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    No Brasil, voa quem quer, a hora que bem entender, em qualquer modelo de helicóptero, a apenas 150 metros do chão. É comum os donos exigirem dos pilotos manobras ilegais de aterrissagem, como pousar no campo de futebol da casa de um amigo, voar mais baixo que o limite ou usar helipontos sem autorização da prefeitura FOTO: CASSIO VASCONCELLOS_SAMBAPHOTO

ir e vir

Aberração alada

Os congestionamentos de São Paulo sobem aos céus, fazendo da cidade um caso único no mundo

Fernanda Mena | Edição 22, Julho 2008

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A 150 metros de altura, São Paulo é uma colagem imóvel na qual o cinza predomina. Através da névoa de poluição, a monotonia gris do concreto, do asfalto e de telhas encardidas é atenuada, aqui e ali, por parques e praças verdes, piscinas azuis e pequenos objetos de todas as cores. O trabalho do repórter Geraldo Nunes, que há quase vinte anos sobrevoa a cidade diariamente, é verificar se essas coisas coloridas se movem: os 6 milhões de motos, carros, caminhões e ônibus que há hoje na cidade. Ao longo da última década, eles passaram a se mover mais lentamente. Nunes acompanhou de helicóptero o atravancamento da cidade em congestionamentos colossais, que chegam a se estender por até 170 quilômetros de veículos enfileirados. Dentro deles estão paulistanos que chegarão atrasados ao trabalho, crianças que perderão a primeira aula, mercadorias que não serão entregues no prazo.

Nos últimos tempos, Nunes se deu conta de que não procurava o movimento olhando para os carros lá embaixo, e sim para os veículos que passavam ao lado e acima de sua cabeça. Hoje, não há vôo em que não cruze com pelo menos outros cinco helicópteros. Sua conclusão: “Os congestionamentos chegaram aos céus de São Paulo.” Apesar de quase nunca transmitir boas notícias aos ouvintes da rádio Eldorado, o repórter prefere não se ver como um mensageiro alado do apocalipse urbano, já que sua missão é indicar as raras rotas com fluidez nos horários de pico. Mas, quando termina sua missão no céu e tem de encarar São Paulo de carro, ele suspira: “Se pudesse, certamente teria um helicóptero.”

Há dois anos, o empresário Renato Pereira Junior perdeu a paciência e trocou o carro blindado por uma lambreta e um helicóptero americano Robinson, modelo R44, de quatro lugares. De calça jeans, camiseta pólo e tênis, ele entrou na sala VIP de um hangar do Campo de Marte, na zona norte paulistana, e jogou a jaqueta esportiva num sofá de couro. “O trajeto que levo três horas para fazer de carro, toma trinta minutos de moto e menos de cinco de helicóptero”, disse. O piloto entrou na sala e anunciou que tudo estava pronto. Pereira checou o celular, pegou a jaqueta e saiu em direção ao helicóptero, que o aguardava com as portas abertas e as hélices em alta rotação.

Nos últimos dezesseis anos, a frota brasileira de helicópteros cresceu 228%. Ela saltou de 331 para 1 101 aeronaves, o que impulsionou o país para o sexto lugar no ranking mundial. Na capital paulista circulam 600 deles, ficando atrás apenas de Nova York. Até o final do ano, mais de cinqüenta novos se juntarão ao enxame paulistano. O aquecimento da economia, o câmbio favorável, o medo de assaltos, além dos congestionamentos, provocaram outro tipo de engarrafamento: os fabricantes recebem tantos pedidos, que um helicóptero encomendado hoje só será entregue no prazo de um a dois anos. Com isso, os modelos usados, disponíveis logo após a compensação do cheque, estão saindo mais caro que um zero-quilômetro.

Direto da fábrica, o mais barato é o Robinson R22, o modelo alugado pela rádio Eldorado para Geraldo Nunes. Ele custa 300 mil dólares, tem lugar para piloto e acompanhante, e motor a pistão que atinge 190 quilômetros por hora. “Gente com a Ferrari parada na garagem não imagina que, pelo mesmo preço, poderia estar voando de helicóptero”, disse Gualter Garcez Pizzi, diretor comercial da Audi Helicópteros, representante Robinson no Brasil.

