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poesia_Matthew Rohrer

Caseiro e estranho

Eucanaã Ferraz | Edição 77, Fevereiro 2013

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Em 2005, os jurados do prestigioso prêmio literário Griffin assinalaram que os poemas de Matthew Rohrer mostram “a visão de mundo de um jovem americano incapaz de assumir o manto do herói, incapaz de ser ‘o adorável menino’”.

Nos versos desse poeta, nascido em 1970, no Michigan, e crescido em Oklahoma, o mundo também não é, de fato, um território de heróis. E, curiosamente, tudo ali é tão banal quanto inusitado. Nada é excepcional quanto aos temas – acontecimentos cotidianos, personagens comuns, cenas e ambientes urbanos ou flashes em que a natureza parece emergir da memória; o mesmo se dá com a forma – sintaxe clara, escolha vocabular descomplicada e tom decididamente coloquial. De tudo isso resulta, no entanto, um universo extravagante. O leitor logo percebe que está diante de significados movediços, construídos por frases instáveis, combinações estranhas e vazios. Trata-se, sem dúvida, de uma escrita marcada pelo insólito: se nada escapa da esfera cotidiana, o trivial vê-se inteiramente entrelaçado com a imaginação e a liberdade.

James Tate, poeta e professor, ao comentar um dos livros de Rohrer observou que seus poemas podem partir nosso coração com inesperadas reviravoltas: “Você acha que sabe onde está, mas você não sabe, e isso é inexplicavelmente triste.” E ainda: “Você experimenta algum tipo de emoção que não pode nomear, mas que é profunda e real.”

Essa escrita oblíqua, nervosa, tem ainda como grande aliado o humor. Em entrevista de agosto de 2010, Rohrer afirmou:

Quando você nunca o encontra, há algo de suspeito nisso. Na obra e também no poeta como pessoa. Mas não estou falando de poemas que são inteiramente piadas ou trocadilhos ou que são apenas engraçados. Isso é tão chato quanto qualquer outra coisa que bate numa tecla só. Eu acho que um poema deve ser capaz de ter comédia e tragédia na mesma dose. Esse tipo de variação emocional deveria ser possível em um poema – o poeta deve estar atento para as emoções, como elas conseguem se movimentar e de que modo o fazem. Isso me parece mais realista do que um poema inteiramente trágico ou meramente engraçado… Provavelmente, a maioria dos poemas não consegue isso. Eu só estou dizendo que todos nós devemos pensar que eles podem, e operam sob essa suposição, mesmo que a gente nunca consiga fazer isso.

Rohrer publicou, até o momento, A Hummock in the Malookas (1995), Satellite (2001), Nice Hat. Thanks, em parceria com Joshua Beckman (2002), A Green Light (2004), Rise Up (2007), They All Seemed Asleep (2008), A Plate of Chicken (2009) e Destroyer and Preserver (2011). Além da inclinação surrealista, da livre imaginação, do humor cortante, sempre destacados pela crítica, em todos os livros pode-se, igualmente, “ouvir” as leituras do poeta, suas conversas, encontrar cenas de jantares com amigos, de um passeio de carro, de brincadeiras com a filha. Seu surrealismo é, digamos, caseiro; assim como sua urbanidade é povoada por árvores, bichos, pássaros, e seu frescor não esconde uma melancolia intensa.

O não adorável menino é hoje um nome acolhido com entusiasmo no panorama da poesia americana contemporânea. Vive no Brooklyn e ensina no curso de escrita criativa, graduação e pós-graduação da Universidade de Nova York. Seus poemas, traduzidos por Sylvio Fraga Neto, aparecem pela primeira vez em português no Brasil.

 

 

UM GUIA DO MÊS DE JUNHO[1] PARA JOVENS

Quando seu dia começa com a consciência nítida da própria morte

inspirada por um tema de televisão com o qual

acordou na cabeça

 

e quando no trabalho você só consegue produzir longas listas

de perguntas,

perguntas boas, perguntas inteligentes, páginas

de perguntas

irrespondíveis se alastrando como uma árvore genealógica

 

e quando no almoço você dirige pela cidade e desconhecidos

acenam de vitrines onde penduram bandeiras

 

e quando a noite é úmida demais para que apaixonados se deitem juntos

mas o fazem mesmo assim e depois se arrependem da excitação

nos lençóis grudentos

 

e quando, e especialmente quando, seu amor sai

e você fica acordado por uma hora coçando picadas de mosquito

nas coxas

 

e quando o bairro está tenso pelo que aconteceu com aquela

menininha, tão tenso que uma porta batendo dispara alarmes de carro e

atiça os animais

 

e quando num domingo senhores de idade são vistos chorando no boteco da esquina

porque perderam contato com os filhos ou porque seus filhos

batem nos filhos e é Dia dos Pais

 

e quando o calor é excessivo para certos passarinhos que simplesmente caem

do céu

tenha paciência.

