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Aula de anatomia
Poucos brasileiros conseguem olhar para o próprio corpo como uma carcaça a ser dissecada em sala de aula
Aureliano Biancarelli | Edição 2, Novembro 2006
A nissei Fuzako Nakagawa Ip gosta de passear pelo quintal apontando a lima branca, o limão-cravo, o caquizeiro brotando, o bambu-preto onde os cachorros se coçam. “É meu pedaço preferido.” Faz questão de indicar ao visitante as flores que estão se abrindo, camélias, bicos-depapagaio, antúrios, orquídeas, o trevo do Japão… “As plantas me fazem viver.” Fuzako tem 75 anos, mora no bairro do Ipiranga, zona sul de São Paulo, e está entre os 19 voluntários que doaram seus corpos para ensino e pesquisa. Quando morrer, vai virar “material didático” dos estudantes da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp, como ela mesma diz.
Quatro anos atrás, enquanto Fuzako visitava um amigo doente e passeava pelo pátio do Hospital São Paulo, se lembrou de uma notícia em jornal alertando para a falta de cadáveres nas escolas médicas. “Um jovem de jaleco branco passava por ali e eu lhe perguntei como fazer para doar meu corpo. Eu já sabia que depois dos 60 anos não se pode mais ser doador de órgãos, só os olhos. O jovem me levou até a sala de Ricardo Luiz Smith, chefe da anatomia da Escola Paulista, que me deu uma aula sobre dissecação.
O professor também falou demoradamente da importância que meu gesto teria para os estudantes. Apenas não me mostrou o laboratório com os corpos. Eu tampouco quis vê-lo.”
Dias depois, Fuzako assinou um “termo de doação” em que deixava expresso o “desejo” de doar seu corpo, após o óbito, “em favor da Universidade Federal de São Paulo”, a Unifesp. O termo foi feito em duas vias e a assinatura reconhecida no Cartório de Registro Civil do 18º Subdistrito, no Ipiranga. Duas testemunhas também assinaram o documento.
Quando Fuzako morrer, não haverá enterro. E já avisou que não quer velório. Seu corpo irá para o laboratório de anatomia da faculdade, onde será preparado em formol diluído a 10% e depois dissecado pelos estudantes. “No velório do meu amigo vi as pessoas sonolentas, abrindo a boca. Não quero que se cansem por minha causa, nem que alisem minhas mãos frias”, ela diz com um sorriso tímido. “Prefiro que alisem minhas mãos enquanto estiverem quentes. Quando morrer, vou servir menos que sapato usado. Se minha carcaça puder ser útil para outros, já será minha glória.”
O gesto de Fuzako pode contribuir para mudar uma cultura na qual se glorifica a doação de órgãos, mas se resiste à idéia de entregar um cadáver, material de primeira necessidade para quem estuda medicina. Por conta dessa cultura — diferentemente do que acontece no Japão, EUA e em alguns países europeus —, estão faltando corpos nas escolas médicas do país. Nos dois laboratórios ao lado da sala onde Fuzako preencheu sua doação, alunos se debruçam sobre oito cadáveres. Para aqueles 110 estudantes de Anatomia da Paulista de Medicina seriam necessários vinte cadáveres. A Sociedade Brasileira de Anatomia e bons professores do ramo dizem que o ideal é que se tenha um cadáver inteiro — também chamado de “fresco” ou “novo”, isto é, não trabalhado por turmas anteriores — para cada grupo de seis alunos.
Só no Estado de São Paulo, são 28 escolas médicas, cerca de 2.700 novos alunos a cada ano. Por essa conta, seriam necessários cerca de 500 corpos. Como no resto do país há outras 130 faculdades de medicina, com cerca de 12.200 alunos, o ensino médico nacional tem uma demanda anual de pelo menos 2.000 cadáveres. Richard Halti Cabral, 33 anos, recém empossado presidente da Sociedade Brasileira de Anatomia, diz que um cadáver para seis alunos já seria “muito bom”. “Mas o ideal, ideal, seria um para cada dois alunos, porque cada cadáver tem duas pernas e dois braços, o que daria um membro para cada estudante.”
Ocorre que a grande maioria da população urbana morre em hospital ou em casa, com acompanhamento clínico, o que garante o atestado médico e dispensa a autópsia. Se a família autorizar, esses corpos poderão ser usados pelas faculdades, mas raríssimas vezes isso acontece. Quem morre por causas externas — acidentes de carro, quedas, tiros, facadas — ou quem morre sem identificação precisa, sempre, ser autopsiado pelo Instituto Médico Legal, para a determinação da causa mortis. Por lei, nenhum desses corpos pode ser utilizado em pesquisa.
