"Os Estados Unidos foram criados e prosperaram com as ideias de fé e razão. A fé agora está comprimida ou autoritária, e o americano médio perdeu a confiança na razão". IMAGEM: DETALHE DO MURAL RETRATOS DOS BOÊMIOS DE GREENWICH VILLAGE, DE EDWAR SOREL, NO RESTAURANTE WAVERLY INN, EM NOVA YORK
Aos tapas e pontapés, with love
"Os Estados Unidos foram criados e prosperaram com as idéias de fé e de razão. A fé agora está comprimida ou autoritária, e o americano médio perdeu a confiança na razão"
Norman Mailer | Edição 26, Novembro 2008
PARA BEATRICE MAILER[1]
8 de agosto de 1945
Sweet Baby,
A notícia da bomba atômica deu mais o que falar por aqui do que a notícia da vitória na Europa, e tanto quanto a morte do presidente Roosevelt. Estou confuso. (Escrevo com base num comunicado sumário. Não sei o que ela causou.) Agora vejo a que ponto os laços do interesse pessoal afetam o raciocínio[2]. Uma boa parte de mim aprova o que quer que abrevie a guerra e me mande de volta para casa, e isso contraria muitas vezes princípios mais antigos e básicos. Por exemplo, espero que seja aprovado o serviço militar em tempo de paz porque, se não for, pode haver uma demoradíssima desmobilização. Nesse mesmo sentido, sou a favor de um instrumento que possa matar muita gente num instante.
Mas a verdade é que se trata de uma perspectiva aterradora. Sempre falamos sobre a humanidade destruir a si mesma, mas agora isso parece coisa tão próxima, apenas uma questão de décadas, de um número de bombas facilmente calculável. Esse negócio de quebrar o átomo vai anunciar a vitória final da máquina. Nunca passou de um cálculo interessante na física que estudei, um sonho distante e já então terrível, o fato de que a energia atômica contida na massa de um grão bastaria para fazer uma locomotiva dar a volta na terra um número fantástico de vezes.
Acho que nossa era marcará o fim de conceitos como a vontade do homem e a orientação do poder pela massa. O mundo será controlado por uns poucos, políticos e técnicos – os homens de Spengler, do fim da civilização européia-ocidental-americana. Por mais que ele me estimule, não sou spengleriano. Na alternativa entre fazer o necessário ou nada fazer, prefiro o nada, se o necessário não me agrada.
Querida, o quadro é horrível. Haverá outra guerra, se não em vinte anos, em cinqüenta, e se metade da humanidade sobreviver, o que virá depois? – acredito que, para sobreviver, as cidades de amanhã serão construídas mil metros abaixo do chão. O homem terá então fugido à sua herança animal – os insetos deixarão de incomodá-lo e ele terá descido mais uns 2 quilômetros para perto do inferno.
Estou patológico com relação a máquinas. E tenho o maior desprezo por marinheiros e aviadores. Que sabem eles da guerra? O pessoal da Marinha com quem falei na vinda para cá me pareceu bem simplório. Detestaram aqueles tipos desagradáveis, mal-humorados e insatisfeitos que transportavam. Quando lhes falavam de lama, náusea, horrores, cacarejavam qualquer coisa simpática, sem nada entender. Que sabiam eles de trabalho, sofrimento, morte? Levam uma vida rotineira, sem novidades, feita da escravidão e dos benefícios de servirem a uma máquina. Quando a morte sobrevém, chega no estouro de uma tempestade – atos de Deus. Como não têm intimidade com ela, seu significado final lhes provoca pesadelos, e é tão irreal como um desastre em tempo de paz. Não conseguem entender por que a máquina é uma amiga enganadora, muito boa por tanto tempo que esquecem que ela tem fusíveis. Não têm experiência da morte como elemento do dia-a-dia, como uma constante emocional, como abrir uma lata de ração com guisado frio e gosmento quando sua barriga está quente e doendo de tanto subir morro com sol forte e umidade. Não conhecem o tipo de fadiga que o faz pisar num cadáver de três semanas porque já não tem força para pular por cima. E os pilotos são como os marinheiros. Lutam de uma forma abstrata em um fluido abstrato. A vida deles também é confortável, solitária, de tesão e, igualmente, a morte é um trovão incompreensível e arrasador. São vidas sem outro odor que o de combustível, metal e lubrificantes. Não sabem que latrinas, corpos e brejos são difíceis de distinguir.
A personalização que eles dão a suas máquinas me enoja. Substitui a solidão e o desejo, mas é também assustadora. Chegamos ao tempo em que se amam as máquinas e se detestam as mulheres. O passo seguinte é o temor religioso, e a bomba atômica parece ser a última divindade, a forma final de enteléquia.
Tão pouco amor nessa carta, mas estou melancólico esta noite. Quanto mais penso nessas coisas, mais aterradoras elas ficam. Que outra combinação pode bater a fusão de mecânica com sentimentalismo?
Preciso de você em meus braços esta noite.
Te amo,
Norman
PARA FANNY E I. B. MAILER, ANNE E DAVID KESSLER
4 de setembro de 1945
Queridos pais, tia Nan & tio Dave,
Vi um evento histórico, segundo me disse o alto-falante de bordo. Passamos a uma milha do USS Missouri[3] na hora em que a rendição era assinada, e foi uma emoção ouvir o anúncio pelo rádio enquanto enxergava o encouraçado por uma escotilha. O locutor disse: “Simbolicamente, saiu o sol e brilha sobre a baía de Tóquio no momento em que a rendição é assinada e há paz entre nós.” Talvez eu não pudesse ver tão bem quanto ele, mas o céu me pareceu nublado como antes.
Todo meu amor, dears,
Norman
PS. Estou pesando 65 quilos, que é o máximo que jamais pesei. Portanto, não se preocupem com minha saúde.
PARA BEATRICE MAILER
13 de fevereiro de 1946
Alô, Schnoog
Tenho pensado um pouco, tentando restabelecer alguns princípios fundamentais de crença para meu uso, refiro-me à crença política. Ou na verdade o que fiz foi formular um credo político para adotar, se pudesse acreditar no aperfeiçoamento do homem.
Para começar, parece evidente que o único governo tolerável seria um governo marxista, porém – e é muito difícil conceber como pode ser assim – a ênfase deve ficar longe do governo, mais no indivíduo do que no Estado. Se eu tivesse que me tornar político, só posso divisar um procedimento, que seria formar um novo partido comunista, que nada tenha a ver com a Rússia. Odeio a Rússia (o governo, não a nação). Não tenho por ela a admiração que você tem. Mesmo admitindo que sua odiosidade e organização foram ditadas pela pressão do mundo, permanece o fato de que ela se apresenta como garroteadora da liberdade individual, e receio que tenha tomado um rumo totalitário que não tem volta. Esse novo PC trataria menos do econômico, do político. Não se pode fundar um modo de vida com apenas um pedaço da alma do homem. Lembre-se do meu Militantes Cristãos do Comunismo – a idéia é algo naquela linha. Não se pode basear uma ética na economia, é muito mais razoável orientá-la, digamos, sobre sexo. O governo comunal que imagino seria secundário, derivado natural de um reconhecimento temporal da igualdade, humildade, dignidade e criatividade. Acho que os quakers são um bom exemplo disso – quer me parecer que eles têm um governo que é bom, mas que entra por último como encarnação política natural, justa e racional de seu credo.
Meu comunismo brotaria naturalmente se o povo tivesse as virtudes que mencionei. Tentar chegar a ele por um atalho, por arrumação política ou econômica, é impossível. É como transferir vegetais podres de uma caixa para outra e pregar bem a tampa para evitar o mau cheiro. A comparação é grosseira, mas exata, acho. Não faz sentido forçar o povo a um governo dessa ou daquela forma; isso pode destruí-lo, mas não acredito que possa melhorá-lo.
Meu Partido teria certas tônicas – seria por um comunismo americano, não teria contato com a Rússia, exerceria sua força na educação do indivíduo para a igualdade e se ocuparia da política indiretamente. Não planejaria revoluções, não teria polícia secreta para perverter seus membros, chegar ao bem através do mal e assim destruir-se.
Tudo o que escrevi é bobagem, besteira ingênua. Não acredito nisso, pois não posso acreditar em coisa alguma, mas, se acreditasse, seria nisso. Que me diz, menina?
Te amo tanto, Schnoog.
Norman
PARA MARK LINENTHAL E ALICE ADAMS
30 de abril de 1949
Queridos Mark e Alice,
Empaquei hoje na página 122 do novo opus, e quando chegou sua carta resolvi largar tudo pelo resto do dia e responder.
Na verdade, não tenho disposição para fazer parte de coisa alguma no momento, uma vez que todas as minhas idéias estão mudando sem parar. Particularmente, emocionalmente, isso é doloroso, pois tenho muitos amigos comunistas que são gente ótima, embora esnobes intelectuais, e eles se ofendem e se preocupam comigo. Mas felizmente cheguei ao entendimento que uma posição política deve ficar separada de nossa atitude com relação às pessoas. (Por exemplo, não se deve entrar para o partido X porque se gosta do pessoal que lá está.) Tenho a impressão de que vocês dois tendem a ser essa espécie de liberal, e que é impossível para vocês passarem sem uma conclusão política e sem um programa político, pois são solapados por todo bom sujeito que vocês conhecem do lado inimigo. Um exemplo: Norman Thomas[4]. Conhecemos tanta gente boa que é thomista que deve haver alguma coisa nele, mas obviamente ele é uma porcaria. Isso é o que deprime. Você lê Politics e a Partisan Review hoje, e não há mais idéias ali, só canapés, e, malgrado o brilho e a erudição etc. etc. de todo aquele pessoal, a verdade é que eles não pensam mais, apenas odeiam. Perplexos, desiludidos, acabados, eles gravitam num vácuo político como Thomas, porque isso não lhes custa nada. Objetivamente, apóiam o programa americano de guerra, ajudam-no, encorajam-no, formam em certos momentos a vanguarda de um modo de abordar a guerra, e quando ela chega acho que um espantoso número deles estará nas engrenagens burocráticas intelectuais do mecanismo de guerra. Entrementes, porém, para manter a pureza, votam em Thomas.
