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    Carlos Teixeira (à esq.), aos 14 anos, com Cordeiro de Miranda (à dir.): “Ele era meu amigo, foi pro Exército. Vai ver está no Alto Comando em Brasília. E eu aqui... na merda” CRÉDITO: ÁLBUM DE FAMÍLIA

catástrofes familiares_história real

Como amar um pai bolsonarista

Faz dois dias que Seu Carlos não almoça direito, de tanta “raiva do pinguço” ter ganhado as eleições

Tati Bernardi | Edição 195, Dezembro 2022

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Eu estava salivando por imagens e vídeos de fascistas arrasados, ajoelhados, abatidos, desesperados, depois do segundo turno da eleição. Eram cinco da manhã do dia 31 de outubro de 2022, e eu sabia que as próximas horas e dias entregariam o melhor conteúdo já produzido na história deste país com a temática “humanos despóticos, grotescos e anedóticos” e não queria perder um segundo. Até que a lembrança de certo idoso refreou minha gana inclemente.

Carlos Teixeira, de 81 anos, mora com Nestor, seu cachorro salsichinha, em um sobrado próximo à estação de metrô Carrão, na Zona Leste de São Paulo. É divorciado há 38 anos e tem uma única filha, que sou eu.

Meu pai foi diagnosticado com câncer de próstata há cerca de doze anos. Na época, fui com ele a um oncologista, que o aconselhou a tirar a glândula para maior garantia de cura. Papai respondeu na lata: “Qual é o tratamento com menos chance de me deixar brocha? Porque, se for pra perder a única coisa que me importa na vida, é melhor morrer.” O médico arregalou os olhos: “Daqui a pouco vêm os netos, o senhor quer correr o risco de não os conhecer?” Seu Carlos deu uma risadinha desdenhosa, respondeu que nem namorado eu tinha (na época) e reforçou sua teoria de que sem pau duro não valia o esforço da cabeça erguida.

Minha família é bem peculiar. Acho que fui bastante estimada enquanto pude me manter na posição de “somente filha”. Desde que me casei e tive uma criança, minha mãe, Ruth, passou a dizer que nunca amou ninguém como ama Tina, a sua yorkshire doente, e meu pai sempre que pode avisa que, na falta de qualquer outro interesse, prefere acordar com o corpo todo duro a acordar sem ereção. Faço terapia há cerca de quinze anos e acho que está tudo bem.

Papai jamais criticou a demora de Bolsonaro para comprar vacinas. Nem quando eu quase precisei ser internada, quinze dias antes de tomar a primeira dose da Pfizer, com 30% do pulmão comprometido. Contudo, quando veio à tona que a advogada Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Bolsonaro, havia traído o então marido com o bombeiro que fazia a segurança da família, meu pai ficou devastado. Na época, teve gente na internet dizendo que a advogada cometera tal “infração” porque o “mito” já não dava mais no couro. Foram dias muito angustiantes para Seu Carlos. O presidente ser um facilitador de óbitos e admirador de torturadores até passa, mas corno – jamais!

Durante a apuração das urnas do segundo turno, enquanto parte da população com alguma lisura e lucidez torcia pelo presidente Lula (e alternava a diarreia com a apuração na tevê, e também o brilho esperançoso do olhar de William Bonner em um canal com o de Natuza Nery em outro), meu pai me telefonou. Eu estava justamente no banheiro quando ele me disse “Parabéns”, naquele mesmo tom cínico na voz com que dizia “Seja feliz”, ao descobrir que minha mãe (e sua ex-mulher) estava namorando.

Meu pai jamais superou o pé na bunda que levou da dona Ruth em 1984. Jamais. Se eu ligar para ele agora e perguntar como estão as coisas, ele vai responder que não sente os dedos dos pés, por causa da neuropatia e que… Então ficará em silêncio, querendo que eu insista na pergunta. E vai expirar um muxoxo “deixa pra lá”, no fundo implorando para que eu não desista. Nessa hora eu me calo e ele se derrama: “Sonhei novamente com o inferno.”

