro é desconhecido –, sequestrou em 2018 três jornalistas do jornal El Comercio. Os jornalistas faziam reportagens na zona de fronteira a respeito de ataques a bomba contra um quartel da polícia em Esmeraldas. Supostamente, Guacho queria negociar a libertação de três dos seus homens presos. Os jornalistas foram assassinados em abril daquele ano, do lado colombiano. O crime marcou o ponto de não retorno do Equador na rota da violência – e atingiu a imprensa em cheio. Em 2023, nove jornalistas deixaram o país por causa de ameaças das facções do narcotráfico.
Os cartéis da droga também se transformaram em indústrias de lavagem de dinheiro. Nesse tópico, o Equador oferece a vantagem da dolarização de sua economia e da baixa bancarização. Em muitos relatórios de organismos internacionais destaca-se a debilidade da Unidade de Análise Financeira e Econômica (Uafe) – órgão dedicado a investigar e prevenir a lavagem de dinheiro –, e a ausência de uma legislação clara que dê poderes ao Estado para recuperar os bens e recursos obtidos com a lavagem de dinheiro. De acordo com um relatório da Uafe de 2023, em nove anos ocorreram apenas onze condenações por esse crime. Alguns dizem que o Equador se transformou numa lavanderia de 256 mil km².
Como é comum na América Latina, o país também fracassou em oferecer um serviço de reabilitação às pessoas presas. Um projeto elaborado pelo Ministério da Justiça durante o governo de Correa pretendia colocar a administração penitenciária a cargo de psicólogos, criminologistas e sociólogos. Mas esse desenho nunca se consolidou, diz o coronel da polícia Max Campos, especialista em segurança, que ocupou o cargo de vice-ministro do Interior e hoje está na reserva. Campos destaca que um dos principais problemas foi a criação de micromercados dentro das prisões com o propósito de ensinar os presos a conduzir um negócio. “Não houve controle, e o projeto se transformou numa economia ilegal forçada, pois os presos eram obrigados a comprar itens que não queriam e acabavam endividados; depois passaram a introduzir outros produtos, como drogas ou armas.” Campos aponta outro problema: a mudança realizada pelo presidente Lenín Moreno que acabou com o Ministério da Justiça e transformou a diretoria de Reabilitação no Serviço Nacional de Atenção Integral a Adultos Privados de Liberdade e Adolescentes Infratores (Snai), órgão que cuida dos 36 estabelecimentos prisionais do país.
Na Penitenciária do Litoral, a polícia informou que a disputa pelo controle do presídio é motivada pelo lucro que se pode obter em cada um dos pavilhões, em torno de 70 mil dólares por mês. Como essa prisão tem doze pavilhões, o ganho mensal chega a 840 mil dólares, ou 4,2 milhões de reais. A situação é tão grave que – como ocorre em prisões do Brasil – às vezes se pergunta ao preso ingressante a que facção ele pertence, para enviá-lo diretamente ao pavilhão correspondente. “Sabemos que eles têm armas e drogas escondidas”, diz Campos. “Os policiais e militares entram lá, mas não conseguem encontrar tudo.” De fato, cada vez que os militares entram nas prisões, a lista de produtos apreendidos aumenta. Por isso, Campos propõe que os presídios tenham um pavilhão vazio para transferir temporariamente os prisioneiros de suas celas, a fim de que os agentes possam revistá-las e encontrar objetos escondidos.
As buscas não se limitam às cadeias. Na tarde de 21 de janeiro, doze dias depois da edição do Decreto nº 111, as autoridades anunciaram a descoberta, numa chácara em Vinces, na província de Los Ríos, de um grande depósito subterrâneo com dezenas de pacotes de cocaína. No dia seguinte, a conta oficial bateu um recorde: 21,4 toneladas. Por ironia, a cidade era, no início do século XX, uma das mais ricas do país devido à exportação de cacau. A cocaína apreendida pode superar 1 bilhão de dólares em valor de mercado. Nos vídeos da apreensão, veem-se cartazes em cima dos sacos pretos dos fardos de droga com os nomes de companhias aéreas estrangeiras: KLM, Qatar, British Airlines. Um dia antes, foi localizado um semissubmersível na Costa de Esmeraldas com 3,2 toneladas de cocaína. O número de detidos nas últimas operações militares supera os 8 mil, que irão engrossar a população dos presídios. Será possível evitar que se repita o padrão de incorporar os detentos às facções dominantes?
