ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
Ação e reação
Um prêmio Nobel morre pela boca
Bernardo Esteves | Edição 106, Julho 2015
Cerca de uma centena de convidados estava reunida para o almoço num salão amplo em Seul. Aquela segunda-feira de junho era o primeiro dia da Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência, e muitos deles estavam com ar sonolento, castigados pela diferença de fuso horário. Tinham diante de si duas caixas de madeira com uma ampla variedade de iguarias coreanas.
De hashis em punho, alguns comensais já atacavam seu conteúdo quando um cientista inglês de bochechas rosadas e ar bonachão foi chamado a lhes dirigir algumas palavras. Vestindo uma camisa azul de estampa florida que lhe dava certo ar de turista, o pesquisador assumiu o microfone a convite das promotoras do almoço, representantes de uma associação que luta pela igualdade de gêneros na ciência e tecnologia na Coreia do Sul.
Ninguém dava muita bola ao seu discurso até ele dizer que tinha “a reputação de um macho chauvinista” e assinalar a ironia de estar ali. “Meu problema com as garotas é o seguinte”, anunciou para a plateia, que agora lhe dava toda a atenção. “Três coisas acontecem quando elas estão num laboratório. Você se apaixona por elas, elas se apaixonam por você e, quando você vai criticá-las, elas choram.” Disse ainda que seria mais produtivo que houvesse laboratórios segregados por sexo.
As palavras soavam ainda mais inacreditáveis por virem de um dos convidados ilustres do evento – sir Tim Hunt, bioquímico inglês ganhador do Nobel de Medicina, em 2001, por seus estudos sobre divisão celular. Hunt é ele próprio casado com uma imunologista bem-sucedida, da prestigiosa University College de Londres, mas não se referiu à mulher em sua fala.
Dias depois, ao tentar se justificar, o cientista alegou que aquele era para ser um comentário irônico. Ele queria fazer graça, mas ninguém riu. O breve silêncio de consternação que precedeu os aplausos protocolares ao fim do discurso talvez tenha servido como um alerta de que aqueles comentários iriam lhe custar caro.
Tim Hunt pegou no contrapé uma audiência que estava ali para discutir a questão de gênero. É notória a sub-representação das mulheres nos cargos mais altos da hierarquia científica. Nas instituições americanas mais prestigiosas de pesquisa biomédica, elas são apenas um quinto dos professores titulares, embora respondam por metade dos diplomas de doutorado. Dos 575 prêmios Nobel concedidos desde 1901 para as ciências naturais, apenas 17 (ou 3%) foram para pesquisadoras. O padrão se repete por aqui: na Academia Brasileira de Ciências, só 13% dos membros titulares são mulheres.
Encerrado o almoço, participantes da conferência que haviam testemunhado as declarações de Hunt deliberaram que era preciso dar visibilidade a elas. Coube à jornalista Connie St Louis, conterrânea do bioquímico, colocar a boca no trombone. “Por que os britânicos são tão constrangedores no estrangeiro?”, perguntou no Twitter. “Será que esse prêmio Nobel acha que ainda estamos nos tempos vitorianos?” A mensagem de St Louis foi prontamente replicada por Deborah Blum, ganhadora do Pulitzer que dera uma palestra naquela manhã, e outros jornalistas influentes. Seus seguidores se encarregaram de desencadear uma avalanche de protestos que acabaria por sepultar a carreira de Hunt.
St Louis teve o cuidado de endereçar seu tuíte – replicado mais de 600 vezes – à Royal Society, a academia britânica de ciências, à qual Hunt é filiado. No dia seguinte, a vetusta sociedade (que tem apenas 5% de mulheres entre seus membros) se apressou em afirmar que as declarações do prêmio Nobel não refletiam sua visão institucional. O passo seguinte da derrocada partiu da University College, onde o britânico ocupava um posto de professor honorário, sem receber salários ou dar aulas. Pressionado, teve que renunciar ao cargo na terça-feira; na sexta, abdicou também da cadeira que ocupava no comitê científico do Conselho Europeu de Pesquisa.
Nas redes sociais, a bola de neve não parava de crescer. No Twitter, uma jornalista britânica criou a hashtag #distractinglysexy (#sensualidadequedesconcentra, numa tradução livre), com a qual pesquisadoras postaram fotos em que apareciam em trajes nada sensuais no laboratório ou em trabalho de campo. Até o fim do mês, haviam sido publicadas mais de 135 mil mensagens com o aposto.
Num pronunciamento gravado às pressas a pedido da BBC pouco antes de embarcar para Londres, Hunt lamentou que tivesse ofendido alguém. “Só quis ser honesto”, afirmou. Sua mulher, feminista declarada, argumentou que o marido é quem costuma cozinhar em casa e não é sexista – “só diz umas bobagens de vez em quando”. O bioquímico de 72 anos, que desde 2010 não comanda um laboratório, admitiu que era o fim da linha. “Me tornei tóxico”, afirmou ao jornal The Observer, ressaltando que ao menos teria mais tempo para cuidar de seu jardim de marmeleiros. Procurado por piauí, o cientista preferiu não comentar o episódio – “Já se falou o bastante sobre isso”, escreveu.
Hunt recebeu também manifestações de apoio de pesquisadoras britânicas, inclusive ex-alunas, que destacaram suas contribuições para a ciência. Muitos o viram como mais uma vítima do implacável furor acusatório das redes sociais, alvo de uma punição desproporcional ao erro. “Não faz muito tempo que o mundo ocidental se ergueu para defender o ‘direito de ofender’ do Charlie Hebdo, mas parece que nossos princípios e nossa tolerância não se aplicam aos comentários infelizes do professor Tim Hunt”, escreveu um leitor do Guardian.
Connie St Louis, a jornalista que primeiro divulgou as declarações do cientista, também se assustou com a proporção que o caso tomou. “Virou um tsunami”, afirmou, abordada por piauí no último dia da conferência em Seul. Em tom cordial, disse sentir muito por Hunt, e que já era hora de pôr fim ao linchamento virtual. “Odeio humilhação pública no Twitter.”
Deborah Blum, por sua vez, considerou que o episódio ajudou a chamar a atenção para o sexismo na ciência. “Depois da reação furiosa e da zombaria, tivemos análises mais profundas sobre o evento e a situação das mulheres na ciência”, disse a jornalista por e-mail. “Esse é o tipo de ocasião que estimula as pessoas a pensar sobre o que foi dito e sobre por que é preciso mudar.”