Na outra ponta estão modelos que custam mais que uma Mega-Sena: 13 milhões de dólares. Nessa faixa está o usado pela família real britânica, o S76 C++, da americana Sikorsky (sobrenome do ucraniano Igor Ivanovich, que projetou os primeiros helicópteros). Ele voa a quase 300 quilômetros por hora e leva doze passageiros, além de piloto e co-piloto. Na configuração executiva, em que conforto e beleza contam mais que o número de passageiros, o helicóptero dispõe de seis poltronas ergonômicas de couro e espaço para instalar bar refrigerado, revisteiro, armários, gavetas, iluminação interna direcional e até duas telas de plasma.

Há apenas quatro Sikorsky executivos no Brasil. Um deles pertence ao estado de São Paulo e é usado pelo governador José Serra. Da versão de doze lugares há sessenta unidades. Boa parte deles voa entre a costa e as plataformas de petróleo em alto-mar. Com a descoberta de reservas em águas profundas, o setor se aquecerá ainda mais. Um S76 C++ executivo de última geração chegará a São Paulo no segundo semestre. “Como assinamos um contrato de confidencialidade, só posso falar que é um helicóptero para uso privado”, disse Marcos de Souza Dantas, representante da Sikorsky há mais de vinte anos.

Confidencialidade é termo corriqueiro no meio. “Ninguém quer publicidade em cima de helicóptero porque ele chama ladrão, chama seqüestrador, chama fiscalização e escandaliza a sociedade”, afirmou o dono de um dos três heliportos de São Paulo, que também pediu anonimato.

 

Renato Pereira Junior ajustou o cinto de segurança, botou o fone nos ouvidos, acertou a posição do microfone e apertou um dos inúmeros botões do painel. Com a mão esquerda, segurou o comando coletivo, um manche de movimento vertical que faz o helicóptero subir e descer. Passou os olhos nos instrumentos de navegação e firmou a mão direita no cíclico, a haste bem na sua frente, sensível a deslocamentos milimétricos, acionada como um joystick. A máquina levantou vôo. No ar, Pereira tem de mover o braço esquerdo para cima, alternar os pés nos pedais e inclinar o braço direito ora para um lado e ora para o outro. Como ele adora pilotar, a viagem para uma reunião de negócios em Resende, a 250 quilômetros de São Paulo, virou passeio.

“O executivo de hoje é aquele que trocou o escritório por um celular BlackBerry e o carro por um helicóptero”, explicou o francês Julien Negrel, diretor comercial da Helibras, que teve um faturamento de mais de 90 milhões de dólares no ano passado. A empresa tem em Itajubá, no interior de Minas Gerais, a única linha de montagem de helicópteros da América Latina. É de lá que saem os aparelhos da marca franco-alemã Eurocopter. A companhia é líder no segmento de helicópteros de uma turbina, caso do Esquilo, que leva cinco passageiros e custa 3 milhões de dólares. É o modelo do Globocop, da Globo, e do Águia Dourada, da Record.

A advogada Márcia Varioletti mora há um quarto de século na mesma casa, no Butantã. Está viva em sua memória a época em que os ruídos na vizinhança se limitavam ao grito de crianças brincando ou de cães latindo na rua. “Hoje, é como se eu morasse dentro de um heliporto”, disse. Na sala de sua casa, cristais trepidam. Falar ao telefone se tornou cada vez mais difícil devido ao barulho dos helicópteros que passam pelo bairro. A cada oito minutos, de manhã à noite, ela escuta o pouso ou a decolagem de um helicóptero nas redondezas.

“São 600 helicópteros em detrimento de 10 milhões de habitantes”, disse Márcia, que coordena um grupo sobre o tema no Movimento Defenda São Paulo, organização não-governamental formada por arquitetos, urbanistas e moradores. “Por descaso ou incompetência, as autoridades não conseguem elaborar uma política pública para os helicópteros. E em ano eleitoral é pior: ninguém quer mexer com o glamour desses empresários que se acham os James Bond dos ares.” Um projeto para regulamentar o tráfego de helicópteros na capital foi submetido à consulta pública em fevereiro de 2007. Até hoje não saiu do papel.