Depois de seis semanas de vigência do estado de exceção, o presidente Noboa vinha conseguindo manter as rédeas da situação, apesar de sua pouca experiência. Empresário com três mestrados em administração pública e política em universidades americanas, Noboa foi a grande surpresa do primeiro turno das eleições antecipadas de agosto de 2023. O assassinato do candidato Villavicencio e o enfraquecimento dos outros dois favoritos beneficiaram um nome que estava apenas se aquecendo para a partida a ser jogada em 2025. Contrariando todas as previsões, no segundo turno Noboa superou Luisa González, a candidata do correismo, como se chama a corrente política do partido do ex-presidente Rafael Correa, que atualmente se encontra na Bélgica, onde pediu asilo. Seu pai, Álvaro Noboa, foi cinco vezes candidato à Presidência do Equador, sem sucesso. Seu avô, Luis Noboa Naranjo, que nunca incursionou na política, foi durante a segunda metade do século XX o homem mais rico do Equador, com negócios que envolviam transporte marítimo, moinhos de trigo e a exportação de bananas. Daniel Noboa é casado e pai de três filhos.
No dia seguinte à expulsão da família do narcotraficante Macías da Argentina, Noboa reiterou seu pedido de cooperação internacional, afirmando que a situação enfrentada pelo Equador é “um problema global”. Além da onda criminosa, das facções, do narcotráfico, o país está à beira de uma grave crise econômica, com um déficit fiscal que se aproxima dos 6 bilhões de dólares. Tudo isso justifica duas propostas urgentes enviadas ao Legislativo. A primeira para perdoar os juros de grandes devedores da União. A segunda para impor uma contribuição especial aos bancos e aumentar o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), que agora será de 13%. Da sua parte, Noboa anunciou que cortará 1 bilhão do orçamento estatal.
A outra jogada do presidente é fazer uma consulta popular – prevista para o mês de abril – com dez perguntas, entre elas se a extradição de cidadãos equatorianos deveria ser aprovada, se o Estado poderia tomar bens adquiridos com dinheiro ilícito e aumentar as penas dos crimes. O terceiro pilar de Noboa – além das Forças Armadas e a sua aliança parlamentar com a Revolución Ciudadana, de esquerda bolivariana, e o Partido Social Cristiano, de direita, ambos de tipo fisiológico – é o apoio dos Estados Unidos. Quando governava o país, Lenín Moreno se afastou dos russos e dos chineses e procurou retomar a relação com os americanos. Em 2019, autorizou que os Estados Unidos usassem uma pista em Galápagos para a aeronave de patrulhamento P-3 Orion. Aviões desse tipo monitoram navios no Oceano Pacífico. Com o presidente Lasso, os Estados Unidos também foram muito ativos na luta contra o narcotráfico e ofereceram ajuda para instalar detectores eletrônicos nos portos, algo que ainda não se concretizou. Antes de deixar o poder, Lasso assinou um acordo autorizando a entrada de tropas americanas no país.
O respaldo das Forças Armadas a Noboa é indiscutível, e os militares da reserva agora ocupam cargos de governadores e de comando em órgãos governamentais, como o Snai. Por ora, o presidente conta com boa aceitação, e a população, exausta de violência e crime, aprova a “mão forte” para controlar a delinquência e impor a ordem. A cada dia que passa, Noboa se consolida no exercício da sua função, melhora seu discurso e até agora não manifestou tendências autoritárias. Em uma entrevista para a CNN, em 17 de janeiro, fez questão de tomar distância do modelo do seu colega de El Salvador, Nayib Bukele, cujo combate sem trégua ao crime vem atropelando todas as leis e enveredando para um estado autoritário.
Na entrevista, em seu inglês impecável, Noboa disse que o Equador vive uma realidade diferente. Depois de uma breve pausa, refletiu: “Eu acredito na democracia, acredito num país unido. Embora não fosse necessário, pedi o apoio do Parlamento, que me deu respaldo unânime, e também consultei a Corte [Constitucional, equivalente ao STF brasileiro]. Estamos respeitando os vários poderes do Estado e, de modo democrático, estamos lutando pela paz e pelo progresso.” Só o tempo dirá se o jovem presidente cederá à tentação autoritária com o pretexto de controlar a narcoviolência. Sem investimento social nem crescimento econômico, será um desafio e tanto evitar a reprodução do ciclo de sempre.
Enquanto isso, na rua de Karina as coisas voltavam à velha ordem. No dia 20 de janeiro, sábado, os homens de La Guardia retomaram a rotina de passar em frente à sua casa. Depois de ouvir o chamado, ela abriu a porta e lhes entregou o dólar.
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