Convém não confundir a legislação de doação de órgãos para salvar pacientes a perigo com doação de corpo para estudo e pesquisa científicas. Da lei 9.434 de fevereiro de 1997, que estabeleceu o “consentimento presumido” para a doação de tecidos, órgãos e partes, e acabou anulada por rejeição popular, sobrou pouco. Hoje, quem decide se a córnea de um acidentado pode ser doada é a família, independentemente da opção em vida do doador. Na prática, acaba sendo assim também para a doação de um corpo. Embora a doação do cadáver para ensino seja prevista no artigo 14 do Código Civil e regulamentada pela lei 8.501 de 1992, a última palavra acaba sendo da família. A menos que não tenha família.
Para que um cadáver possa chegar a um laboratório de pesquisa de uma instituição acadêmica é preciso que a morte tenha sido de causa natural, que o corpo tenha identificação, mas que não tenha sido reclamado pela família num prazo de trinta dias. O Serviço de Verificação de Óbitos (SVO) da Faculdade de Medicina da USP, tido como a maior geladeira para cadáveres do mundo ocidental, tem a oferecer, para pesquisa, não mais de 25 corpos por ano. Isso, apesar do departamento realizar uma média de 13 mil autópsias por ano, e outras 1.400 na unidade de Ribeirão Preto.
Conhecida como “piscinão” pelas suas dimensões, a geladeira do serviço de dissecação da USP tem espaço para abrigar cinqüenta corpos, enquanto o Instituto Médico Legal central de São Paulo, por exemplo, tem capacidade para apenas 36.
Os 25 cadáveres da USP que preenchem as exigências legais não chegam nem perto da necessidade prática dos 180 alunos de Anatomia da Faculdade de Medicina. “Hoje há cada vez menos pessoas completamente abandonadas”, diz Carlos Augusto Pasqualucci, professor do departamento de patologia daquela faculdade e diretor do gigantesco SVO. O número de mulheres é ainda menor, quase inexistente. “Estou vendo o dia que vamos ter de aprender medicina com bonecos de plástico, com sério risco para a qualidade do ensino.”
O caminho para sair do impasse seria a doação. Justamente o que fez Fuzako Nakagawa Ip quando assinou o “termo de doação” em 7 de dezembro de 2002. Fuzako completou 75 anos em julho passado e perdeu o marido quando tinha 45, “nove anos, um mês e catorze dias” depois que se casaram. Ficou com dois filhos pequenos e a incumbência de tocar a gráfica deixada pelo marido. Filha de pais japoneses que chegaram ao Brasil em 1928, Fuzako entende e traduz japonês, chinês, português, e percorreu o budismo, o taoísmo, o cristianismo e o espiritismo em busca de um “entendimento da vida”. “Em todos esses caminhos, encontrei uma só lição, ‘pense sempre nos outros’. E direcione a saúde de seu corpo para aqueles que necessitam.”
O uso de cadáveres em estudo e a dificuldade em obtê-los remontam a períodos medievais quando pesquisadores roubavam corpos de cemitérios. No Brasil, até os anos 60, os hospitais psiquiátricos eram os grandes fornecedores de corpos para pesquisa. Para Belo Horizonte iam os cadáveres do manicômio de Barbacena; para o Rio, os da Colônia Juliano Moreira, para São Paulo, os do Juqueri. “Eram os ‘campos de concentração’ da época. Cadáveres aos montes, não reclamados por ninguém”, diz o professor Benedito Toledo, chefe da anatomia da Universidade Federal Gama Filho, do Rio de Janeiro.
Com a redução nas mortes e no número de internados nos manicômios, cada Estado passou a buscar caminhos próprios e cada escola médica se ajeitou em acordos com hospitais. Em 1955, a Escola Paulista de Medicina (hoje Unifesp) fez um convênio com a USP, recebendo os cadáveres que não eram aproveitados pela Universidade de São Paulo. “Chegavam rabecões com três a quatro cadáveres por dia”, lembra Carlos Augusto Prates, livre-docente de anatomia da USP. “Quando precisávamos mostrar as artérias do coração, não tínhamos um só coração, tínhamos dois, três. Foi a época em que mais se fez pesquisa nessa universidade. Hoje, em muitas escolas privadas, um cirurgião opera um abdome sem nunca ter visto um.”