Em março, o consórcio ítalo-britânico AgustaWestland entregou duas unidades do modelo decorado pela grife Versace. Ele tem bancos em couro branco, revestimento em vinil e muitos detalhes em vidro. Um foi arrematado por uma empresa italiana. O outro, pela romena Tiriac Air, empresa aérea do ex-tenista romeno Ion Tiriac, que batizou seu brinquedo vertendo uma garrafa de espumante no bico alongado da aeronave.

A AgustaWestland também fabrica os helicópteros usados pela família Klein, das Casas Bahia, e pelos Diniz, do Grupo Pão de Açúcar. O banqueiro Joseph Safra prefere os fabricados pela americana Bell. Ele voa num modelo avaliado em 8,5 milhões de dólares. Também era da Bell o helicóptero usado pelo traficante colombiano Juan Carlos Abadia, antes de ser preso nas imediações de São Paulo.

 

“Nos últimos três anos, houve um crescimento da demanda por helicópteros no mundo todo” explicou Secondo Viglieno, administrador local da AgustaWestland. “Mas no Brasil o crescimento foi ainda maior do que a média mundial.” Entre 2009 e 2010, a empresa planeja entregar setenta novos helicópteros já encomendados por brasileiros. Cinqüenta e três deles terão São Paulo como destino.

Os custos de manutenção de um helicóptero podem chegar a 1 milhão de reais ao ano, somando o aluguel do hangar, o preço do combustível (150% mais caro que o dos automóveis), as revisões periódicas, o seguro e o salário do piloto, que varia de 4 mil a 20 mil reais por mês. “Se você computar o preço de compra e da manutenção, e dividi-lo pelas horas voadas, a conta não fecha de jeito nenhum”, disse Rogério Andrade, presidente da HeliSolutions, que implantou no Brasil o sistema de propriedade compartilhada.

Nesse sistema, o cliente adquire 10% do valor de um helicóptero, algo entre 60 mil e 300 mil dólares, e paga uma mensalidade de até 10 mil reais para ter direito a dez horas de vôo no mesmo período. “É um negócio muito vantajoso”, disse Andrade. “De cara, resolve-se o problema da segurança: o executivo pode economizar guarda-costas, já que vai se locomover pelos ares.” Andrade tem 200 clientes cadastrados e doze helicópteros na empresa. “A estratégia é convencer o cliente de que ele não precisa comprar um helicóptero, de que pode parecer bacana apenas desembarcando de um”, disse.

 

No final de maio, em Itirapina, no interior paulista, dezenas de jatinhos e helicópteros lotavam o gramado da fazenda do empresário Fernando de Arruda Botelho, vice-presidente do grupo Camargo Corrêa. Há dez anos, perto de seu aniversário, Botelho reúne amigos que têm jatos e helicópteros e anônimos amantes da aviação para o que se tornou o maior encontro privado sobre o assunto no país. Durante todo o final de semana, os convidados assistiram a palestras de autoridades do ministério da Defesa, shows aéreos e exposições de aeronaves — além de trocarem informações sobre novos modelos e futuros lançamentos.

Botelho mandou construir na sua fazenda uma pista de pouso de 1 200 metros, uma torre de controle, estacionamento para mil automóveis e uma praça de alimentação como as de shopping centers. O público era uma mistura de famílias de classe média da região, milionários de casacos de couro em estilo aviador e mulheres de boné, tênis, coletes de pele e bolsas Louis Vuitton. Num dos hangares, foram montados estandes da Aeronáutica, de associações de pilotos, de companhias de táxi aéreo e de representantes de jatos. Num deles era possível encomendar um helicóptero da AgustaWestland por 10 milhões de dólares.

De agasalho esportivo, jaqueta de náilon, boné e óculos escuros, Botelho recebia os convidados com abraços e tapinhas nas costas. “Helicóptero não é luxo nem coisa de rico, é uma ferramenta de trabalho”, afirmou. “Sem ele, demoro uma hora e meia para chegar na Fiesp. Ida e volta, são três horas num dia de trabalho de oito horas. É só fazer as contas e ver o prejuízo que eu levo ficando parado no trânsito.”