Em 1984, a empresa de meu pai estava falida. O seu irmão e sócio Dárcio tinha morrido e deixado uma quantidade indecente de impostos não declarados e, pior, impostos não pagos. Minha mãe, “justo quando seu marido mais precisava”, levou até o fim o divórcio litigioso, ainda que o juiz repetisse a cada nova tentativa de conciliação: “Mas, se esse homem não lhe bate, não bebe e é trabalhador, o que a senhora quer fazer na rua que não pode fazer em casa?”

Quando eu tinha 8 ou 9 anos, no auge da minha devoção à mãe, ouvi muitas vezes meu pai falar que, um dia, eu entenderia quem ela era de verdade. A intenção dele, tenho certeza, não era das melhores. Mas o que guardei daquele momento foi importantíssimo para que minha vida amorosa pudesse ser minimamente salutar: mamãe jamais aceitaria ser infeliz ao lado de alguém. Imagina casar com um tipo cujo machismo é tão extremo a ponto de ele querer impedir você de trabalhar, de frequentar uma academia, de ter amigas, de viajar, e que fica resmungando pelos cantos da casa, caso você vá rapidinho ao supermercado: “Já foi bater perna?”

 

Ainda faltava apurar mais de 20% das urnas do segundo turno quando Seu Carlos me ligou para dar os parabéns. Não é fácil ver um pai tão desolado. Mentira – foi bem fácil. Foi uma delícia. Pensei em falar algo como: “Calma, a diferença está mínima e você ainda pode vencer.” Mas naquele momento todas as vias da minha existência para fazer afagos em fascistas estavam bloqueadas, mesmo que o fascista fosse meu próprio pai. Enquanto apertava a descarga da privada, respondi a ele: “O Brasil agradece.”

Nesses quatro anos de governo Bolsonaro, meu pai sempre brilhou os olhos ao falar do presidente, mas nunca assumiu, de fato, o quanto gostava dele. Dizia que era uma escolha meramente “anti-PT” e que estava pensando no meu futuro e no futuro da minha filha, pois temia que virássemos mais um país latino-americano pobríssimo e comunista, repetindo aquele velho clichê pregado nas redes bolsonaristas. Para papai, o presidente “fala muita besteira, mas ao menos faz de tudo para conter o avanço do trio de terroristas do pinguço”. Seu Carlos tem particular aversão por Dilma Rousseff, Aloizio Mercadante e José Dirceu, e se diverte toda vez que Bolsonaro xinga o “careca que parece de outro planeta” (ele se refere ao ministro Alexandre de Moraes).

Meu pai me ligou a pedido da minha mãe. Desde sempre, ele faz tudo o que ela ordena, apesar de estarem separados há quase quatro décadas. E é por isso que eu digo que minha família é complexa. Você que está lendo este texto já deve ter pintado o senhor Carlos Teixeira como um homem rude, grosseiro, mandão, talvez violento. Alguém parecido com o pai Jair dando um esporro no filho Flávio, ao saber que o rapaz teve um ataque de pânico durante um debate e está todo cagado. Nada disso. Seu Carlos até hoje treme na base quando precisa encontrar a ex-mulher no aniversário da neta. E nunca mais teve forças para se apaixonar de novo – e sofrer, como ele gosta de frisar, “feito um cachorro”.

Durante todo o tempo em que fui uma piranha (de 1995 até meia hora atrás), ele somente sorriu, balançou a cabeça e falou: “Ô menina danada.” As brigas que eu via em casa, quando pequena, acabavam sempre com papai se protegendo dos vasos lançados na sua direção por minha mãe. Não tem uma pessoa que o conheça que não se encante com seu jeito caipira e simplório. A vida do meu pai – sua cozinha, a mesa humilde com leite servido em copo de requeijão, o pão de padaria já meio murcho, a camiseta de preço módico, toda essa realidade “gente como a gente” – é igual àquele cenário fictício, com pão recheado de leite condensado, que o Carlos Bolsonaro criou para eleger seu pai em 2018.