Em 1992, a lei 8.501 veio para disciplinar o uso do cadáver para ensino, muitas vezes abusivo e irresponsável. Desde então, só podem ser utilizados pelas escolas corpos identificados, vítimas de morte natural e que não são reclamados num prazo de trinta dias. Nesse período, a instituição de ensino interessada no cadáver deve publicar em jornal de grande circulação dez anúncios, em dias alternados, informando que o corpo de fulano de tal, com tal altura, peso e cor, se encontra disponível para reconhecimento da família. Passado esse período, a escola envia essa documentação ao cartório, que por sua vez encaminha ao juiz, que emitirá uma certidão de óbito e autorizará o uso do corpo. No lugar do nome do cemitério, constará o nome da faculdade. Algumas escolas, como a Unifesp, chegam a aguardar trinta dias a mais antes de iniciar a dissecação do cadáver.
Edson Aparecido Liberti é professor titular de anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas, o ICB, da USP. “Cada série de dez inserções nos jornais custa cerca de 3 mil reais”, observa. “Nosso departamento recebe 50 mil reais por ano para todas as despesas, temos que dividir os gastos dos cadáveres com material de limpeza, xerox, cafezinho. Estamos lutando para que o cadáver seja um material didático, como multimídia, datashows, giz…; desta forma o dinheiro poderia vir de outras fontes.”
O Rio de Janeiro vem tentando resolver a questão à sua maneira. “A lei é tão complicada que as escolas públicas não conseguem seguir os trâmites, não têm tempo, não têm vontade, nem dinheiro”, diz Benedito Toledo, da Gama Filho. As principais escolas hoje mantêm convênio com hospitais públicos do Estado e do município e com isso simplificam os acertos. Quando alguém morre no hospital de causa natural e não é reclamado por parentes, o corpo é conservado por trinta dias, “formolizado”, enquanto o serviço social aguarda pela família.
Quando o corpo não é identificado, cabe ao hospital fazer o reconhecimento datiloscópico, anotar os dados e tirar fotos. Todos os documentos permanecem no hospital, de forma que, caso alguém da família procure mais tarde, saberá onde foi enterrado ou onde está sendo estudado. Depois de um mês, ele é despachado para uma faculdade seguindo um rodízio. “Nós chegamos a guardar o corpo por meses nas cubas”, diz Benedito Toledo. “Se o parente aparecer e quiser levar o corpo, poderá enterrá-lo. Mas a maioria só quer a certidão de óbito para fins de uma pequena herança ou de inventário. Não está preocupado com o corpo.”
Como todos os seus colegas, o professor Ricardo Luiz Smith cultiva há mais de duas décadas a esperança de que no Brasil se crie a cultura de doação de cadáveres. Na sala que ocupa ao lado da reitoria, ele guarda uma pasta cinza onde estão os documentos assinados por pessoas que desejam doar seus corpos. São apenas 19 ao longo de duas décadas, e de Fuzako é um deles. São duas freiras, um engenheiro, um médico, alguns estudantes, outros sem profissão informada. Até agora, nenhuma dessas doações se transformou em cadáver disponível, seja porque ainda não morreram, seja porque a família não informou sua morte.
Liberti, do ICB da USP, mostra os dois laboratórios reluzentes da casa, cada um com quinze mesas inox. Sobre cada mesa deveria estar um cadáver, e em torno de cada corpo deveriam estar seis alunos. Na prática, os estudantes se juntam à volta de uma mesma mesa, revezando-se no uso da tesoura e do bisturi para separar gorduras de peles. Numa sala anexa estão cubas plásticas contendo o que na linguagem do professor são as “peças” — aparelho respiratório, aparelho digestivo, cabeça, língua e laringe, todas identificadas com etiquetas. Outras cubas maiores abrigam cadáveres inteiros e um caixão funerário encostado num canto serve de receptáculo para as sobras usadas pelos alunos, ou “retalhos”, como diz o professor. Uma vez repleto, o caixão é enterrado ou incinerado. Ao contrário de todas as salas e laboratórios, que levam o nome de anatomistas conhecidos ou de técnicos destacados no preparo de peças, a sala das cubas e dos cadáveres não tem nome. “Ninguém gostaria de ser homenageado dando o nome a um depósito de cadáver”, explica.