Ou Dave Hecht[5]. Um marxista e episcopal, ou mais provavelmente sovietista (detesto a palavra stalinista) e episcopal. Outra vez uma porcaria, pois é auto-satisfação devassa, masturbação intelectual. Juntar num belo pacote tudo que gostaríamos de ter, e então dizer “esta é a minha política”, é criancice. Lembre-se da reunião do RDR[6] em que o programa era uma beleza de se ouvir, e você, Mark, disse: “Não é uma maravilha?” – quando o que desejamos ouvir não é que seja uma maravilha, mas sim se é possível.
Revendo isso, continuarei neste antipático tom superior por mais um parágrafo. Devo confessar, Alice, que não faço um alto conceito do que você anda lendo. A verdade é que está lendo trabalhos de periferia e, mesmo encontrando talento ocasional, o efeito geral não tem valor. Não se aprende química lendo um livro aqui e outro ali sobre os acréscimos filosóficos de uma nova descoberta, se nada sabemos da química propriamente dita. Marxismo é uma ferramenta, um modo de olhar as coisas, e não uma lista de julgamentos de valor, e se você quer aprender (um empenho enfadonho) é preciso ler os livros originais na fonte e estudá-los. Pelo menos estudar O Capital. Se achar desagradável, terá tido pelo menos o prazer de estudar um gênio, e uma grande agonia. É difícil. Mas todos os dias, depois de estudar minhas vinte páginas, como uma toupeira a escavar seu túnel, me sinto como quem saiu do chuveiro.
Se acha que estudar economia não a atrai, esqueça a política, e não o digo com desprezo. Há inúmeras outras áreas de atividade mais agradáveis e proveitosas. Apenas quero dizer que ler superficialmente política, e arriscar-se a emitir julgamentos de meia confecção, é um processo desordenado e improdutivo. O tempo se aproveita melhor noutras coisas.
Norman
PARA ADELINE LUBELL
Verão de 1950
Querida Lubby,
Devo dizer que você desperta o pior de mim. Vou poupá-la de meus indignados berros e tristes gemidos ante seu hino à ignorância, mas três coisas precisam ser esclarecidas.
1) Trotski jamais compareceu ao Comitê Dies para depor[7]. De onde tirou essa idéia? Aliás, ele nunca esteve nos Estados Unidos depois de 1917. Ele prestou depoimento à Comissão Dewey, no México, uma audiência montada pelos trotskistas para apresentar sua defesa e atacar os processos de Moscou. A propósito, vários comunistas proeminentes foram convidados a comparecer, e naturalmente se negaram. E se ele esteve no Comitê Dies (digo isso apenas para argumentar), o que interessa é o que disse, se comprometeu seus pontos de vista revolucionários etc. Com uma típica mentalidade liberal-trabalhista, você confunde a forma com o conteúdo.
2) Saiba você ou não, sua avaliação política (a URSS é fétida, mas é o melhor que temos, embora com o tempo venha a ser necessária uma revolução contra ela) é puro trotskismo. Se lesse, poderia descobrir coisas como essa, ou sou muito atrevido?
“Ler?”, ri Lubell com desdém, “isso é para neuróticos.”
3) A ação pela ação pode ser bom para as sinapses, e certamente serve para dar uma boa sensação quando se marcha de peito erguido (especialmente os seus peitos), mas nada tem a ver com a realidade política. Você sempre confundiu as duas, Lub (ação e realidade política). Aliás, esse tem sido o tema dominante de sua vida. Você sempre quis integrar-se e estar com gente integrada, e, dessa forma integrada, brilhar com a linha integrada. Mas o que me diz se tudo isso for mais sério, mais paradoxal, mais trágico e complicado que tais especificações? Que fazer nesse caso? Falar superficialmente sobre a vida integrada ou engalfinhar-se com algo muito mais doloroso?
Chega desse assunto. Gosto demais de você para ser desagradável por tanto tempo. E poderá ler The Case of Leon Trotski quando vier aqui.
Love,
Norman
PARA ARTHUR MILLER
Início de setembro de 1950
Caro Art,
Recebi há algumas semanas sua carta sobre os Dez de Hollywood[8] e uma proclamação, e desde então me sinto instado a responder. Eis a minha proclamação:
Os Estados Unidos movimentam-se cada vez mais rapidamente para a guerra, para o capitalismo de Estado e para a supressão de toda liberdade individual. Nesse processo, a prisão dos Dez de Hollywood tem um significado evidente. Que o mesmo destino tenham escritores como eu na União Soviética – clássica representante do capitalismo de Estado – apenas sublinha a ironia de ser um mártir em apoio a um sistema explorativo contra outro.
My best,
Norman
PARA MAX GISSEN
17 de dezembro de 1951
Caro Gissen,
Suponho que nunca seja tarde para começarmos. De qualquer forma, esta é a primeira carta que escrevo a alguém ligado à critica e à resenha de livros. A razão me parece bem evidente para nós dois.
Não me resta dúvida de que você se saiu consideravelmente melhor em nosso diálogo da noite da última quinta-feira, o que é mais ou menos admitir que você pensa melhor sobre os dois pés que eu mesmo. Quem me dera ser orador melhor, pois houve um assunto que eu gostaria de ter abordado, e que é muito mais sério do que ficar falando mal da Time.
Afinal, você e eu temos um pequeno ponto de vista em comum. Ambos estamos interessados principalmente em ficção, preocupamo-nos com o aprimoramento do gosto, e nos importamos com a crítica literária. Você deve lembrar que boa parte de sua intervenção tratou precisamente dessas coisas. Se concordará que o seu trabalho deixa de atender à receita em certos aspectos importantes, já é outra coisa.
Lembro-me de ter perguntado se suas boas relações com Luce[9] não dependeriam de não ter desacordos fundamentais com ele, e você respondeu que eu escrevera um livro ordinário. Barbary Shore pode ser um livro ordinário – pertenço ao pequeno clube dos que não acham –, mas sei que você é um homem com suficiente inteligência para concordar que sua resposta, embora eficaz com a platéia, não seguiu as mais estritas regras da lógica.
A Time tem um ponto de vista político bem claro. Não direi que cada linha de cada número seja tendenciosa, mas insistiria em dizer que praticamente nada sai na revista contra seu ponto de vista político. Acho que o mesmo se pode dizer da seção de livros. Os livros que não ultrapassam os limites políticos da revista são resenhados dentro da idéia do redator sobre os seus méritos. Mas incomodou-me a noção que você apresentou, de que o dono da Time lhe dá inteira liberdade.
Provavelmente, ele dá. Sem dúvida, suas próprias opiniões são bastante similares às do senhor Luce. Ao preço de ser duplamente precipitado (sei bem que é a rudeza inata da esquerda), fico a me perguntar quanto tempo você ficaria em seu emprego se suas resenhas louvassem livros radicais.
Você pode desprezar esta carta, dizendo a si mesmo que escrevi um livro ruim e estou me mordendo de raiva com o tratamento que lhe foi dispensado pela Time. É uma forma de ver, mas eu detestaria a mim mesmo se fosse sempre tão simples. Suponhamos que eu nunca tivesse escrito um livro. A pergunta ainda valeria.
Levo crítica a sério. O crítico está submetido a um requisito moral. Pode escrever sobre um livro sob qualquer ponto de vista, mas tem com seus leitores e com o livro a obrigação de separar as idéias do livro das suas, e de juntar o aviso de que sua reação ao que é criticado deve ser vista nesse contexto. Sem esse recato, toda integridade some da crítica, e só se produz propaganda.
Sinceramente,
Norman Mailer
PARA PHILIP ALLAN FRIEDMAN
24 de abril de 1953
Dear Mr. Friedman,
Receio não ser de muita ajuda para o senhor. Estive com Sinclair Lewis apenas uma vez, no outono de 1948, em sua casa em Williamstown, em Massachusetts, e embora lembre dele com muito afeto, e ele estivesse em ótima forma naquele dia, não creio que lhe pudesse contar algo de novo.
Uma coisa, naturalmente, era sua extraordinária vitalidade e seu senso juvenil de tudo descobrir por si mesmo, daí o que quer que dissesse – banal ou original – ele o dizia com grande entusiasmo e deliciado com o funcionamento de sua mente. Por exemplo, naquele tempo eu era simpático ao stalinismo, e ele passou a me censurar com bom humor, do jeito de um irmão mais velho ou de um tio carinhoso. “Sei compreender, claro”, disse ele, “é como uma religião. Tio Joe Stálin é o papa de todos vocês. Afinal, isso é o que ele é, um papa, e todos aqueles escritores de Hollywood, aliás alguns deles encantadores, que estão dando seu dinheiro, fazendo suas doações ao partido, de certa maneira pagam uma missa a ser dita pelo Papa Tio Joe.” E riu com enorme prazer com essa idéia, como se jamais tivesse ocorrido um paralelo entre a Igreja e o Partido Comunista.
Acho, pensando bem, que Lewis me lembra pessoas como Chaplin e Robert Flaherty, o diretor de cinema. Não que haja qualquer semelhança física entre eles, mas seu denominador comum é o de um homem relativamente pouco instruído, ou autodidata de enorme talento, cuja época, felizmente, precedeu este nosso tempo de especialistas e, portanto, propiciou a eles poderem expressar suas forças e fraquezas.
Espero que isto seja de alguma pequena utilidade para o senhor.
Yours,
Norman Mailer
PARA CHARLEY E JILL DEVVIN
30 de abril de 1954
Queridos Charley e Jill,
Como adivinharam por meu longo silêncio, não houve nenhuma notícia concreta. Já darei detalhes, mas antes outros tipos de notícia. Adele e eu nos casamos em 19 de abril, e eu até me senti bem no dia. Meus pais vieram e, no fim das contas, receberam bem a coisa e foram até cordiais com Adele. Desde então, Adele entrou em parafuso. Com sua capacidade de tornar cada jornada uma expedição até o fim da noite, ela insiste em que estou infeliz com o casamento, e me propõe três vezes por dia devolver minha liberdade. Afora isso, somos felizes e a vida continua exatamente como antes.
