IMAGEM: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Água à vista!
Aquecimento global é com a Micronésia
Marcos Sá Corrêa | Edição 35, Agosto 2009
O orador é chamado ao palco como “Sua Excelência, o presidente Emanuel Mori” e oficialmente se apresenta como “Manny”. Veste camisa branca com as mangas arregaçadas, o pano caindo solto sobre a calça azul. Comporta-se como ilustre desconhecido, mas é uma estrela ascendente no circuito de conferências sobre o aquecimento global.
Manny governa a Estados Federados da Micronésia, cargo que o obriga a gastar o primeiro minuto ao microfone esclarecendo qual é mesmo o lugar de onde vem. Seu país é um arquipélago no Pacífico. Tem 700 quilômetros quadrados de terra firme, pulverizada em 607 ilhas e atóis. Ocupa, concretamente, um território menor que o da cidade de Salvador, na Bahia. Mas tão espalhado que, para percorrê-lo de um lado a outro – por exemplo, de Yap a Kosrae –, viaja-se quase a mesma distância que num vôo costa a costa de Nova York a Los Angeles. Isso o autoriza a dizer que a Micronésia “tem mais ou menos o tamanho dos Estados Unidos”. Mas em minúsculas amostras.
No mapa-múndi, trata-se da área pontilhada que costeia a linha do Equador, sobre a Papua Nova Guiné, onde nomes como Ngulu, Pikelot, Pulap e Kapingamarangi parecem boiar na tinta azul do oceano Pacífico, por não caberem nas ilhas. Apesar do espaço exíguo, a Micronésia sempre deu de sobra para seus 120 mil habitantes, que por sinal não chegariam a lotar o Balneário de Camboriú, no litoral de Santa Catarina. Mas agora o arquipélago ocupa lugar de destaque na lista de zonas a serem engolidas pelo mar – caso a desordem climática derreta o gelo dos pólos, como prevêem os cientistas.
Com esse trunfo, Manny está cada vez mais à vontade na política mundial. Tarimbado em palestras, ignora perguntas retóricas, ao estilo “como poderemos viver dentro dos limites planetários”. Trata do que interessa: “A história do meu povo.” Manny descende de japoneses que ocuparam aquelas ilhas no fim do século XIX, depois dos espanhóis e alemães, e antes dos norte-americanos. Fala com sotaque exótico e inimitável desenvoltura o inglês que os micronésios – separados por sete idiomas e oito dialetos tribais – adotaram há muito tempo como língua franca. E disserta sobre seus graves problemas num tom imperturbável, que deve ter aprendido na época em que era gerente do Citi na base americana de Guam, ou diretor da Receita Federal, em Palikir.
“Tenho medo de soar ridículo, tratando do futuro”, ele diz. E com isso traz a inundação da Micronésia para o presente. Lá, pelo menos, a ameaça já virou “pesadelo”. Por ora, ele tem a distinção dramática de se apresentar como presidente de uma nação ameaçada de perder para o mar a totalidade de suas terras habitadas. Os micronésios vivem da pesca, da pimenta e das frutas tropicais, argumenta Manny, omitindo que dois terços da população ativa trabalham em empregos públicos. “Levam uma existência simples.” Construíram há séculos canoas com velas de palha, que os levaram “milhares de milhas a noroeste”, até o Havaí, e “milhares de milhas para o sul”, até o Taiti. Mas chegaram ao século XXI convencidos de que estavam isolados do mundo.
Tornaram-se, pelo atraso, donos de um paraíso tropical, pousado em geral a menos de 1 metro sobre o nível do mar. “Temos águas transparentes, praias selvagens e corais espetaculares, que entrariam em qualquer roteiro de férias definitivas”, conta Manny. Isso se houvesse hotéis e aeroportos para receber os turistas. O problema é que o desenvolvimento econômico só apareceu por lá para valer com a notícia de que o CO2, “produzido a milhares de milhas de nossas ilhas”, tornará daqui para frente seu progresso material, senão a sua sobrevivência pura e simples, uma aposta contra o tempo. “Mesmo se nossa contribuição para o desastre foi mínima”, Manny reclama, em voz calma e baixa.
A Micronésia tem, a rigor, 23 anos. Era, desde o fim da Segunda Guerra, um protetorado da ONU sob administração americana, e ainda mantém com os Estados Unidos os vínculos da “associação livre”. Ou seja, seu exército é o americano e sua moeda, o dólar. Para o trivial da política, bastam-lhe um Congresso com quatro senadores e dez representantes provinciais, que elegem o presidente da República. Tudo funciona sem partidos.
Até 2001, o governo americano despejou na Micronésia, a título de ajuda externa, 1,3 bilhão de dólares. No começo da década, essa fonte secou. Ou, segundo The World Factbook (o livro de fatos mundiais da CIA), “foi substancialmente reduzida”. A Agência vê perigos para as ilhas na “fragilidade do setor privado”. Mas não menciona o risco de inundação, que transformou Manny num pregador itinerante, que desde a posse está em campanha diplomática para criar um Fundo de Conservação que banque enquanto é tempo a defesa dos bancos de coral, das reservas pesqueiras e dos manguezais de suas ilhas. O brasão da Micronésia, adotado duas décadas atrás, é um coco brotando em águas revoltas. Ultimamente, parece premonitório.