Alguns países como o Canadá já desistiram de utilizar cadáveres para o ensino da anatomia humana. As aulas são dadas com o uso de peças, modelos sintéticos e programas de computação que permitem examinar o corpo e seus movimentos em três dimensões. Também recorrem a exames por imagem — do simples raio X à ressonância magnética —, direcionando o aprendizado para a anatomia em pacientes vivos. “Quando se têm apenas aulas teóricas, o aluno vai acabar aprendendo na prática, no próprio paciente”, adverte o brasileiro Ricardo Smith. “Costumo dizer que a anatomia em cadáver é como aprender pelo método braile”, acrescenta o colega Edson Liberti. “Para saber a consistência de um menisco, o aluno precisa ver e apalpar. O mais próximo do vivo ainda é o morto. O nosso paciente é o cadáver.”
Ao contrário do que se costuma imaginar, alunos e professores de anatomia conservam uma reverência especial ao corpo de um morto. “O contato com o cadáver tem um aspecto que não é só de ensino, mas de formação”, diz o professor Smith. “A proximidade com o cadáver é uma forma de perceber nossas limitações, de esfriar um pouco o ímpeto do jovem. Os alunos vão sair daqui e se defrontar com o cotidiano de um pronto-socorro, daí ser preciso elaborar esse contato com o sofrimento.” Não por coincidência a recepção dos calouros de medicina costuma ocorrer numa aula de anatomia. Além disso, uma vez por ano, as escolas mais tradicionais celebram o que chamam de “missa do cadáver”, um culto ecumênico em torno de um corpo coberto sobre uma mesa de laboratório.
Há pelo menos duas décadas se tenta encontrar no país formas de incentivar e facilitar a doação de cadáveres para ensino. Até agora, quem mais se mexeu foi a Universidade Federal do Paraná. “Estamos fazendo campanhas discretas para que as pessoas doem seus corpos, sempre tomando cuidado na forma de dizer, porque no Brasil não existe essa cultura”, diz José Geraldo Auerswald Calomeno, professor da UFPR e presidente da Comissão de Distribuição de Corpos para Estudo e Pesquisa criado por um grupo de escolas médicas do Estado. Em agosto foi a vez da Assembléia Legislativa daquele estado aprovar um projeto de lei criando o Conselho de Corpos para Ensino e Pesquisa.Todas as escolas médicas deverão fazer parte desse conselho, os corpos disponíveis em todo o Estado serão distribuídos de “forma eqüitativa e transparente”, e a fiscalização ficará a cargo do Ministério Público.
Em São Paulo, uma proposta defendida por professores contempla o pagamento de todas as despesas de um funeral à família que doar o corpo de um parente. Em seus artigos e entrevistas, o professor HIi-Sei Watanabe, do departamento de anatomia do ICB, lembra que, além desses benefícios, a proposta prevê um atendimento de saúde diferenciado aos familiares mais próximos do falecido, nos hospitais da universidade. A cada ano, haveria um culto para as famílias, em torno de um “cadáver simbólico”.
Outro especialista teme que a escassez faça o Brasil voltar aos “tempos sombrios”, referindo-se não apenas aos manicômios que forneciam cadáveres, mas às máfias de “papa-defuntos” que agiam em todo o país. A Sociedade Brasileira de Anatomia chegou a fazer denúncias, mas a prática ainda não foi extinta por completo. Grupos ligados a funerárias oferecem a famílias humildes todos os gastos com funerais, desde que lhes forneçam uma procuração para se ocupar do cadáver. Com a procuração na mão, tanto podem receber do governo o “seguro funeral”, que deveria ir para a família, quanto vender o cadáver para faculdades. Os próprios anatomistas relatam casos de professores que transportavam em seus carros de passeio corpos “esquecidos” em cidades do interior, “pensando no bem de seus alunos”.
Liberato John Alphonse Di Dio, que foi catedrático da Medical University of Ohio e morreu dois anos atrás, está entre os que mais se empenharam para que a doação fosse adotada como prática no Brasil. Di Dio foi professor da USP, membro de instituições internacionais de anatomia e ensinou em três universidades americanas, onde implantou cadastros de doadores. Segundo ele, a doação em vida tem uma vantagem decisiva: o corpo passa a ser um material didático com prontuário médico conhecido. O aluno dissecará aquele cadáver sabendo, por exemplo, que teve caxumba na infância ou pedra no rim quando adulto.
Com informação e estrutura adequadas, não faltariam pessoas como a doadora Fuzako, que afirma cuidar do corpo da melhor forma para que tenha a melhor destinação. Fuzako conta que gosta de viajar, “comer em lugares simples, percorrer lugares que não aparecem nos guias de viagem”. “Gosto de viver bem, a lamúria incomoda. Esse corpo que eu cuido, que alimento direitinho, no qual passo creme todo dia, não vou deixar que ele seja comido por vermes. Quero para ele uma destinação mais nobre.”