Vocês já leram Deitada na Escuridão, de William Styron? Não é um grande romance, mas é um tremendo romance, e acho que de todos nós ele é o maior talento, o único, digamos, que poderia algum dia escrever um romance com a grandeza de um Proust, por exemplo. Bem, ele está em Nova York no momento, é um sujeito fantástico, e tenho freqüentado um pouco o círculo dos escritores porque James Jones também está na cidade. Jones também é formidável. Ele tem um grande encanto, uma espécie de magnetismo animal que nos dá a sensação de que, enquanto você está perto dele, as coisas vão acontecer – aliás acontecem com freqüência. Ele é muito complicado, muito barulhento, muito cru, muito afetuoso, espantando primeiro por sua naïveté e depois pela sagacidade e visão das coisas. Com tudo isso, ocupa-se indolentemente em escrever, um dia uma página, outros dias um parágrafo. Tal como acontece comigo, ele tem medo e provavelmente está mais rigoroso, mas ficarei mais surpreso se ele não escrever outro bom livro do que se o fizer.
As sessões do comitê de McCarthy estão na televisão, e uma vez ou outra eu as vejo. Quem nunca viu McCarthy se surpreenderá. O que todos os seus críticos não conseguem admitir é o seu enorme encanto e sex appeal, e um jeito másculo de falar que domina a todos, de forma que, para uma pessoa ignorante em política, parece absolutamente maravilhoso. Resulta que é amedrontador assisti-lo trabalhar, porque se fica pensando: Como deter esse homem? Por outro lado, possivelmente não é tão ruim quanto parece, pois acho que muito do apoio que tem não é entusiasmo ativo por suas idéias, métodos etc., mas simples resposta de gente ignorante a seu vasto e inteligente encanto. Existe
a esperança de que, quando botarem as cartas na mesa, seus sabujos ficarão surpresos com as idéias por trás desse sujeito que julgam tão fantástico. A esperança, acredito, é que ele continue um reacionário. Se adotar um programa social, ele será um ditador, porque como demagogo é realmente extraordinário. Mesmo detestando-o, há que admirá-lo por ser tão bom no que faz.
Love to you,
Norm
PARA LEWIS ALLEN
30 de abril de 1954
Caro Lew,
Houve festa no apartamento de Styron à noite passada. Ficamos todos altos e resolvemos mandar um telegrama a Joe McCarthy. Dizia assim:
CARO JOE. A GENTE GOSTA DE VER VOCÊ, MAS LIMPE ESSA SUJEIRA MARROM DO NARIZ!
VANCE BOURJAILY, JAMES JONES, NORMAN MAILER, JOHN PHILLIPS, WILLIAM STYRON
Mesmo em nossa hilaridade e bebedeira, creio que no fundo estávamos consternados. Exatamente o tipo de coisa pela qual você vai bater num campo de concentração três anos depois. Enfim, há tantos outros motivos que posso usar para ir.
De Romain[10] não recebi palavra. Dá-me a sensação de que, por algum motivo curioso, ele considera que o insultei ou algo assim, pois nunca mais soube dele depois que lhe mandei aquela carta de apresentação a você, e ele esteve na cidade por mais de uma semana – na verdade, foi convidado para uma festa em nossa casa e não apareceu. Tudo isso nem parece coisa do Romain. Nesse ínterim, li o romance dele, livro inacreditável que, por um lado, tem um personagem hollywoodiano extraordinário, um dos melhores já criados, e por outro, um dos mais inaceitavelmente cinematográficos romances impossíveis que já vi em livro, sem o menor esforço de tornar os personagens vivos ou qualquer coisa. Ele é um enigma para mim, e quanto mais o vejo ou me acostumo a vê-lo, menos o entendo, muito embora gostasse dele e continue gostando.
Yours,
Norm
PARA BOB E JOHNNIE LINDNER
18 de maio de 1954
Caros Bob e Johnnie,
Li “Political Creed and Character” e discordo de certos aspectos. Não vou dizer que não gosto – pelo contrário, a prosa é excelente, de longe sua melhor prosa –, e há muitas partes da tese que posso aceitar. Mas duas coisas me incomodaram. Uma delas é o insulto convencional do marxismo, e sobre isso temos que discutir mais demoradamente, mas, para resumir, está muito em moda fazer isso hoje, e só serve para atrair o tipo errado de gente e afastar os rebeldes. Falo sério.
A objeção mais grave que faço é a sua tese sobre o Partido. Dizer que, depois da guerra, os psicopatas tomaram o lugar dos neuróticos soa excelente, mas não acho que guarde muita relação com os fatos. Para começar, há um intervalo de vinte anos entre a vitória da revolução em 1917 e os processos em 1937. Bem, durante esses vinte anos, Bukharin, Zinoviev, Kamenev[11] todos os outros eram neuróticos ou psicopatas? Lênin o que era? Dificilmente um psicopata. Se quiser, pode chamá-lo de neurótico, admito. Porém, não muito mais neurótico que Roosevelt, Churchill, e muito menos que Eisenhower. Minha ponderação é que a Revolução Russa, em seu triunfo e desastres, não representa simplesmente a vaga dos psicopatas. Ela tinha uma força moral verdadeira, que por muitos anos trouxe à tona o melhor das pessoas, assim como seu pior, e atribuir o triunfo de Stálin como uma tendência essencial do comunismo a fazer vencer os psicopatas sobre os neuróticos é desmerecer inteiramente a questão. (Também discutiria o tema da “culpa” dos velhos bolcheviques. De que raios Trotski tinha culpa? Você leu sua defesa?) No meio disso, um aspecto menor. Posso concordar que o Partido hoje, no momento de seu triunfo, só pode promover seus psi-copatas, mas, Bob, você não pode ler todos os julgamentos da Cortina de Ferro como o processo de liquidação dos neuróticos pelos psicopatas. Isso ocorreu em todos os países dos Bálcãs quinze anos atrás. Os homens em julgamento em todos esses países são psicopatas. Os neuróticos pereceram há muito tempo, durante os Processos de Moscou, ou durante os cinco anos da guerra, quando o movimento clandestino do Partido criou seus quadros. Bem, conversaremos muito mais sobre isso no outono.
Adele manda-lhes seu amor, e eu mando o meu.
Norm
PARA JEAN MALAQUAIS[12]
13 de outubro de 1956
Caro Jean,
Há uma coisa estranha em ser radical – passam os anos e chega um tempo em que você olha, olha, e não há mais telefonemas dos amigos socialmente mais bem-sucedidos. Acho que ter a gente como amigo virou um luxo e, a menos que gostem muito de você – e não é o caso de nenhuma das minhas relações sociais –, você lentamente é eliminado da órbita em que eles circulam. Ainda por cima, eu estava cheio da própria Nova York, esta cidade desesperadamente competitiva, desumana, com sua violência, sua agressão elétrica aos nervos – talvez seja só minha chegada à meia-idade -, e nós subimos a Connecticut para visitar uns amigos e achamos uma casa que nos agradou muito, a qual estamos tratando de comprar. É uma casa grande num terreno de 20 hectares, campina linda, um pouco como Vermont, mas tranqüila e civilizada, lugar ideal para um senhor de idade, mas é para onde se inclina meu gosto. Só que era cara, como todas as coisas bonitas, e se uma depressão vier nos próximos anos estarei com um grande elefante branco nas mãos.
Isso faz algumas semanas e, pouco depois de fazermos nossa proposta de compra e voltarmos à cidade, saí para passear com os cachorros (nossos dois poodles franceses), tarde da noite num sábado ou, cientificamente falando, cedo da manhã num domingo – era uma da madrugada. Os cães pararam para fuçar perto de três arruaceiros, que estavam por ali nos degraus de uma porta. Bem, um deles fez um comentário ruim, os outros riram, e eu, que devo ter um traço de insanidade, perguntei ao rapaz o que ele tinha dito. Aí ele me insultou, começamos uma discussão, ele me disse para cair fora. Eu estava assustado, mas me recusei, e finalmente tivemos uma briga. Provavelmente eu teria ganho porque, acredite, era mais forte que o rapaz – ele era alto, mas pesava menos e tinha uns 21 anos –, como disse, acredito que provavelmente eu teria ganho, mas ele começou a esmagar meu olho quando nos agarramos – muito profissional, devo dizer. Empurrei-o o melhor que pude, trocamos uns socos, nos agarramos de novo, e de novo ele meteu o dedo nos meus olhos. Nesse ponto, uns sujeitos – uma gangue – saíram de uma casa (estávamos brigando na calçada) e um tipo tremendamente feroz me espancou a cabeça e disse: “Chega para você?”
Ora, para mim chegava. Mal podia enxergar, meus olhos sangravam e achava que iam me matar de pancada. Fiz que sim desesperadamente, murmurei várias vezes “Sim, chega, chega, chega”, peguei os cães de outro rapagão que ironicamente os havia segurado durante a briga e saí arrastando os pés. O que evita que a história seja inteiramente desumana é que dois homens de cor, da gangue, seguiram-me. Quando cheguei à esquina, me alcançaram. Já nada me importava àquela altura, e talvez por isso não tive medo. Minha sensação foi de que iam saltar sobre mim, e eu poderia estar morto. Talvez fosse isso, não sei, mas de qualquer forma um dos pretos disse: “Não foi justo, foi muito desigual, cara.” O que de alguma forma me animou quando pensei no caso nos dias seguintes.
Mas a conseqüência foi péssima. Meu olho esquerdo doeu muito, surgiu um ponto cego no centro da visão por uns dias, e tive de ficar num quarto escurecido por quase uma semana. Mesmo agora sofro de um cansaço na vista que vai levar provavelmente um mês para passar. Que sorte ter comprado a casa antes de isso acontecer, senão acharia que fugi de Nova York em pânico.
Eis aí, estive deprimido demais para escrever. Não comente com ninguém, porque eu disse aos meus pais que tive uma infecção ocular e não quero que surja conversa na imprensa. Mas, de fato, o caso confirmou minha crescente sensação de que há um barbarismo muito perto da superfície na América.
Love de um velho guerreiro para outro,
Norman
PARA MICKEY KNOX
29 de abril de 1957
Caro Mick,
Acho que há umas poucas coisas a atualizar com você. Uma é que tivemos uma filha. Danielle Leslie é o nome, e ela é grande, linda e com um cabelinho escuro. Parece uma cruza de judeu indiano e pirata chinês. Vai junto uma foto.
