ILUSTRAÇÃO: JOHN FRENCH_JOHNEFRENCH@HOTMAIL.COM
Aura
Não conseguia nomear essa dor que não era apenas física, e que só muito tempo depois descobri seu verdadeiro nome: melancolia
Milton Hatoum | Edição 49, Outubro 2010
A primeira crise aconteceu dentro de uma igreja, há muito tempo. O menino se ajoelha para receber a hóstia consagrada e, subitamente, sente pontadas no crânio. A partir daí, na explosão da dor, tudo é dúvida. Deus também: uma dúvida. O espaço no interior do templo se embaça, e a nave, o altar, as estátuas dos santos, tudo desaparece como as imagens de um sonho interrompido. Lentamente, o menino acorda e vê o rosto assustado de sua mãe ao lado de um homem de branco. E, desde então, os analgésicos, unguentos, compressas. A insônia…
Certa vez um poeta afirmou que a História é imprevisível. A dor também. Há um diálogo secreto entre ambas. A dor tem uma história confusa, nem sempre é cíclica, às vezes a primeira pontada surge um mês depois da última crise, ou pode surgir daqui a pouco, como um castigo ou maldição. Depois da crise, a paz volta a reinar. Na cabeça: a paz precária de uma trégua.
Tio Ghodor dizia que esse tipo de dor é consequência da tensão. Não é possível suportar o sofrimento do mundo, ele dizia. Mas ninguém se importava com as palavras desse tio, e eu era uma criança, não conseguia entender “o peso do sofrimento do mundo”. O calor do Equador também podia ser uma das causas. E de tanto minha mãe insistir na relação dor–calor, eu acabei por acreditar nisso. Ela repetia as palavras de um médico: o calor dilata as artérias e veias do cérebro. E desde a primeira crise na infância, a mãe exerceu uma vigilância exagerada sobre o filho com propensão à cefaleia. Eu me sentia excluído do clã, tudo o que me atraía era impróprio, e por causa dessa excessiva vigilância materna, a infância na cidade solar e fluvial foi ameaçada. Minha mãe dizia que os banhos nas cachoeiras do Tarumã e os passeios de barco às praias do rio Negro e ao lago Janauacá podiam aquecer minha cabeça e provocar “uma cefaleia violenta, que correria o risco de se tornar crônica”.
Antes da saída do barco, eram tantos os conselhos – Não fiques no sol, te afasta do motor, não saias de perto da Maria do Carmo –, que durante a viagem eu parecia uma criança sem motricidade, sem fala, sem expressão, como se eu fosse um náufrago no porto, antes mesmo da travessia do rio. Depois, bastava dar uns passos na direção da proa ensolarada para que eu ouvisse as advertências. E, quando numa dessas viagens eu era acometido por uma crise – a primeira que me lembro com nitidez aconteceu na praia da Lua –, sabia que nos próximos fins de semana eu não poderia passear de barco, o que significava dar adeus a um dos maiores prazeres da infância. Proibido de viajar, eu me refugiava no balcão do quarto do tio Ghodor – um quarto dividido em dois, como os outros quartos da nossa casa –, de onde podia ver redes penduradas num convés. Quando anoitecia, eu esperava um motor aproximar-se do atracadouro, o banzeiro fazia oscilar o convés e a cabine de comando, na verdade eram as luzes que ondulavam no rio e na noite. Alguns passageiros subiriam a praça na direção da igreja, até ingressarem no ângulo visual que me pertencia. Olhar para aquele trecho da praça, mal iluminado e deserto antes da chegada de um barco, foi um ritual de muitas noites da infância. Essa espera – o olhar ansioso da espera – significava: meu pai pode ser um daqueles passageiros noturnos.
Abria um mapa do Amazonas e imaginava o barco do meu pai navegando em tal rio ou atracando num povoado do Alto Solimões, quase na fronteira com outro país. Quando ele chegava de uma longa viagem, entrava em casa com um ar de fadiga que me impressionava. Ganhava de presente pássaros de madeira, pequenas peças que me atraíam e fascinavam porque não se assemelhavam aos pássaros que eu tinha visto. Não brincava com eles, eu os admirava e me perguntava quem os tinha feito. E só algum tempo depois soube que esses pássaros tinham sido feitos por índios de uma aldeia do Alto Solimões.