Seu Carlos nunca se elegeu para nada nem trabalhou no que quis. Nunca viajou para os lugares que desejou conhecer. Nunca recebeu de qualquer funcionário o olhar de admiração infantil que ele próprio lança para qualquer “doutor” – e basta um homem ser branco e estar de terno para ganhar esse título. Nem rifa ele vencia na escola.

Ele brincava comigo de um jeito que faria chorar as professoras winnicottianas de escolas hippies progressistas paulistanas. Para começar, topava teatralizar (obviamente, depois de eu perturbá-lo um dia inteiro) dois personagens memoráveis da minha imaginação infantil: um garoto chamado Juninho, que tinha dificuldades com o aprendizado escolar, e uma senhora peruíssima chamada Fátima, que amava colares, pulseiras e maquiagem. Quando pedi para a gente fingir que estava acampando na sala de casa, ele comprou uma barraca gigante, encheu o teto daqueles adesivos de estrelinhas que brilham no escuro e inventou riachos profundos, pedras altíssimas e animais ferozes com lençóis, almofadas e cartolinas.

Dos meus 14 anos até a maioridade, não teve um único fim de semana que eu não tenha lotado o carro do Seu Carlos com amigas doidas para chegar à balada ou já levemente alcoolizadas, malucas para voltar às suas casas e capotar na cama. Em todo o trajeto, eu e elas falávamos sem parar de meninos, beijos, línguas, amassos, mão aqui, mão ali. Meu pai ficava roxo de vergonha, e sua boca, silenciada por tanto espanto, era um festival daquelas babinhas brancas e nervosas nos cantos. Minhas amigas morriam de inveja de mim por ter aquele pai tão dedicado e gente boa.

Então o senhor “ereção acima de todos” era somente um molengão de coração? Calma. Eu avisei que minha família é complexa. Meu pai era um exímio especialista em torturar psicologicamente a minha mãe. Lembro que ela ficava tão exaurida das conversas com ele que chegava a desmaiar. Ele sequer a tocava, mas algo arquitetado pela sua mente tinha o potencial de desmontá-la.

A foto do meu pai nas redes sociais mostra um homem de boné e óculos escuros fazendo cara de “tô bravão e vou te prender”. O boné, ele explica com orgulho, é parecido com um quepe usado pela Polícia Federal. Ele não assina seu sobrenome nas redes. É comum vê-lo postar uma piada sobre “mulheres vagabundas” e depois descobrir, ao ligar para ele, que esse machão passou a tarde cuidando da asa machucada de um passarinho ou preocupado com a vizinha cadeirante e idosa. Um drinque de doçura e bondade batido com misoginia e ignorância não chega a ser um veneno fatal para quem ousa ter convivência, mas o mal-estar causado por combinações tão estrangeiras e por tanto tempo intraduzíveis sempre me deram um certo enjoo.

Meu pai foi e é um homem muito bonito, e há sempre uma dezena de senhoras que comentam os seus posts, incluindo os mais opressores: “Bom dia, amigo querido. Eu, que sou mulher de verdade, entendo o que você está falando.” Ele conta que, nas mensagens privadas, recebe fotos de algumas dessas vovós posando com biquínis minúsculos. Teve uma vez, e papai cogitou atirar seu celular na privada, que um doido lhe enviou a imagem de um pênis.

Seu Carlos ama as crianças, os gatinhos e os cachorrinhos. Também chora em todos os filmes que retratam os horrores dos campos de concentração, mas diz, sem se dar conta do absurdo, que acha o uniforme do Exército nazista “muito bonito”. Eu pergunto como era esse uniforme, na esperança de que papai, que nunca foi fashionista, não saiba a resposta, mas ele detalha: “Camisa marrom… e tinha um sobretudo de couro fechado até em cima, todo preto, broches e uma águia imperial.” Nessas horas, sinto como se toda a água do meu corpo evaporasse e não houvesse base sólida para firmar meus pés. Será que fui criada por alguém que… “Você gosta do Hitler, papai?” Ele não mexe um músculo do rosto e responde, mansíssimo, como se eu tivesse perguntado sobre manteiga sem sal: “Claro que não, ninguém gosta.”