Também, mais de um mês atrás, estive na televisão. Há um programa em Nova York chamado Night Beat, com Mike Wallace[13], de entrevistador e dois convidados por noite, cada um por meia hora, e a técnica é fazer perguntas duras e usar close-ups para que parte de seu rosto encha a tela e o espectador possa ver o suor etc. Aparentemente, me saí bem e tive algumas respostas boas. Disse que era um radical – quer dizer, não sabia se eu era um rebelde, um anarquista ou um niilista, mas era um radical –, disse que Life era uma revista suja, que nosso país, nos últimos oito anos, quase nada tinha de admirável ou nobre em sua história, e que o presidente Eisenhower tinha um pouco de mulher.
Best,
Norman
PARA JEAN MALAQUAIS
25 de setembro de 1957
Caro Jean,
Esta será uma carta breve, porque parei de fumar faz duas semanas e, no momento, acho quase impossível me concentrar. Mas eu queria mandar sua renovação dos direitos de publicação, garantir-lhe que não estou louco e também discutir alguns assuntos que você levantou.
Em primeiro lugar, você é mesmo incomparável, Jean – na mesma carta infla minha vaidade, insulta meu trabalho, pede-me que transfira os insultos (“Mailer, o idealista romântico”) à revista da qual sou editor, diz que ficaria contente em traduzir minha peça sem ver antes, pede que faça o mesmo com a sua peça e termina pedindo que renove sua autorização. Não é de admirar que eu goste tanto de você. Só quem deposita fé total em seus amigos é capaz de agir assim, e o fato de que alguém se dirige a mim tendo como certo meu lado bom tornou-se tão raro que, apesar de todos os insultos, gosto de você. Agora, a respeito de meu ensaio para a revista Dissent (“The White Negro”). Não me disponho a discuti-lo com você hoje, e na verdade responder direito exigiria um artigo mais longo que o primeiro e está fora de minhas possibilidades. Mas falando sério, caro Jean, entre nous, você está atacando duramente idéias novas, ainda que imperfeitas, a torto e a direito. Quando, em particular, escreve para mim que estou sofrendo de megalomania, só posso balançar a cabeça tristemente e concordar que botou o dedo em meu pior defeito – quero ser um grande pensador sem ter o trabalho –, sou mesmo um farsante.
Mas quando diz publicamente que o liberal extremado é irracional, sem importância, lúmpen etc. etc. etc., que é tudo verdade, você ainda ignora duas coisas importantes do que eu tentava dizer: 1) se o barbarismo pode ser a alternativa, não para o socialismo, mas para o totalitarismo, e se isso é verdade, ele é preferível ao totalitarismo para o radical, ou, pelo menos, oferece uma alternativa real e 2) eu estava tateando desajeitadamente meu caminho rumo a uma teoria da energia, da energia humana, que algum gênio depois de nós possa pegar e usar para tornar-se o novo Marx.
Quero muito que você leia a última página três ou quatro vezes. A noção de que a sociedade atingiu um ponto de tamanha complexidade, de tal organismishness, que é capaz instintivamente de adaptar-se a uma crise econômica, transmitindo uma crise psicológica por meio da comunicação de massa, é uma noção que você não pode ignorar, Jean, ou não é mais um marxista inquisidor, mas simplesmente um escolástico. As contradições de que sofre a América rapidamente se transformam em contradições psicológicas que são quase insuportáveis – e, se voltassem a ser contradições econômicas e depressão econômica, coisa que está longe de ser impossível, isso não significaria que o processo era apenas dialético, movido unicamente pelos circuitos das relações produtivas. Presumo que aquilo na direção do que estou tateando é uma dialética que pode fazer ponte entre o material e o ideal – ou, para pôr de forma mais palatável a você, estou tentando infundir noções materiais de energia nesse domínio filosófico do ideal que a psicanálise agora comanda com o porrete de um bárbaro.
Esta carta é a coisa mais longa que escrevi sem cigarros. Que agonia será aprender a escrever sem eles.
Love,
Norman
PARA SAMUEL E. LESSERE
30 de dezembro de 1957
Caro Mr. Lessere,
Os “ódios raciais” de Pound[14] devem tornar-se mais incômodos para os racistas se ele ficar solto do que seriam se virasse um mártir. Francamente, não vejo a vantagem de prendê-lo, nunca vi – se a prisão deve existir como um tipo de punição pelo mal causado a outros, quer me parecer que, até Orval Faubus[15] pegar vinte anos de cadeia, ninguém pode afirmar convincentemente que Pound merece vinte minutos.
Acho que a verdadeira razão por que sou favorável à liberdade de Pound é o fato de que o mesmo tipo de mentalidade de governo que processa, prende etc. um Pound também cria Conselhos de Lealdade. Deixemos o assunto. Duvido que concordemos sobre ele.
Yours,
Norman Mailer
PARA JEAN MALAQUAIS
30 de dezembro de 1957
Caro Jean,
Sua carta começava com tanto calor e encanto que logo pressenti uma crítica dura a caminho. Ah, bem, talvez você esteja certo, talvez seja uma peça ruim – bastante gente a está recusando. Mas devo discordar de que ela não -tenha sexo – não se pode escrever “sexo” numa peça teatral –, isso fica por conta dos atores; consiga atores que emitam intensa sexualidade, e a peça será sexy como uma francesa de rua ganhando a prestação da mobília.
Paris no momento parece longínqua. Vamos voltar para Nova York. Ando meio deprimido ultimamente. Passaram-se anos desde que fiz algo que teve sucesso – com algumas raras exceções – e caí nessa coisa que o atacou há alguns anos – uma disfunção da vontade, digamos assim. Minhas ambições parecem estar muito além dos meus talentos, e anos-luz além das vicissitudes do meu caráter. Penso neste enorme romance que estou começando a escrever, e que pode muito bem levar dez anos; se for bem-feito, deve ser impublicável, exceto em edições francesas de bolso, e estarei na meia-idade quando o terminar; já não acredito em mim mesmo como antes e, o pior de tudo, o livro nem me parece terrivelmente importante. Está surgindo em mim a tolerância do derrotado – gente que eu desprezaria há alguns anos agora me parece suportável –, afinal de contas, digo a mim mesmo, não tive grandes resultados com toda a sorte que me coube, e talvez eu faça mal em julgá-los. Naturalmente, esses estados proliferam. O desejo de trabalhar diminui, e ao diminuir abre caminho para a depressão de não trabalhar, a qual aumenta a dificuldade de começar a trabalhar de novo, e tudo funciona como uma trava. Você sabe o que eu penso desses anos miseráveis depois da guerra, de como tudo foi diminuído por eles, a rebelião temperada, a cautela apodrecendo em forma de covardia, a malícia virando ódio. O pior de tudo é que chego às vezes perto de achar que talvez tenhamos superestimado as possibilidades do povo, e aí a vida se torna triste de verdade. Desculpe a tirada. Você tem sua depressão, eu tenho a minha (também estou fumando de novo).
O que me arrasa é que agora tenho um cérebro obtuso (devido exatamente às vicissitudes contra as quais você me alertou) e sou incapaz de qualquer esforço da mais modesta concentração. No entanto, minha vida interior tem sido tão rica nos últimos três anos que hoje sei um pouco sobre quase tudo que preocupa nossos tempos – sei um pouquinho, quero dizer, claro. Leio algo, acho interessante, e no dia seguinte esqueci. Você não imagina o inferno que é perceber que sua memória está abalada – é um inferno justamente porque sinto que sei o caminho para sair deste impasse –, que se eu tivesse duas vezes a energia jovem que escreveu Os Nus e os Mortos, e tivesse o seu poder de raciocínio, e a retenção de memória e a cultura de Meyer Shapiro, e cinco bons amigos que me sustentassem, cuidassem de mim e até limpassem o meu rabo – ora, eu seria capaz, by God, de escrever o livro que criaria um novo movimento radical. Sei que você considera essa atitude de trop, mas ela está na minha cabeça e jamais chegará ao papel – apenas indícios dela –, você sabe que escrevi esses artigos na Dissent com a esperança de que algum jovem gênio os veja e talvez seja estimulado por eles em sua carreira.
Bem, é claro que tudo isso não passa de angústia de artista – tantos de nós poderiam ter sido gênios se tudo tivesse funcionado direito –, mas tive muito mais sorte que os outros e botei tudo a perder, que não me dou sequer a dignidade da frustração – que pobres e pequenos émigrés russos somos nós na realidade. Perdoe-me por queixar-me, mas é melhor que me queixe a um velho, querido e confiável amigo, do que depender da duvidosa bondade de algum bêbado estranho num coquetel.
(A propósito de nada, este gênio egoísta leu os Journaux Intimes de Baudelaire – em inglês – um mês atrás. Pois ali estava um homem, pensei, igualzinho a mim.)
Dandy[16] está cada vez mais bonita. É até cômico. Os pais andam por ali em sua depressão amuada e vaga, e a pirralha se mexe em seu cercado, balbucia como um passarinho, experimenta a língua, dá um sorriso de coelho com dois grandes dentinhos separados por um espaço que dá até para assobiar, enquanto seu cabelo que é fabulosamente sensual cai em toda sorte de curvas ousadas e franjas artísticas de sua cabecinha russo-índia. Às vezes, acho que ela nasceu para ser uma grande cortesã.
Love,
Norman
PARA IRVING HOWE
9 de janeiro de 1959
Caro Irving,
Nunca falamos sobre isso, Irving, mas sinto há alguns anos que o marxismo pode dar um enorme passo à frente nos próximos quinze ou vinte anos. Porque a única disciplina intelectual que pode compreender o psicoanarquismo do próximo ano e dos dez anos seguintes é na verdade o marxismo. A finalidade de qualquer teoria da energia tem de ser a sociedade e a luta de classes, não a caixa de orgone, e eu gostaria que você compreendesse que o meu empenho para que a Dissent comece um diálogo com os psicoanarquistas (onde estão eles?) não se destina a transformar a revista aos poucos num periódico de jazz cum psicanálise, e sim no centro intelectual de uma geração radical que pode estar chegando à existência.