Um estudo da RCI First Security and Intelligence Advising mostra que, de carro, um executivo consegue fazer 1,6 reuniões por dia em São Paulo. Se usa helicóptero, a média sobe para 3,8 encontros de negócios. Diariamente, 800 novos carros passam a circular em São Paulo. A frota de veículos cresce num ritmo quinze vezes maior que o da população. No dia 9 de maio, a cidade bateu o recorde de congestionamentos, com 266 quilômetros de vias atravancadas. Os motoristas levaram em média três horas para percorrer uma distância de 15 quilômetros. Nas condições habituais, o trajeto poderia ser feito em dezessete minutos. Um levantamento do CitiGroup sustenta que o trânsito reduz a produtividade brasileira em 5%.

No encontro de Arruda Botelho, só quem exibia uma pulseira fluorescente podia entrar no estande da Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, onde eram servidos espumante e canapés. Um deles era Paulo Setúbal, dono do Banco Itaú. “Eu sou do MSH, o Movimento dos Sem-Helicóptero”, disse, bem-humorado. “Helicóptero é um brinquedo muito caro e, depois que você compra, fica criando motivo para usar, inventando moda.” Quando precisa de rapidez, Paulo Setúbal se vale dos serviços de táxi aéreo, que cobram entre 800 reais e 9 mil reais por hora de vôo.

Amigos e parentes de Setúbal costumam ir de helicóptero para suas casas de praia no Condomínio Laranjeiras, perto de Paraty, no litoral sul do Rio. O banqueiro acha isso bobagem: “Eu sempre digo: se você quiser chegar em Laranjeiras e ficar tranqüilo, vá de carro. Helicóptero é enrolado, depende da meteorologia, da temperatura, de um monte de coisas. Você está lá, tomando uma caipirinha, e de repente vem o piloto apressado dizendo que o tempo vai fechar e que precisamos voltar correndo para São Paulo. É um saco.”

 

No final de maio, o helicóptero do usineiro Rubens Ometto, do grupo Cosan, desembarcou passageiros no heliponto do Condomínio Laranjeiras e levantou vôo em seguida. Percorreu 500 metros e caiu no mar, matando o piloto e co-piloto. Há dezesseis anos, o deputado Ulysses Guimarães, o ex-senador Severo Gomes e as esposas de ambos também morreram na mesma região. O tempo estava fechado quando o grupo saiu de Angra dos Reis num Esquilo branco do empresário Jorge Chammas Neto, do Moinho São Jorge. “Um acidente de helicóptero é uma confluência de vários erros, por mínimos que sejam”, explicou Chammas Neto. Um experimentado dono de helicóptero me disse que, naquele acidente, pode ter ocorrido um único erro: “Como se não bastasse estar voando no helicóptero de um empresário, Ulysses Guimarães deve ter pressionado o piloto a decolar, mesmo sem condições de vôo. Pelo que vi e sei, muita gente faz isso.”

De acordo com o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes da Aeronáutica, houve dezenove acidentes com helicópteros no ano passado, com um saldo de doze mortos. Na aviação comercial, ocorreram 78 desastres no mesmo período, incluindo o acidente com o Airbus da TAM, em Congonhas, que vitimou 199 pessoas. “Proporcionalmente, há menos acidentes com aviões, mas a chance de sobrevivência na queda de um helicóptero é incomparavelmente maior”, afirmou Ricardo Hein, tenente-coronel responsável pela unidade na capital paulista. No mesmo ano, 1 843 pessoas morreram em acidentes de trânsito em São Paulo.

 

Sobreposta ao mapa da cidade, existe a cartografia das rotas de helicópteros. Assim como ocorre com os jatos comerciais, eles também só podem circular por aerovias específicas, geralmente de mão única, desenhadas para ordenar o tráfego aéreo. No começo da década, quando a frota de helicópteros era um terço menor do que a atual, voar neles em São Paulo era temerário. A ordem de ocupação da aerovia, por exemplo, era definida pelos próprios pilotos, que se valiam de freqüências de rádio para estabelecer a prioridade no pouso e na ultrapassagem. Interferências de estações piratas, ou de antenas, faziam com que a troca de mensagens entre eles fosse truncada. No aeroporto de Congonhas, helicópteros invadiam sem aviso o trajeto de pouso dos aviões, que eram alertados do problema em cima da hora e obrigados a arremeter.