Um dia meu pai chegou com febre, e por alguns anos, durante a noite, eu via o corpo dele na rede, agasalhado, tremendo, dizendo coisas que eu não entendia: frases truncadas, palavras sem qualquer significado para mim. Uma das lembranças mais vivas do meu pai: um homem solitário que treme de febre. Em alguns dias, pai e filho eram paralisados pela dor. Com a cabeça em chamas, eu tinha de engolir cápsulas de analgésicos que mal passavam pela garganta, e ele, com o corpo também incendiado, encasulado na rede, delirando, tomava doses cavalares de quinina para se livrar da malária. Talvez por isso ele nunca interferisse nas decisões de minha mãe, que sempre anunciava a sentença dos castigos mais severos. Um deles foi o “castigo do hino”.
Até hoje, quando ouço o nosso hino, me lembro dos dois leões de pedra no portão da entrada do grupo escolar, o par de feras amarelas fazia guarda sobre colunas. Antes do início das aulas, a diretora hasteava a bandeira do Brasil e as crianças cantavam o hino nacional, perfiladas diante da mulher alta e magra, rosto anguloso e olhar duro, um olhar que procurava nas filas o aluno que bocejava ou dormitava de pé ou olhava distraído e sonolento para o jambeiro. Mal acabávamos de cantar o hino, ela apontava uma vara para o aluno negligente e o conduzia a uma das salas do porão. Ali, ajoelhado contra a parede, ele era obrigado a cantar o hino. Um desses alunos, o Minotauro, o mais destemido, dava risadas de gralha durante o momento solene da manhã, ou então fazia caretas com uma expressão cômica, ou de animal feroz, e todos ríamos de suas caretas, às vezes ríamos de medo, e numa manhã o riso coletivo foi tão insultante para a diretora que ela escreveu uma carta e enviou-a aos nossos pais, que nos castigaram em casa, de modo que na semana seguinte nós parecíamos um grupo de crianças humilhadas e tristes entoando o hino da pátria, impávidos no pátio da escola, com o olhar perdido na bandeira hasteada.
Por algum tempo, o assunto da conversa na hora do recreio foi o castigo. Cada pai, um castigo. Ou: cada mãe, uma sentença. Depois a diretora ordenou que escrevêssemos um resumo do castigo. Esse foi o meu primeiro relato, a brevíssima história de uma punição, que é também uma história sobre a fadiga e o vexame. Meu castigo consistiu em limpar a casa e o quintal, o que eu fiz sob os olhares e os risinhos dos moradores. Lembro que tio Ghodor não riu, ele olhou sério para minha mãe e disse: Teu filho não é culpado de nada. Maria do Carmo também ficou séria e quis me ajudar a esfregar o assoalho. Ela mal falava a língua portuguesa, talvez por isso fosse tão silenciosa, me chamava de Mitu, um dia me nomeou Martim, que ela usou mais que os outros apelidos e muito mais que o meu nome verdadeiro. Anos depois percebi que ela falava minha língua, mas só comigo, e quando estávamos a sós. Um dia soube que Maria do Carmo, à semelhança de minha avó, falava várias línguas, e uma das minhas diversões era ouvi-la dizer frases em língua indígena, sua língua materna, que me era totalmente desconhecida. Mas naquele dia do castigo, ela ainda era uma moça calada, que desconfiava de tudo. Minha mãe não quis que ela me ajudasse e proibiu-a de usar o escovão. Maria do Carmo ficou arrasada, andando pela casa à procura de algo para fazer, enquanto eu sentia pela primeira vez o verdadeiro peso do esforço físico: o trabalho que é castigo. Mas o esforço e o cansaço do corpo não constituíam a essência da punição: a vergonha do menino diante dos outros moradores da casa. Passar o esfregão no assoalho dos quartos e da sala, catar as mangas e jacas e jambos podres no quintal, tudo isso para que os outros fossem testemunhas de um castigo exemplar, um castigo que seria repetido depois de cada ato transgressor. No fim daquele dia, quando me refugiei no quarto de tio Ghodor para contemplar os barcos e esperar a noite, já sentindo os primeiros sintomas de uma cefaleia, recordo que não vi o rio, nem o porto, e sim minúsculas formas estranhas, dessas que existem na natureza, mas não são perceptíveis a olho nu: formas de uma vista turva, incapaz de ver o mundo.
Minha mãe se aproximou de mim e perguntou com uma voz meiga por que eu estava abatido. Era mais uma crise de cefaleia? Concordei com o olhar. Mas havia outra dor, oculta e misteriosa, que circulava entre a cabeça e o coração. Naquela noite da infância eu não conseguia nomear essa dor que não era apenas física, e que só muito tempo depois descobri seu verdadeiro nome: melancolia
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