My best,
Norman
PARA JEAN MALAQUAIS
29 de abril de 1960
Caro Jean,
Entrei para o comitê Justiça para Cuba[17] levando em conta o velho princípio leninista do “Quem?”. Neste caso, o “Quem?” foi a revista Time. Se eles são contra Fidel Castro, eu sou a favor. Anti-stalinismo pode não ser uma posição política, mas anti-Luceismo pode ser, porque nunca se conseguem determinar os fatos, mas apenas o que as várias forças querem fazer crer sobre os fatos. Considero uma boa norma procurar o centro do mal político cotidiano na boa e velha Time.
A grande novidade teatral aqui é O Balcão, de Jean Genet. Mas achei a produção decepcionante. Cortaram a peça burramente, achei, e a atmosfera está perfumada e efeminada demais. Creio que parte disso é culpa de Genet; por brilhante que seja, para mim ele é ainda uma grande chateação.
Adele sends love.
Norman
PARA ARTHUR SCHLESINGER JR.
26 de outubro de 1960
Caro Arthur,
Fiquei um pouco angustiado com os comentários de Kennedy sobre Cuba. Compreendo que ele dificilmente poderia vencer sem atacar a ilha, mas acho trágica a situação lá, e não vejo qualquer coisa de bom nas suas insinuações de que uma força de cavalheiros voluntários poderia ir à guerra com os barbudos. Acho que ele mais perde do que ganha com isso.
Best to you,
Norman
PARA T. K. SALTONSTALL
28 de outubro de 1960
Caro sr. Saltonstall,
A visão wagneriana do senador Kennedy de uma nova força expedicionária, capitaneada pela rapaziada de Saint Grottlesex[18] e integrada por um indefinido proletariado lúmpen do Corpo de Fu-zileiros Navais, para a invasão de Cuba, é tão pouco entusiasmante para minha noção de novos Estados Unidos, um pouco mais admiráveis e um pouco mais honestos do que estes a que estamos triste-mente acostumados, que não sei se posso permitir o uso de meu nome no apoio a ele, sem a garantia de que seus comen-tários foram um erro, talvez perdoável como excesso de campanha. Por tudo que sei, Castro pode agora estar no laço da síndrome dos comunistas, mas, se está, isso é uma tragédia que não pode ser ignorada por uma aventura capaz de se revelar mais feia que romântica.
Respeitosamente, seu
Norman Mailer
PARA A SENHORA JOHN F. KENNEDY
3 de novembro de 1960
Cara sra. Kennedy,
Foi muito gentil de sua parte me escrever. Muito obrigado.
Vez por outra, quando penso em ir para outro século, escolho o século XVIII, na França, as três últimas décadas, e talvez a primeira do século XIX. Mas não sei se me daria bem. No ano que vem, se nos encontrarmos em Hyannis Port, talvez possamos conversar. Suspeito que a senhora saiba mais sobre o assunto do que eu. Minha competência torna-se não-especializada quando vou além das obras do Marquês de Sade. Eis alguém cuja biografia eu gostaria de fazer, quando já não tiver mais esperança de conserto. Quem sabe eu pudesse acrescentar uma alusão ou duas em honra do forte personagem.
Entrementes, desejo estar errado em meu receio da noite de 7 de novembro. Não concordo com seu marido sobre Cuba, acho que estará cometendo um grave erro, mas votarei nele – acho mais importante que nunca ele vencer. Apenas perdi grande parte do prazer em meu voto.
Yours, dear lady,
Norman Mailer
PARA EIICHI YAMANISHI
15 de março de 1961
Caro Eiichi,
O ataque noturno que descrevo em Os Nus e os Mortos é imaginário. Todo combate que vi foi em patrulhas durante o dia, e nunca tomei parte na ação de defesa de um rio à noite. Mas outros de minha unidade estiveram nesses combates, gente que estava na guerra antes de mim, e ouvi muitas histórias de ataques japoneses noturnos, com travessias de rios.
Depois da guerra, fui aquartelado um tempo em Onahama, uns 300 quilômetros ao norte de Tóquio, e nas folgas costumava visitar um moça muito inteligente que era arrumadeira no hotel, e conversávamos um pouco. Coisa inocente. Não porque eu quisesse, mas porque ela estava apaixonada por um paspalhão, o sargento do rancho. Certa tarde, ela me apresentou um moço japonês que queria falar comigo porque sabia um pouco de inglês, e nos sentamos um em frente ao outro em esteiras, num quartinho de uns 2 metros quadrados, cujas paredes eram portas de correr, e conversamos algumas horas. Ele era baixo, talvez 1 metro e meio, pesado, óculos de lentes grossas, e pernas notavelmente arqueadas. Mas de uma sinceridade incandescente. Tivera instrução de camicase no Corpo de Submarinos (você lembra, os submarinos suicidas de um homem ou dois) e estava a uma semana
de sua missão quando a guerra acabou. Contou-me muitas coisas, de uma orgia louca que os estudantes deram naquela noite, que ficou tão selvagem que um cortou o outro em dois com sua espada de samurai, e ele me passou algo de seu senso agudo de choque com o fato de que a guerra terminara e ele ia sobreviver. No ato de viver, ele estava subitamente diante do conhecimento de sua morte, e me lembro de que ele dizia e repetia: “Por que, por que ia eu morrer? Haveria um significado para minha morte?”
Nunca mais o vi, mas acho que aquela tarde criou uma parte sutil mas constante de Os Nus e os Mortos, e acho que o livro teria menos valor se eu não tivesse conhecido o cadete, porque a conversa liquidou para mim a última das estúpidas camadas de propaganda, com a qual fôramos sistematicamente encorajados durante a guerra, para considerar os japoneses sub-humanos. Eu já gostava do Japão, seduzido por seu estilo, simpático no seu sentido de nuance, no seu gosto pelos secos filamentos de beleza imperecíveis, mas o país era abstrato para mim, generalizado em seu estado de alma, o povo era menos real que a paisagem. Depois de falar com o cadete, os japoneses tornaram-se de carne e osso para mim, porque aquele pequeno camicase engraçado era real, mais real que eu mesmo aquela tarde, e dessa maneira ele trouxe à vida a lembrança de todos os inimigos mortos que eu vira em tantos campos, e da incomensurável dimensão até da vida mais insignificante. Após falar com o cadete, dei um passo mais para perto de algo que sempre soubera, que todos somos extraordinários, todos somos brilhantes (nem que seja incandescente por um momento), e o que foi assassinado entre os americanos e os japoneses era mais real que as bobagens complacentes e esvaziadas da maioria das mentes que sobraram. Assim, Os Nus e os Mortos, que então se formava em minha cabeça, perdeu, penso, qualquer tom de propaganda que pudesse ter tido, ou o desejo de pintar uma nação superior à outra. Acho que parte do valor do livro se encontra nessa simplicidade. O diário de Ishimaru foi a tentativa, um ano depois, de recapturar algo do que aprendi aquela tarde no hotel de Onahama.
Afetuosamente,
Norman
PARA DON CARPENTER
14 de junho de 1961
Caro Don,
Levando tanto tempo para responder, descuidei-me de fazer contato com Bob Miller, mas consertarei isso neste fim de semana e, se tiver uma chance, lerei seu livro na outra semana. A dificuldade é que tento montar um livro de poemas e tenho apenas duas semanas para isso, antes de ir para o México por um tempo -vou visitar uma filha de 12 anos lá. Estive em Provincetown e isso me atrasou tudo, mas de certa forma foi bom, porque a semana que passei lá teve uma série de viradas doidas, inclusive uma noite de jazz, com todo mundo bêbado quando um cubano revolucionário anti-Castro anunciou com uma torrente de injúrias que ia me matar por causa de minha carta a Fidel. Com base na firme teoria de que um cubano não atira num hóspede que veio a sua casa, fui visitá-lo. E a noite entrou em órbita na hora em que um amigo meu se meteu numa briga com um amigo dos cubanos, e o revolucionário e eu tentamos apartar. Quando o encontrei na rua no dia seguinte, o cubano foi todo sorrisos. “Sabe, Mailer, eu ia de fato matar você.
Não era nada pessoal, você compreende, mas eu ficava pensando que beleza de propaganda isso seria para minha causa.” “Yeah“, respondi, “mas fariam de mim um mártir em Cuba. Ia ter a minha foto em todas as barbearias.” “Yeah“, lamentou ele. “Pensei nisso também.”
Best,
Norman
PARA EIICHI YAMANISHI
23 de outubro de 1961
Caro Eiichi,
Sempre tive profunda afinidade com Trotski, e embora não me possa considerar mais um trotskista, isso não significa que não tenha uma grande admiração por ele. A dificuldade aqui nos Estados Unidos é que as formas convencionais de marxismo revolucionário simplesmente não se aplicam à estrutura peculiarmente intrincada da sociedade americana. Não estou dizendo que o marxismo já não seja realizável, apenas que, para ser entusiasmante outra vez como estilo de pensamento para a nata da mocidade, precisa ser ampliado por algum gênio capaz de abranger as complexidades do fenômeno americano. De certa forma, creio que tentava indicar uma possível direção no último parágrafo de “The White Negro”. Sabe, Eiichi, a dificuldade é que a classe operária americana é totalmente sem consciência revolucionária, e a fonte de qualquer rebelião que exista neste país provém não do povo que trabalha dentro da economia, mas do número crescente de moços que se sente claramente alijado do país e de sua história. É possível que alguma coisa resulte de tudo isso nos próximos dez anos, pois o espírito de rebelião é autêntico. Só que nenhum de nós tem a estatura intelectual para formular o problema em novos termos radicais. Na América, não se trata de que a mais-valia nos seja extorquida, mas do fato de sermos espiritualmente explorados, e de nos ser negada a oportunidade de atingir nosso verdadeiro crescimento. Esse é, sem dúvida, o último estágio do capitalismo. Já se vê que numa situação como esta faz pouco sentido alguém se considerar trotskista. Para mim, se Trotski fosse vivo e estivesse neste país, não seria mais trotskista.
Afetuosamente,
Norman
AO EDITOR DA REVISTA PLAYBOY
21 de dezembro de 1962
Dear Sir,
Preferia que os senhores não tivessem classificado o debate entre mim e William Buckley[19] como um encontro entre um conservador e um liberal. Não me importo que me chamem de radical, de rebelde, de vermelho, de revolucionário, de profano, de fora-da-lei, de bolchevique, de anarquista, de niilista, até de conservador de esquerda, mas, por favor, rogo que não me chamem nunca mais de liberal.