Apesar de terrivelmente católico, meu pai sempre duvida da existência de Deus quando fica sabendo da morte de alguma pessoa jovem. Ainda assim, declara ter saudades da ditadura, como se estivesse falando dos bons tempos em que existiam coretos em pracinhas. “E os estudantes torturados e mortos, pai?” Ele ignora: “Não havia tantos prédios, tantos carros, tanta violência… E eu podia namorar em paz com sua mãe, no portão ou no carro.” Eu pergunto como era antes de 1964, antes da ditadura. Ele responde: “Melhor ainda.” Então eu o ajudo a concluir que não é da ditadura que ele tem saudade, mas da sua juventude, de uma São Paulo mais provinciana e do tempo em que namorava minha mãe. Ele solta seu costumeiro “É”, deixando claro que não concorda, mas que não tem mais nada a acrescentar nem deseja esticar o assunto.

 

M

eu pai nasceu e morou até os 18 anos em Caçapava, cidade do interior de São Paulo. Seu pai, Juca Teixeira, um fervoroso eleitor de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, era chefe da estação municipal de trem da Central do Brasil (que ainda hoje liga São Paulo ao Rio de Janeiro, mas apenas com trens de carga). Papai conta orgulhoso que por muitos anos viajou nos trens “na parte dos ricos, que era toda de aço”. Ele rememora: “Três homens mandavam em Caçapava naquela época: o prefeito Laurentino Marcondes, o padre Monteiro e o Juca Teixeira, seu avô.” A mãe dele, dona Olga, afeita a adereços estranhos, prendia na lapela do casaco do filho uma medalhinha com a cara do prefeito Marcondes.

A família vivia em Caçapava em uma casa com jardim e amplos janelões. Uma placa logo na entrada avisava: “Construída em 1910” (a casa deveria ter sido tombada, mas, para desespero do meu pai, foi demolida, e no local funciona hoje um depósito).

Minha tia Lúcia, a mais velha, foi a primeira a vir para São Paulo. Morou em um pensionato enquanto cursava letras na USP e, em uma festa, conheceu um marinheiro italiano que prometeu retornar dali a alguns meses para desposá-la. Ela esperou pelo marinheiro por mais de cinquenta anos. Morreu virgem, aos 70. Nas suas duas últimas décadas de vida, tentou convencer todo mundo que era semianalfabeta: falava errado, escrevia errado e negava ter dado aulas de francês em universidades. Cinco anos antes de morrer, por causa de “uma bola na nuca que não era câncer, mas espremia seu cérebro”, ela se entregou ao Carnaval. Começou a sair como destaque em carro alegórico da Acadêmicos do Tatuapé, depois do que voltava para casa dizendo: “Agora sim, já posso ir embora.”

Os outros irmãos são a Dirce, que sobreviveu a três cânceres, Hélio, morto com apenas 13 anos, “porque comeu algo estragado em São Paulo e quando voltou pra Caçapava não durou nem um mês”, e Dárcio, o sujeito divertido e falastrão com quem meu pai teve sociedade durante cerca de quinze anos e que, por viver com um copo de uísque na mão, morreu aos 36 anos de câncer no pâncreas.

Como sua mãe, Olga, meu pai desde muito jovem foi um autodidata do piano. Na minha infância e adolescência, escutei infinitas vezes os noturnos de Chopin, as sonatas de Beethoven e frequentei quase que semanalmente o Theatro Municipal. Algumas vezes, meu pai ia ao teatro de terno e ficava em um raríssimo estado de euforia – até que um dia eu tive um ataque de riso durante a apresentação de uma ópera e ficamos pelo menos uma década sem repetir o passeio.

