Datz, na casa que desocupou e nunca vendeu: o andarilho vivia como se não tivesse nada CREDITO: ADELAIDE IVÁNOVA_2014
Arroz de festa à pernambucana
Vai-se Joel Datz – o último dos Irmãos Evento –, que por quatro décadas marcou presença na cena cultural do Recife
Gianni Gianni | Edição 180, Setembro 2021
Até hoje não entendi o significado deles. Que importância os irmãos tiveram para a cultura da cidade?”, indagou um sujeito numa das diversas postagens que se espalharam pelas redes sociais no Recife no último dia 16 de julho. Museus, galerias, coletivos e artistas, todos homenagearam Joel Datz, morto naquela sexta-feira. O septuagenário figurava entre os rostos mais marcantes da capital pernambucana, sempre com uma barba longa, alva e pitorescamente desgrenhada, que ele só aparava no dia 29 de fevereiro, a cada quatro anos. Os jornais, revistas e portais do estado também lamentaram o falecimento do descendente de judeus, que frequentava a Sinagoga Israelita do Recife, no bairro da Boa Vista. Em nota oficial, a Secretaria de Cultura do município o definiu como “a presença mais cativa” dos eventos recifenses e enfatizou que o carismático personagem deixará “uma cadeira para sempre vazia”.
“Presença mais cativa” não é força de expressão. Com assiduidade espantosa, Datz prestigiava a programação cultural da cidade desde a década de 1980. Começou as incursões ao lado do irmão, Abrahão. Nessa época, ambos ainda moravam em um antigo casarão na Praça Chora Menino, no Centro, onde haviam crescido. Eram engenheiros civis não praticantes. Quando caía a noite, Abrahão tocava violino enquanto Datz o acompanhava no acordeom. Mal os concertos domésticos terminavam, a dupla saía do casarão com fama de mal-assombrado para dar as caras em vernissages, lançamentos de discos, filmes e livros, inaugurações, shows, estreias de peças e toda sorte de festivais. O que se iniciou como simples divertimento logo virou missão. Os dois percorriam o máximo de lugares por noite, prática que lhes garantiu o apelido de Irmãos Evento.
Brancos, magros e altos, pareciam gêmeos, e muitos imaginavam que realmente fossem. Engano. Abrahão, o mais velho, morreu em 1995 com 52 anos. Assim como Datz, sucumbiu em decorrência de problemas cardíacos. Juntos, costumavam atravessar o Recife a pé. Raramente pegavam ônibus, jamais aceitavam caronas. Apareciam tanto em cerimônias públicas quanto num bom número de celebrações privadas, incluindo casamentos, para as quais nem sempre haviam sido chamados. Curtiam festas e afins também por causa das iguarias que petiscavam nos bufês. Com o tempo, os dois barbudos – ternos, discretos e extremamente simples no vestir – deixaram a condição de penetras e passaram a receber convites. Às vezes, até protagonizavam notinhas em colunas sociais.
Depois que Abrahão morreu, Datz trocou a casa da infância por um apartamento na mesma área e, ao longo dos 26 anos seguintes, continuou perambulando pela cidade. Dizia que estivera em mais de 60 mil eventos. A última vez que o encontrei foi no dia 20 de novembro de 2019, durante o lançamento do livro 30 Entrevistas da Revista Continente, num bar da Zona Norte. Naquela noite, o cantor Otto, atração musical da festa, fez questão de tirar fotos com o convidado ilustre.
A pandemia acabou por desferir na vida do andarilho um golpe tão cruel quanto a perda de seu grande parceiro. As quatro décadas de devoção à efervescência do Recife foram interrompidas pela autoridade do vírus. Antes disso, ainda em 2019, o Irmão Evento reclamara que vinha sendo barrado e desrespeitado em muitos espaços. Cogitou abandonar a cidade. A classe artística reagiu e criou a hashtag #ficajoel.
Nos meses de reclusão, Datz engordou 26 quilos e experimentou de forma aguda o desalento da pandemia. A cantora e percussionista Isaar, amiga e vizinha do andarilho, conta que o viu três vezes nessa fase. “Era notável o abatimento dele”, me disse. A quarentena se revelou ainda mais sombria porque o Irmão Evento foi um desses derradeiros indivíduos offline que não aderiram ao celular nem à internet. Seus encontros se davam no mundo lá fora. Datz nem sequer tinha televisão.
Em novembro de 2020, num curto período de flexibilização do isolamento social, conseguiu escapulir para uma solenidade que não poderia acontecer sem a presença dele: a reabertura do Teatro do Parque, instituição centenária que estava em obra havia dez anos.
Isaar relembra que conversou pela primeira vez com Datz em 2013, quando o Irmão Evento a abordou na sede da Rádio Folha. “Eu já conhecia sua fama de ‘agenda cultural ambulante’ e fiquei muito impressionada com o quanto ele sabia de mim. Logo perguntou sobre meu próximo disco e elogiou o Comadre Fulozinha.” A cantora fez parte do grupo, que surgiu em 1997 e tinha outras cinco integrantes, entre elas Karina Buhr e Alessandra Leão. “Aí eu comecei a encontrá-lo mais nos shows, e descobrimos que éramos vizinhos.”
Tentei esclarecer com Isaar uma informação desencontrada: muita gente afirmava que Datz já não tinha nenhum parente. No entanto, quando o andarilho completou 76 anos, em março passado, uma jornalista mencionou nas redes sociais que dois filhos dele moravam em São Paulo. A cantora me confidenciou que também se surpreendeu com a notícia e questionou o amigo sobre o assunto. Ele apenas riu, sem dar qualquer resposta. Muito reservado, Datz era avesso a entrevistas. No tempo em que Abrahão ainda estava vivo, a dupla chegou a recusar um convite para o programa de Jô Soares na tevê.
Datz nunca vendeu o casarão da infância, que conservava desocupado e visitava regularmente. Diz-se que tinha outros bens, em especial imóveis, talvez herdados da família, mas o fato é que aparentava haver abdicado de tudo que lhe soava frívolo. Vivia como se não possuísse quase nada. Era uma figura cuja potência desafiava o provincianismo. Por isso, não me espantei quando descobri uma página no Facebook intitulada Irmãs Evento. Na outra ponta do país, em Curitiba, Cláudia Zepter e Luce Scettro, de 58 e 61 anos, pegaram emprestado o nome para batizar o seu negócio. Elas são curadoras de “eventos criativos e sustentáveis”.
“Nós moramos no Recife por muito tempo e pudemos acompanhar parte da trajetória de Abrahão e Joel. O comparecimento de ambos às celebrações equivalia a um selo de qualidade”, explicaram num e-mail assinado conjuntamente. No Facebook, as irmãs sempre compartilhavam informações sobre Datz e noticiaram sua morte, que ocorreu após três dias de internação no Pronto-Socorro Cardiológico Universitário de Pernambuco. Em razão da pandemia, o horário do enterro não foi divulgado. Assim, a derradeira cerimônia de que o andarilho participou reuniu apenas oito pessoas. Nenhuma pertencia à família de Datz.
Qual a importância dos Irmãos Evento? Há quem ainda faça a pergunta, mas a maioria dos que frequentam os cinemas, teatros, livrarias e museus do Recife tem a resposta na ponta da língua: os dois simbolizavam o apreço incondicional pela arte. À maneira recatada deles, marcavam presença no circuito cultural da cidade não porque desejassem aparecer, ganhar status ou estreitar laços sociais. Iam sobretudo para se deleitar com o que lhes era apresentado. E, de quebra, saboreavam uns bons quitutes.
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