Seu,
Norman Mailer
PARA MICKEY KNOX
17 de dezembro de 1963
Caro Mickey,
O que aconteceu com Kennedy bateu muito forte aqui. Mulheres chorando na rua (sobretudo mulheres bonitas), muitos negros de meia-idade tristes e preocupadíssimos, e nós todos em melancolia vendo a televisão nas setenta e duas horas seguintes. Foi um dos três acontecimentos com algo profundamente em comum: o dia de Pearl Harbor e a morte de Roosevelt foram os outros dois. E ainda por cima o negócio de Ruby-Oswald. Terrivelmente deprimido por todos os aspectos, não tive a menor disposição para escrever uma palavra sequer sobre o caso. Acho que a perda maior foi cultural. Intencionalmente ou não, Kennedy provocava um grande estímulo às artes, não porque Jackie Kennedy convidava o poeta Richard Wilbur à Casa Branca, mas de certa maneira a repressão estava frouxa, e agora temo que a tampa será bem apertada de novo.
Quanto a Oswald e Ruby, não sei o que houve e não confio em que um dia ficaremos sabendo. Gostaria de acreditar que o FBI teve uma mão sinistra em tudo isso, mas a verdade é que duvido. Desconfio que a história verdadeira é que dois caras solitários jogaram nas engrenagens mais areia do que jamais alguém conseguiu, e está um horror, uma triste e sofrida confusão.
Love,
Norm
PARA EIICHI YAMANISHI
17 de abril de 1964
Caro Eiichi,
Deixe-me congratulá-lo agora pelo trabalho hercúleo de traduzir a trilogia de Isaac Deutscher sobre Trotski. Só li excertos do livro, mas ele me impressionou muito, como aliás o trabalho de Deutscher sempre faz. E acho heróico você empreender essa tradução no meio de todos os outros compromissos que assume. Quanto a Trotski, não é que lhe seja antipático, até o considero uma das poucas grandes figuras do século XX, e sempre me senti simpaticamente chegado a ele, mas o movimento trotskista na América é inacreditavelmente estreito e tacanho. Na verdade, já praticamente não se houve falar dele.
Ademais, existem fenômenos políticos na América que Marx jamais poderia ter antevisto, pois a contínua sobrevivência do capitalismo deslocou o desequilíbrio econômico para um desequilíbrio psíquico, que aqui corrompe o cerne da vida do povo. Na verdade, é quase melhor considerar os Estados Unidos como uma horda imensa de totalitários psíquicos, governada por um establishment excepcionalmente contraditório. Ao mesmo tempo em que empurra a América para o totalitarismo, existem elementos do establishment que oferecem nossa maior defesa contra o totalitarismo das massas. Kennedy, com todas as suas contradições, era provavelmente uma dessas defesas, ao passo que Johnson, que tem praticamente o mesmo programa político, estimula a tendência para o totalitarismo, dado o vazio de sua personalidade.
A chave para a situação toda é a revolução dos negros, creio eu. Se ela fracassar, o que pode muito bem acontecer, então receio que estará formada a contra-revolução legal. Os Estados Unidos são como um sótão escuro cheio de aquecedores inativos. Podemos continuar assim por anos, mas também as chamas podem irromper em seis meses. Estamos numa profunda crise psicológica, pois o país, como vê a si mesmo, foi criado e prosperou com as idéias de fé e de razão, e a fé agora está comprimida ou autoritária, e o americano médio perdeu a confiança na razão. O assassínio de Kennedy causou males incalculáveis. O assassínio de Oswald multiplicou várias vezes o desastre.
Mas vou terminar com uma notícia que não é má. Minha nova mulher, Beverly, deu à luz um menino no dia 17 de março. Chama-se Michael Burks Mailer e é um belo bebê, muito alerta. Então, por fim, depois de quatro filhas, tenho um filho.
Warmly,
Norman
PARA ARNOLD KEMP
18 de dezembro de 1964
Caro Arnold,
Sabe, quando Sartre ganhou o Prêmio Nobel, é engraçado, mas tivemos reações diferentes. Para mim, ele devia ter aceitado, e o motivo, acho, é que chateia mais a burguesia quando os desafetos recebem seus maiores prêmios do que quando os recusam. Por exemplo, todos esses anos, a revista Life chamou Jean-Paul Sartre de “apóstolo do desespero”. Agora, de repente, o apóstolo do desespero é o ganhador do Prêmio Nobel. Isso torna mais difícil insultar as pessoas. Acredito em aceitar homenagens porque, bem usadas, elas se tornam você. Um dia, em meio a grandes acontecimentos, se a gente quer mandar uma carta para o New York Times, uma carta venenosa com ferrão, e ela for publicada, tem-se muito mais projeção.
Best,
Norman
PARA EIICHI YAMANISHI
21 de dezembro de 1964
Caro Eiichi,
Que bom que você gostou do meu artigo sobre a convenção republicana. Por alguma razão, creio que principalmente por Goldwater[20] ser tão odiado aqui, o artigo foi muito bem recebido. Ele teve muito mais comentários favoráveis que qualquer outra coisa que escrevi desde Os Nus e os Mortos. Cheguei a me perguntar o que fiz de errado para o artigo ser tão popular. Na verdade, ninguém compreende como é fácil escrever textos políticos quando se teve a boa sorte de ler na juventude O Dezoito Brumário. Enfim, estão querendo publicar meu texto como livro. Se isso for feito, vou restabelecer o título original: Canibais e Cristãos: uma História da Convenção Republicana de 1964. A revista teve tanto medo de um processo do partido republicano que recusou esse título, o que, naturalmente, me aborreceu, porque isso significava que teria de cortar relações outra vez com a Esquire, e eu estava gostando de trabalhar com eles até aquele ponto. Mas essas decisões não são negociáveis. Acho que não escreverei para eles outra vez até concordarem que tenho direito ao meu próprio título.
Quanto à sua pergunta se escrevi stalinismo quando queria dizer comunismo, a resposta é não. Penso que o movimento comunista moderno, com suas contradições e com sua considerável liberalização, está separado do stalinismo. Não é tudo a mesma coisa, mas ainda acho suas contradições internas profundamente sérias, e se o comunismo, tal como é hoje, governasse o mundo, não sobreviveria, nem mesmo se a ala liberal esclarecida do comunismo moderno saísse vencedora na batalha com o comunismo propriamente dito.
Sabe, acho que existe algo errado na ideologia, no fundo um direitismo errado, como se algum gênio tenha de aparecer e dar nova vida ao que está essencialmente morto em Marx, e que essa morte – como direi – vem de uma falta de visão existencial no próprio núcleo dos poderes intelectuais de Marx, uma falta de reconhecimento que tradição não significa instituições mortas, que é um ser viável, que uma guerra existiu no próprio centro da tradição, entre uma vida de liberalização e um ímpeto para a extinção, e que ao passar por cima dessa distinção, como fez Marx, os movimentos comunistas do futuro foram cortados de sua fonte primitiva (as próprias fontes primitivas repousavam sobre algumas tradições) e assim foram amputados do lugar onde as visões mais criativas podem ser encontradas. Resultou em um imenso poder e uma existência triste, e ainda nada existe no marxismo em condições de enfrentar esse dilema.
Norman
PARA WILLIAM F. BUCKLEY JR.
20 de abril de 1965
Caro Bill,
Escrevo esta carta com grande inveja. Acho que você finalmente vai me substituir como o homem mais odiado da América. E naturalmente essa posição só é suportável quando se é o primeiro colocado. Ser o segundo homem mais odiado, nesse quadro, é um pouco como lavrar a terra atrás de uma mula durante anos, o que me traz à palestra que você fez na Holy Name Society do Departamento de Polícia. Perdi tudo isso, estava no Alaska e tive no New York Post o primeiro indício de que uma bomba explodira. De qualquer forma, não me surpreendeu, quando li seu discurso hoje, verificar que era literário, moderado em relação à sua própria posição e de composição muito feliz com as palavras. Naturalmente, não concordo com sua premissa fundamental. Nisso creio que você está errado. Não sou o inimigo dos policiais como me consideram. Na verdade, a polícia me fascina. Mas isso porque a natureza deles é muito complexa, não tem nada de simples. Do que eu discordaria em seu discurso, se estivéssemos debatendo, é que você criou uma relação de igualdade entre a necessidade de manter a lei e ordem e a natureza dos homens que devem fazer isso. O policial, acho eu, tem uma psique extremamente torturada. Talvez seja mais angustiado que o criminoso, portanto, como pode ver, é impossível concordar com sua avaliação. Ao mesmo tempo, não tenho dúvida de que os jornais citaram erradamente você, aumentando a impressão de que um desastre se aproxima; que só pode levá-lo a um dos seus surrealismos encantadores, tais como bombardear as instalações atômicas da China. Realmente, você me espanta, Bill. Já lhe ocorreu, como bom cristão, que é imoral destruir a propriedade dos outros?
Mas ouça, creio que os dias de nossos debates públicos já passaram – ao menos por ora. Como lutadores, não somos ambos vilões, e isso não cria as necessárias paixões. De qualquer forma, abre-se uma possibilidade interessante – de nós dois termos uma cuidadosa discussão particular uma noite, porque acho, com toda modéstia, que há muito em seu pensamento que é inocente de suas próprias implicações, e que há muito de supérfluo no meu que poderia ser proveitosamente raspado fora pelos poderes de sua lógica.
Incorrigivelmente seu,
Norman
PARA WILLIAM F. BUCKLEY JR.
18 de outubro de 1965
Caro Bill-eleito,
Que raios significa “emunctório”? O senhor foi longe demais, sir, mesmo sendo Buckley. Cheguei a ouvir nitidamente um romano virar-se em seu túmulo quando ouviu a palavra e sussurrar para o vizinho: “Emunctório vem do grego?” Vá lá, você é apenas um velho farsante. Propôs abrir mão do salário de uma semana para não ter de ouvir quem diga mais bobagens previsíveis que eu sobre política externa. Marinheiro Bill, cheguei perto de amá-lo nessa tirada. Quando, neste mundo, você ganhou o pagamento de uma semana, seu plutocrata? Claro que, se você deu indicações de que realmente estava disposto a abrir mão de um cinqüentésimo de sua renda anual, vou sair à procura de um intelectual desses e rachar o prêmio com ele.