“Pensou-se em proibir o uso de helicópteros nos arredores de Congonhas, mas acontece que a cidade que concentra um quarto do PIB nacional não proporciona aos empresários e executivos um transporte eficiente e seguro”, disse o tenente Bruno Pinto Barbosa, responsável pelo Serviço de Proteção de Vôo de São Paulo. “Como cada um deles emprega 30, 40 mil pessoas, precisávamos garantir que eles pudessem circular.”

Em 2004, foi implantado em São Paulo um sistema de controle exclusivo para os helicópteros que não existe em nenhuma outra cidade. Desde então, ao se aproximar de um quadrilátero de 120 quilômetros quadrados — que engloba as avenidas Paulista, Faria Lima e Luis Carlos Berrini, os estádios do Morumbi, do Pacaembu e o Parque Antártica, e o campus da Universidade de São Paulo -, o helicóptero deve se identificar com seu número de inscrição, informar a rota pretendida e aguardar a autorização para prosseguir. São monitorados, no máximo, oito helicópteros simultaneamente. A medida irritou os pilotos, contrariou os proprietários, mas tornou o pouso e a decolagem em Congonhas mais seguros.

 

De pé, entre cinco controladores espremidos em cerca de 30 metros quadrados, o tenente Pinto Barbosa observava o céu através dos vidros da torre de Congonhas. Sua equipe ocupa um lugar cinco vezes menor do que o da torre do aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas, onde o fluxo de aeronaves é várias vezes inferior ao da capital. Como a torre, que lembra a cabeça de um parafuso hexagonal, é tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional, nenhuma ampliação é autorizada.

Um controlador acompanhava numa tela de cristal líquido números azuis em movimento (helicópteros) ao redor de um quadrado de contorno amarelo (a área vigiada pela equipe). Um Airbus manobrava na cabeceira da pista, preparando a decolagem. “Papa tango hotel kilo golf, efetuar espera na rota Pinheiros sobre a raia olímpica”, disse o controlador pelo rádio. A frase cifrada orientava o helicóptero de prefixo PT-HKG a aguardar, para evitar congestionamento na área sobre Congonhas.

O controle exclusivo para helicópteros de São Paulo já foi visitado por comitivas russas, espanholas e chinesas. “Os chineses perguntaram quanto cobrávamos pelo serviço e, quando souberam que a gente não cobra nada, disseram que nós, capitalistas, éramos mesmo esquisitos”, contou Carlos Heredia, consultor da Aeronáutica que ajudou a desenvolver o sistema.

Em Paris, o tráfego aéreo sobre a cidade é proibido. Em Londres, só se pode voar a mais de 300 metros de altura, em horários determinados. Em Nova York, apenas aparelhos de serviço, como ambulância e polícia, circulam livremente. Helicópteros privados são instruídos a voar sobre o rio Hudson. Em 1977, um acidente no alto do edifício da Pan Am matou quatro passageiros que aguardavam o embarque e um pedestre, atingido na rua pelos escombros do helicóptero. Desde então, os helipontos no alto de edifícios foram proibidos na ilha de Manhattan. Só é possível pousar nos heliportos na beira-rio.

No Brasil, voa quem quer, na hora que bem entender, em qualquer modelo de helicóptero, a uma altura de apenas 150 metros. Também não há restrição aos helipontos no alto dos edifícios. Só na área vigiada pela equipe especial da Aeronáutica, há mais de 130 deles, formando a maior concentração de helipontos do mundo. O número deles na cidade é 50% maior do que os de todo o Reino Unido. Dos 360 helipontos da Grande São Paulo, 210 ficam em prédios. Por uma norma da aviação civil, helipontos que ficam a menos de 500 metros de outro devem estar em um desnível de pelo menos 60 metros de distância. Mas basta um vôo de alguns minutos para se perceber que os helipontos se agrupam quase continuamente.