 

UM VELÓRIO PARA O TELEFONE

Um telefone desconectado queda morto na mesa.

O plástico frio.

Os furos no receptor como estrelas colapsadas negras.

O bocal, incapaz de gemer, de recitar novos poemas,

de pedir que alguém traga uma garrafa de vinho.

 

O casal idoso, que jantava, ficou chocado

quando o telefone se jogou no chão em vez de tocar novamente,

 

o fio espiral como o rasto de cabelo molhado numa piscina natural,

a maneira como que se deita amontoado na mesa,

o discador preso entre números.

 

Jamais ligará para o presidente.

Jamais ajudará o reencontro de antigos colegas.

Não sofrerá o silêncio incômodo de um convite romântico.

Nunca mais alguém ofegante.

 

Em muitos sentidos o telefone está aliviado.

 

AH, SIM, AQUELA PERGUNTA

Os médicos desistiram, estão na recepção cochichando

com as velhas secretárias. O terceiro andar está espesso de flores.

Um padre divaga em silêncio.

Lê a etiqueta de uma pintura a óleo.

 

Em cada quarto um paciente ofegante.

Suas doenças são insabíveis; os médicos desistiram,

há um cheiro que pode ser dos corpos ou da comida que encomendaram.

A respiração difícil se junta às roucas luzes fluorescentes.

 

O padre, proibido de desistir, faz sua ronda de novo.

Nos quartos, as telas das tevês são azuis e um fluido pinga corajosamente.

Os médicos desistiram, então maquininhas vigiam os pacientes

e arrulham em consolo. Os pacientes estão encolhendo.

Uma menina e um menino são enviados de quarto em quarto para confortá-los

mas com as portas fechadas ela beija a bochecha do menino.

Os pacientes nada sabem e o fluido pinga.

Os médicos desistiram, deixaram para trás seus estetoscópios,

que ficam lá, escutando e escutando.

 

LAMENTO DE UMA CRIANÇA CANTANDO NO TELHADO

Uma formiga indo de uma lâmina de grama

para outra, mil vezes a mesma coisa

no retângulo ensolarado.

Quando a luz do sol nos alcança, chega transformada,

enormes partículas azuis.

Quando nos alcança é antiga, e nós somos antigos.

Mantemos nossas bexigas no corpo com alças azuis.

Melros se elevam dos tufos de grama para dentro da luz,

se amando. Ou fazendo algo parecido,

simplesmente cometendo atos sob o sol, cada um resultando

no próximo, até chegar ao telhado onde uma criança ri.

Sua bola tem uma hélice dentro, ela decola,

sobe, o menino percebe que essa pode ser sua última chance

de dizer algo a ela.

Oh, bola, você foi o brinquedo perfeito.

Quando eu chegar à puberdade deixarei este retângulo

em busca de uma mulher igual a você.

 

Algum cara disse que Wittgenstein provou que não há pensamento sem linguagem.

Wittgenstein nunca viu um passarinho ou um urso.

Árvores balançavam no parque e suas copas se encostavam com ternura.

Mesmo sendo o mais novo, eu sou o professor!

Corvos gritam para mim no telhado e não conseguem pousar.

Acordo indistinguível da manhã deslavada.

Tudo que sou é pensamento sem linguagem.

 

CREDO

Acredito que exista algo mais

 

acontecendo mas ninguém

nunca saberá

então nos apaixonamos.

 

Também poderia ser verdade que nosso

abridor de lata do dia a dia tenha sido algo

muito mais nobre, que jamais reconheceremos.

 

Acredito que a mulher adormecida ao meu lado

não se importe com o que acontece

lá fora e seu corpo está aquecido

de esperança,

o que é um belo começo.

 

FELIZ ANIVERSÁRIO

O amor dos outros é perfeito

em sua imperfeição, abre caminho

ao campo de flores na montanha.

Eu te trouxe essa flor

dos altos prados do Colorado

com todo o peso do verão azul

em cima.

Quando puxei a flor, ela suspirou.

Bem-me-quer.

Você morava em Florença e eu estava bêbado.

Estarei sempre bêbado.

 

POEMA

Você ligou, está no ônibus, no domingo,

acabei de tomar banho e espero você

chegar. Nuvens vêm deslizando do mar,

mas o quarto é delicadamente aceso pela camisa

verde que você me deu. Tenho praticado

uma nova forma de dizer oi e é fantástica.

Você estava tão triste: tchau: eu estava tão triste.

Todas as lojas estavam fechadas mas o céu

era alto e azul. Fui dar uma volta para ver se passava,

mas devo ter andando na direção errada.


[1] Junho é o primeiro mês de verão nos Estados Unidos. [N. T.]