Norman
PARA DIANA TRILLING
6 de dezembro de 1965
Querida Diana,
Sua carta foi ótima, e suas ótimas cartas são sempre um prazer de se ler. Não sei se já lhe disse, mas tive a grande, grata e mais curiosa sorte (porque nem toda sorte é boa) de ser rodeado de mulheres amorosas na infância. Nesse sentido, foi realmente uma infância vitoriana. Havia não só minha mãe, para quem nada do que eu fazia estava errado, mas tias pelos dois lados, quatro ao todo, cada uma mais adorável que a outra. E três primas mulheres, todas ligeiramente mais velhas que eu, as quais eu simplesmente adorava – visitá-las era como ganhar sobremesa –, e uma delas tinha uma voz fabulosamente boa e educada e sérias ambições, embora frustradas, de tornar-se uma estrela da ópera. Uma voz de soprano que podia fazer vibrar taças de coquetel a 100 metros. Depois de falar contigo, percebi que você e essa prima eram parecidíssimas em esplendor, timidez, carinho e vulnerabilidade. E ambas de tão excelentes maneiras e ares que eu lhe disse “Diana, você já estudou canto?” e você me olhou surpresa porque pensava que isso era uma das primeiras coisas que todo mundo sabia a seu respeito; eu não sabia, mas adivinhei.
Você sabe que nunca me importo se alguém não gosta de um livro meu. É um direito deles. Além do mais, podem estar com toda a razão. Mas devem dar um motivo, apresentar um argumento, ser capazes de dizer por que não gostam de um livro, não podem simplesmente dizer “Como todo mundo sabe, Um Sonho Americano é ruim”, porque isso não é crítica. Isso é chutar cabeça num beco escuro.
Norman
PARA WILLIAM F. BUCKLEY JR.
Janeiro de 1966
Caro Bill,
Envio-lhe o cheque anexo não porque goste muito da National Review, pois não gosto – não é tão boa quanto devia ser, e muitas vezes é cansativa, principalmente quando já se sabe o que os seus confiáveis colaboradores da velha guarda vão dizer –, mas como demonstração de respeito por você. Sua carta foi a melhor que jamais li de um editor pedindo doações. Além disso, tenho esperança de que um dia nossas mentes se encontrarão em um ponto entre seu conservadorismo verdadeiro e essencial (comparado com seu direitismo – na minha opinião – enfurecido, que ainda enxergo como o último dos seus amargores de segundo ano de faculdade). Sim, ainda vejo alguma futura reaproximação entre seu apreço por velhas árvores e o meu, pois aí, velho amigo, é onde algumas noções existenciais (como a minha) tocam a base conservadora. Por isso mando este cheque. Aliás, no lugar de um jantar. É que, por mais que eu tenha saudade de você e de uma certa esposa sua para o prazer de um bom jantar, não sei se o poderemos ter no momento, com o Vietnã servindo o vinho. Mas acho que já disse isso ou coisa parecida. Esse é o problema com guerras erradas: impedem a continuação de amizades difíceis.
Faço um pedido. Por favor, mantenha esta minha contribuição nas criptas secretas. Não que eu tenha tanto medo da opinião pública quanto tenho da repetição incessante. A repetição mata a alma, e eu não gostaria de passar 100 noites sucessivas explicando de maneira calma a várias pessoas furiosas, e um pouco ignorantes, meus complexos motivos para dar um presente a uma revista pela qual não tenho afeição e a um editor com o qual, em 100 assuntos, discordo de noventa. Não entenderiam que coisa bem escrita é coisa bem escrita, e ocasionalmente arrasta as fichas.
Yours,
Norman
PARA JEAN E ELISABETH MALAQUAIS
10 de abril de 1966
Caros Jean e Elisu,
Não há espaço nem vontade para falar no Vietnã, mas o caso todo seria cômico se não fosse um desperdício cruel. A única resposta, acho, é abrir a Ásia para os comunistas e deixar a Rússia e a China digerirem a refeição juntas. Sonho com a China atolada nos becos mais sujos da Índia, e o fantasma de Mao Tse-tung tendo de falar com Shiva. Mas, sério, algo está acontecendo na América. Pela primeira vez em minha vida acredito que os Estados Unidos podem de fato terminar totalitários, até mesmo hitlerianos; ainda não digo que vai acontecer, mas não me surpreenderia mais. Há ruídos surdos e presságios por todo lado.
Norman
PARA DIANA TRILLING
Junho de 1966
Querida Diana,
Você pergunta se nós dois, como amigos, temos bem noção um do outro; se me dirijo a você como à Diana Trilling verdadeira, e se, por extensão, você fala com o verdadeiro Norman Mailer. E eu fico tão irritado quando leio isso que concluo que você é a grande conservadora – pois quem, na verdade, afora membros graduados de universidades inglesas e Diana Trilling, ainda pensa em gente que existe no real? Quando falo com você, falo naturalmente com uma idéia firme de quem você é, mas como cada pessoa neste mundo é em parte um cientista, ou pelo menos um filósofo racional, uma parte sensorial do meu cérebro está presumivelmente reagindo à idéia, e verificando onde ela está errada e onde está certa. Mas até isso é dar muita corda à sua concepção. Não faço amizade com as pessoas porque preenchem a idéia que faço delas. Sou amigo porque me fazem bem quando falo com elas, e como tudo na terra é extraordinariamente limitado, muitas vezes sequer desejo ter uma idéia perfeita delas.
Não quero ter muitas hipóteses a serem confirmadas ou desaprovadas – há mesmo um prazer animal nos amigos. Sentimo-nos um pouco mais seguros, um pouco mais alegres, instala-se um pequeno anteparo contra o grande pavor que nos espera na rua; portanto, se somos amigos não é necessariamente porque temos uma boa idéia das implicações que podem ter os pensamentos do outro, mas porque somos compatíveis, afins. Porque de certa maneira somos uma família, diferente dos outros tipos de amigos que começam como conhecidos, como colegas. Por essa razão, acho que não é por acidente que nunca tenhamos tido uma conversa política séria. Cada um está bem ciente de que poderia ficar difícil continuarmos amigos depois. E não vejo incoerência nisso. Suas idéias teriam uma importância negativa para mim, se eu não acreditasse em sua boa vontade e boa consciência, tal como minhas idéias lhe pareceriam intoleráveis se você não acreditasse em minha boa intenção essencial. Em suma, parece-me, nossas experiências foram tão diferentes que as idéias finais não casam, mas para mim isso é muito menos importante que o fato de termos uma amizade. É isto que é real.
Nunca, por um instante, considerei se estou falando com a Diana Trilling verdadeira porque sei mais do que bem que estou, sua adolescente, e sei porque tenho a mais clara impressão de não conhecer a quem me dirijo quando estou com alguém que não conheço, quer dizer, com quem não me sinto confortável. Além disso, sinto que suas idéias e minhas idéias tornar-se-ão cada vez menos importantes. Algo está acontecendo que não entendo mais, e eu em geral tinha certeza de que entendia os tempos melhor que qualquer um. Esses McLuhans, esses Pynchons e Jeremy Larners, e esse amor por eletrônica e plásticos e folk/rock me fazem sentir como Plekhanov ralhando com os soviéticos em 1917. Às vezes, acho que estamos no extremo final de alguma coisa que, em pouco tempo, pode ter-se ido para sempre, e que em mais cinqüenta anos, por exemplo, não haverá ninguém vivo que tenha lido Em Busca do Tempo Perdido inteiro. Veja quão melancólico estou. Afinal, que raios me importa quais são as idéias de meus amigos – eles que as acalentem por um tempo, elas não importam nem um pouco mais que as minhas. O que sei é que a maioria da gente entre a qual você passou sua vida intelectual, e são comunistas da década de 1940 em grande parte, tinha uma aridez de invenção e uma esterilidade de emoção com tudo a ver com o preparo do campo para o extraordinário niilismo que agora está sobre nós, porque com raras exceções, e Lionel é uma delas, não apresentaram continuações férteis do pensamento ocidental – sua melhor e última ferramenta foi uma malignidade selvagem, até mesmo canibal.
Love for now,
Norman
PARA GORE VIDAL (E TAMBÉM PARA JAMES BALDWIN, PHILIP ROTH JASON EPSTEIN, TENESSEE WILLIAMS, EDWARD ALBEE, TRUMAN CAPOTE, MARY MCCARTHY, LILLIAN HELLMAN, ALLEN GINSBERG, ARTHUR MILLER, WILLIAM STYRON E ROBERT LOWELL, ENTRE OUTROS)
21 de outubro de 1967
Caro Gore,
Provavelmente, vocês já leram o Protesto de Escritores e Editores contra o Imposto de Guerra, mas venho pedir-lhes para olharem o assunto de novo. Depois de muita consideração e uma certa relutância, terminei assinando a declaração anexa. Receio estar decidido a não pagar a sobretaxa de 10% para a guerra do Vietnã, se a lei passar.
Importuno vocês agora com minha carta a fim de encontrar boa companhia no sofrimento, uma vez que essa causa não me atrai nem um pouco. Como revide a uma ação aberta agora, é possível que os que assumirem esse voto venham a ter que pagar, em indeterminado momento, com silenciosas sessões com agentes do Imposto de Renda, reexaminando as declarações de cada um sobre detalhes que podem nada ter a ver com isso. Ainda está para ser demonstrado que o Imposto de Renda não é vingativo. Apor seu nome a essa lista pode vir a lhes custar uma grande quantia de dinheiro, destruidora mesmo, em 36 ou 48 meses. Já então a guerra no Vietnam terá acabado, e esta causa, morrido. Portanto, nada há de muito atraente em nosso protesto. Seu fruto é o prazer de um frisson. É um incômodo teste de consciência. Depois de procurar todos os bons, decentes, honrados, ou mesmo especiosos argumentos que pudesse achar a favor de não assinar o protesto do imposto, contudo, sucumbi, suspeito eu, devido a uma apreciação bem fundamentada no fígado, de que dar 10% extras a Lyndon -Johnson e sua bela companhia de caipiras seria uma punição maior, no dano causado a qualquer governo por mim mesmo, que alguma sessão de barganha com o Imposto de Renda em anos futuros. Por isso, rogo-lhes que leiam o anexo e sofram a infeliz conclusão de que realmente a gente tem de assinar, pois até então nosso protesto contra a guerra pode ser literário, mas notavelmente desengajado. Vietnam, hot damn.