Mesmo com tantas opções de pouso, é comum que proprietários exijam que seus pilotos executem manobras ilegais de aterrissagem, como pousar no campo de futebol da casa de um amigo, voar mais baixo do que o limite ou usar helipontos improvisados, que funcionam sem autorização da Prefeitura. “O milionário é, antes de tudo, um cara prepotente, que acha que você tem que pousar onde ele quiser”, disse Cleber Teixeira Mansur, comandante há 29 anos e presidente da Associação Brasileira de Pilotos de Helicópteros. “Se o empresário pega um piloto muito novo, que briga para manter o emprego, ele acaba cedendo à pressão do patrão e faz o que não pode”, disse.

Uma prática recorrente, segundo Mansur, é o desligamento do transponder, o aparelho que informa à torre de controle a posição exata da aeronave. “O patrão força a barra e, sabendo que a torre não vai autorizar o pouso, o piloto desliga o transponder“, disse ele. “Assim, a torre não consegue distinguir o que é prédio e o que é aeronave. É uma loucura. Eu não topo essas coisas: sou muito mais útil desempregado do que morto.” Há mais de 800 pilotos profissionais de helicóptero em São Paulo.

 

Numa manhã ensolarada de maio, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Boni, que comandou a Rede Globo por três décadas, chegou ao aeroporto de Jacarepaguá, na zona oeste carioca, e seu EC-135 estava pronto para decolar. Avaliado em 7 milhões de dólares, o helicóptero foi adquirido pelo sistema de leasing, um aluguel que permite a compra no final de um período. Os custos de manutenção são de 30 mil dólares ao ano. Boni amortiza a despesa alugando o helicóptero para vôos offshore das exploradoras de petróleo. Ele calcula que, com isso, conseguirá pagar tanto as parcelas do leasing quanto o salário do piloto.

Boni ia a São Paulo participar da entrega de um prêmio, e faria uma escala em Santos para encontrar um velho amigo. Apertou o cinto de segurança e me explicou como ajustar uma bóia inflável na cintura. “Fica com ela aí no seu colo”, afirmou. “No acidente do Diniz, essas bóias deviam estar guardadas no porta-malas do helicóptero: deu no que deu”, disse. Ele se referia ao acidente com um Agusta que caiu no mar de Maresias, no litoral norte paulista, com o empresário João Paulo Diniz e a modelo Fernanda Vogel a bordo. A modelo e o piloto morreram. Diniz e o co-piloto se salvaram.

O helicóptero subiu na diagonal, bem devagar. A vibração era mínima, o ruído interno, baixíssimo e a paisagem, idílica: o verde vivo da Mata Atlântica emoldurava praias de areia clara e um mar azul turquesa. Ao avistar uma torre de televisão, Boni se animou: “Está vendo aquela antena no alto do morro? É da Vanguarda”, disse, orgulhoso, sobre a emissora de sua propriedade, que transmite o sinal da Globo para todo o Vale do Paraíba.

Ele começou a andar de helicóptero quando dirigia a Globo. “Acostumei rapidinho a voar porque é bom demais”, disse. Ao deixar a rede, há dez anos, comprou um. “Virou uma necessidade: eu moro no Rio, tenho negócios em São Paulo e uma vez por semana vou a São José dos Campos para cuidar da Vanguarda”, afirmou. “Não tenho como fazer tudo isso de carro.” Ele disse também que, se usasse helicóptero só para ir a sua casa em Angra, nos fins de semana, não teria um. “Mas sem dúvida alugaria um: cinco amigos meus morreram em desastres de carro entre Angra e o Rio.”

Quando desembarcamos em Santos, Boni avisou: “Vamos ficar aqui no máximo duas horas porque está chegando um ciclone extratropical ao litoral de Santa Catarina, e ele vai mexer com o tempo daqui.” Uma hora depois, decolávamos novamente. Quinze minutos haviam se passado e as casas e edifícios cinzentos de São Paulo tomaram forma. Boni apontou outros quatro helicópteros a nossa volta. “Não tem lugar no mundo que seja como São Paulo no quesito trânsito de helicópteros”, disse. “É uma aberração. Uma cidade congestionada embaixo e com o céu coalhado de helicópteros.”

No final de junho, numa reportagem sobre a São Paulo dos helicópteros, o jornal inglês The Guardian afirmou que, assim como o Rio de Janeiro é uma cidade dividida entre miseráveis que vivem em morros de favelas e milionários que moram à beira-mar, em São Paulo a divisão é invertida. Os milionários circulam pelo céu entre condomínios de luxo, resorts na praia e reuniões de negócios, escreveu o repórter Tom Phillips, “enquanto a grande maioria dos moradores se amontoa numa orgia de congestionamentos e trombadas de motos”.

Além de ter o maior centro de serviços para helicópteros da América Latina, o Helipark, nas imediações de São Paulo, tem também o maior heliporto da cidade. Ali é possível blindar, mudar a pintura, consertar e fazer inspeções de rotina. A entrada lembra o saguão de um hotel cinco estrelas. Através de uma grande porta de vidro, aberta por meio de um sensor de presença, vê-se a pista de decolagem e nove pontos de pouso. Ao fundo, avistam-se as centenas de casebres em tijolo aparente de uma das favelas de Carapicuíba.

Em uma manhã de maio, debruçados sobre pranchetas e manuais, mecânicos estudavam os detalhes de trinta helicópteros que estavam em um dos hangares do Helipark. O trabalho requer o conhecimento das 150 mil peças rosqueadas, encaixadas e articuladas que fazem funcionar um helicóptero. Cada peça, cada ruela, cada porca ou parafuso deve ter um certificado assinado por técnicos do fabricante e um código de rastreamento para garantir sua autenticidade. Algumas delas são enviadas para análises em laboratórios, única maneira de detectar microtrincas ou rachaduras invisíveis ao olho humano. O manual de um helicóptero chega a medir um palmo de espessura.

“Isso tudo aqui não é o máximo que se pode fazer em termos de manutenção de helicópteros, é o mínimo”, explicou Élson Sterque, diretor técnico do Helipark, ex-funcionário do Departamento de Aviação Civil, o extinto DAC. “O helicóptero é um bicho que voa sem querer voar, porque ele tem tantos desgastes que é como se ele quisesse se autodestruir o tempo todo.”

Recentemente, um potencial comprador havia enviado um modelo Bell para uma inspeção no Helipark antes de fechar o negócio. O responsável pelo controle técnico desconfiou da procedência de duas das pás da hélice traseira. Ele consultou o código de rastreamento das peças e confirmou a suspeita: os números de série pertenciam a um helicóptero do exército mexicano e a um modelo policial dos Estados Unidos. Ou seja: falsas como as de um helicóptero submarino. O especialista desaconselhou a compra.

 

Em novembro de 2005, o repórter aéreo Geraldo Nunes procurava os melhores trajetos para se mover em São Paulo no rush matinal. Minutos depois de atingir a altitude de cruzeiro, uma inédita luz amarela acendeu no painel do R22. Nunes estranhou, mas o piloto o tranqüilizou. Uma das correias que levam energia ao motor havia entrado em pane, mas uma segunda passou a funcionar imediatamente. Nunes continuou fazendo suas anotações para entrar no ar ao vivo na programação da Eldorado.

Um cheiro forte de queimado então tomou conta do aparelho. Era a segunda correia derretendo como manteiga, a 150 metros do chão. Um alarme ecoou dentro da cabine. “Foi o som mais desesperador que já ouvi”, lembrou Nunes. O helicóptero entrou em auto-rotação, quando a hélice se move livremente, sem a força do motor. A única alternativa era buscar um local para a queda iminente. O piloto optou pela Marginal Pinheiros, uma das vias mais movimentadas da cidade.

Alguns motoristas acompanharam a lenta e desgovernada descida do helicóptero, que ameaçava cair sobre suas cabeças. Alguns carros frearam e outros aceleraram. Um deles atingiu o trem de pouso do R22, arremessando o aparelho sob um viaduto. A cabine virou de cabeça para baixo. Nunes ficou pendurado pelo cinto de segurança a 1 metro do chão. O piloto e o repórter aéreo saíram ilesos. Mas involuntariamente provocaram um congestionamento de mais de 100 quilômetros em São Paulo.