Seu irmão (sic!) no ofício da pena,
Norman Mailer
PARA LILLIAN HELLMAN[21]
20 de novembro de 1967
Cara Lillian,
Se você não quer assinar o negócio do imposto, posso entender muito bem, mas por favor não assuma a indignação moral de falar em não pagar imposto nenhum. O que disse em minha carta não era que este protesto do imposto faça qualquer sentido, mas que era ultrajante demais pagar mais 10% para aquela guerra no Vietnã. Ademais, você sabe perfeitamente que se pessoas como você, Styron e Arthur Miller e duas ou três dúzias mais assinassem, em vez de apenas gente como Nelson Algren e eu, de quem o governo pode facilmente não tomar conhecimento, haveria uma diferença qualitativa e um real significado político. Em vez disso, você responde com a superioridade de um cu de marisco. Jason[22] teve o supremo desplante de escrever que “preferiria sentar-se num café em Hanói como refém do bombardeio.” Disse-lhe que concordava e que ele devia tomar imediatamente as providências para fazê-lo. Não falo de você porque ambos sabemos o que você tem feito e agüentado, mas confesso um certo enfado com alguns de seus amigos e sua declaração aristocrática a respeito de tudo ou nada, que não ajuda a pegar aqueles mexilhões e ostras agitando um pouco mais a lama em que repousam complacentes.
Seu, querida Lillian
Norman
PARA JASON EPSTEIN
20 de novembro de 1967
Caro Jason,
Bom. Você não pode assinar o negócio do imposto porque não faz sentido para você politicamente. Pensei que minha carta deixava claro que não olhava como assunto político nem como coisa que fazia algum sentido em particular, mas apenas reagia à repulsão de dar ao governo mais 10% especificamente marcados para a guerra no Vietnã. A atitude obviamente nada tem a ver com razão ou programa. É uma ação emocional e como tal foi apresentada. Não inspira nenhum entusiasmo particular em você – você acha que seria mais interessante sentar-se num café em Hanói como refém do bombardeio. Concordo com você, acho que seria mais interessante. Por que você não o faz, em vez de falar a respeito?
Cheers,
Norman
PARA MARVIN GORSON
11 de abril de 1968
Caro Marvin,
Acho que não vou aceitar seu amável convite para ser o filósofo residente do Partido da Paz e Liberdade por duas das melhores razões possíveis. Não consigo imaginar um caminho claro para uma posição política coerente. Como você pode ou não saber, sou um conservador de esquerda, o que inclui contradições como ser contra a renovação urbana, mas por outro lado não ser necessariamente pró-legalização da maconha. Posso sair a favor da legalização se a polícia continuar a assediar as pessoas e a prendê-las desnecessariamente, mas prefiro que ela seja ilegal, pois dá um toque de iguaria à fumaça e nos salva de uma empresa ser capaz de adicionar vitaminas na maconha com filtro, cultivada hidroponicamente e híbrido-estimulada. Para não mencionar os comerciais psicodélicos que não precisaremos ver. Também não tenho muita certeza de que Eugene McCarthy e Robert Kennedy sejam indistinguíveis de Hubert Humphrey, que, se não por outro motivo, deve pagar por sua total adesão à guerra no Vietnã. Está muito bem dizer que não há diferença entre Kennedy e -Johnson, mas não estou muito certo de que concordo. Não importa tanto o que vai na cabeça de Kennedy quanto o fato de se ter um país totalmente diferente se um homem que usa o cabelo do jeito que ele usa chega a ser nosso presidente.
Sinceramente,
Norman
PARA REPÓRTERES
5 de junho de 1968
Lido para Tom Harris, da Associated Press, no dia da morte do senador Robert Kennedy.
A figura política de mais viva personalidade é sempre a que está mais sujeita ao perigo do assassínio, pois motiva profundos e contraditórios impulsos em amigos e inimigos e, assim, agita a oscilação dos desequilibrados. Acho que o senador Robert Kennedy estava bem consciente desse perigo, portanto é um atestado ao seu heroísmo ele ter avançado ousadamente na campanha.
Lido para Tom Harris e Madeline Bloom, da WOR-TV.
Era o mais raro dos políticos americanos – um moço que tinha uma extraordinária capacidade de mudar com os tempos e, no entanto, estava pronto a ir contra eles. Enquanto outros políticos tomavam a água na manjedoura dos porcos da mediocridade americana, Robert F. Kennedy parecia beber da raiz principal da vida americana aquele mistério que pergunta: “É nossa democracia épica ou finalmente trágica?” Essa era a pergunta com que ele parecia viver – aquela era a sombra no humor do belo sorriso do senador. Boa noite, doce príncipe, foi o grito que pervagou o sono da nação.
PARA NORMAN PODHORETZ[23] [não enviada]
6 de abril de 1969
Caro Norman,
Apreciei muito a sua carta e sei que não deve ter sido fácil escrevê-la. Se ela nada fez além de esclarecer por que motivo eu tinha de escrever a resenha que fiz na Partisan, considero seguirmos em frente, com nossa amizade restabelecida, talvez. Compreendo que você não pode trabalhar para mim.[24] Isso violaria muitos de seus mais firmes princípios políticos, e as idéias em política devem ser mais importantes que as amizades, pois, no fim, trabalha-se em política por uma idéia e não para um amigo o qual a gente acha secretamente que tem a idéia errada. Compreenda que não contar com você nesta campanha não é perda pequena – quem mais teria o seu conhecimento dos 1 001 problemas que surgirão? Quem mais poderia atuar na comunidade judaica, já que terei de trabalhar para convencê-los de que minha candidatura é a única que vai livrá-los da alternativa de conviver com um acelerado anti-semitismo, ou de optar pela direita e saudar um Estado policial que mantenha os negros em seu lugar?
Norman
PARA ALLEN GINSBERG
9 de dezembro de 1969
Caro Allen,
Esta é só para dizer love ao seu presbitério e dar três vivas ao cultivo orgânico.
Sinceramente,
Norman
PS. Pedem-me para escrever artigos sobre o que acho que serão os anos 70. Sabe, não tenho a mais remota idéia. Tínhamos certezas quanto aos anos 60, e não estávamos muito errados. Os anos 70 são apenas um branco assustador para mim. Tomara que seja a idade, e não pressentimentos. Feliz Natal, querido poeta.
(Continua na próxima edição.)
[1] Beatrice Silverman foi a primeira das seis esposas de Mailer. O casamento durou de 1944 a 1952.
[2] Caso o Japão não se rendesse, Mailer integraria as tropas do VI Exército, que invadiriam a ilha de Kyushu em três meses.
[3] A rendição formal do Japão ocorreu a bordo do encouraçado americano USS Missouri, em 2 de setembro de 1945.
[4] O pacifista Norman Thomas (1884–1968) concorreu seis vezes à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Socialista.
[5] David Hecht (1920–) é cientista social, autor de Russians Radicals Look to América.
[6] Rassemblement Démocratique Révolutionnaire, efêmero partido fundado na França, em 1948, por Jean-Paul Sartre.
[7] Comitê da Câmara sobre Atividades Antiamericanas, criado em 1937 e presidido pelo deputado Martin Dies.
[8] Atores e diretores de cinema que se recusaram a testemunhar perante a Comissão sobre Atividades Antiamericanas do senador Joseph McCarthy.
[9] Henry R. Luce (1898–1967), fundador e dono da revista Time.
[10] Romain Gary (1914–1980), escritor francês nascido na Lituânia , autor de Toda a Vida pela Frente (Rocco, 1986) sob o pseudônimo de Émile Ajar.
[11] Nikolai Bukharin, Grigori Zinoviev e Lev Kamenev, revolucionários de 1917, foram executados nos expurgos stalinistas dos anos 30.
[12] Jean Malaquais (1908–1998), romancista e ensaísta de origem polonesa e língua francesa que se naturalizou americano.
[13] Mike Wallace (1918–), um dos mais respeitados jornalistas da televisão americana, responsável pelo programa 60 Minutes.
[14] Ezra Pound (1885–1972), poeta americano radicado na Europa. Anti-semita e defensor de Mussolini, fez programas radiofônicos na Itália contra a entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial. Foi acusado de traição pelo governo americano em 1943, preso em 1945 e solto em 1958, após passar quase treze anos em instituição psiquiátrica.
[15] Seis vezes governador do estado de Arkansas, Orval Faubus (1910–1994) foi forçado por lei federal a aceitar a integração racial em escola pública em 1957.
[16] Danielle, filha de seu casamento com Adele Morales, a mulher que ele esfaqueou numa festa, em 1960.
[17] Organização que se opunha à política de John Kennedy contra Cuba. O grupo, do qual faziam parte Mailer, Allen Ginsberg e Lee Oswald, entre outros, foi infiltrado pelo FBI e dissolveu-se depois do assassinato de John Kennedy, em 1963.
[18] A expressão designa as escolas particulares da Nova Inglaterra freqüentadas pela elite americana.
[19] William F. Buckley Jr. (1925–2008), ensaísta e jornalista conservador, fundador da National Review.
[20] Barry Goldwater (1909–1998), senador republicano, derrotado por Lyndon Johnson na eleição presidencial de 1964.
[21] Lillian Hellman (1905–1984) escritora e dramaturga, autora da peça As Pequenas Raposas e do livro de memórias Pentimento, que serviu de base para o filme Julia, ganhador de três Oscars em 1977.
[22] Jason Epstein (1928–), editor de livros e fundador, em 1963, do New York Review of Books.
[23] Norman Podhoretz (1930–), escritor conservador, editor-chefe da revista Commentary.
[24] Tratava-se da campanha de Mailer a prefeito de Nova York, em que ele prometia transformar a cidade no 51º estado americano. Chegou em quarto lugar, entre cinco candidatos.