Em Caçapava, papai morou em duas casas: uma em frente à estação de trem e outra colada ao quartel-general do Exército. Da primeira, a lembrança que ele guarda é assistir da janela à fila dominical de garotas “de banho tomado, penteadas, usando o que pareciam vestidos novinhos, de baile”. Elas se prontificavam na estação a fim de ver os militares antes de eles pegarem o trem para voltar a suas casas. Seu Carlos explica que o efeito “oficiais de uniforme” atingia em cheio aquelas moças – elas ficavam “doidas”. Começou ali o desejo de meu pai de servir ao Exército.

Em relação ao seu segundo lar, perto do quartel-general, ele conta que, “moleque de tudo”, comprava lanches para os soldados, que lhe davam uns trocados pelo serviço. Assim, ele e seus dois melhores amigos – o Toninho, que ele gosta de deixar claro que era preto, e o Maçã, filho do prefeito e com muitas pintinhas no rosto – complementavam a mesada e ainda eram convidados para ver de perto os tanques e caminhões, e para jogar basquete com os militares. Era um time de crianças contra um time de jovens tenentes que contavam vantagens, falando sobre aventuras na natureza selvagem, sobre mocinhas recatadas que não resistiam aos oficiais e “deixavam eles tocarem em uma coisa ou outra”.

Quando meu pai estava prestes a fazer 18 anos e realizar seu sonho de servir ao Exército (e ter o tal exército de jovens dadivosas o esperando na estação ou o deixando tocar em uma coisa ou outra), meu avô chegou todo feliz em casa, trazendo duas boas notícias. A primeira é que toda a família se mudaria para São Paulo. A segunda é que ele tinha conseguido “livrar” meu pai do serviço militar obrigatório com um atestado falso de miopia.

Seu Carlos jamais disse ao pai dele o tamanho da traição que sentiu naquele dia. Todos os não ditos daquele frágil vínculo entre pai e filho serviram para transformá-lo, acredito eu, em uma pessoa obcecada por uniformes, jipes e marchas militares, e por promessas de fadas submissas, como boa parte deste país conservador gosta de acreditar que é o caso de Michelle Bolsonaro. “Minha filha, bota lá no Google o nome ‘Cordeiro de Miranda’”, diz meu pai. “Ele era meu amigo, almoçava direto lá em casa, mas foi pro Exército. Você vai ver que hoje ele está no Alto Comando em Brasília. E eu estou aqui… na merda.”

 

U

m dia depois de Bolsonaro perder as eleições, enquanto o observo assistindo a um documentário em preto e branco no canal Discovery sobre a história do Velho Oeste norte-americano, meu pai comenta: “Aqui na minha rua é tudo bolsonarista. Ficaram todos bem quietos durante a apuração.” E acrescenta: “Seu carro não tem nenhum adesivo do Lula, não é? Tenho medo que façam alguma besteira em seu pneu ou arranhem a lataria.”

Ele sabe que minha visita é para escrever este perfil, mas eu andava meio distante e quero começar aos poucos. Pergunto o que mais ele gosta de ver na tevê. Papai conta que adora filme norte–americano sobre investigação, polícia e prisão. Agora ele muda de canal, e um homem está no corredor da morte. Pergunto se gostaria que o Brasil tivesse pena de morte. Ele responde que não, porque um monte de gente morreria “à toa”: “Aqui a polícia é muito ruim.”

Meu pai está abatido. Fala que tem dois dias que não almoça direito de tanta “raiva do pinguço”. Ele diz isso meia hora depois de me perguntar se eu não lhe trouxe vinhos “usados”. Papai adora quando dou festas em casa e levo pra ele um monte de vinhos tomados pela metade. “Não gosto que você gaste dinheiro, me traz o que já estiver aberto.”

Relembro meu pai do apoio que o presidente eleito recebeu de economistas liberais e de políticos e empresários de direita e centro-direita. Meu pai insiste que tudo é “tipinho pra ganhar”, mas que agora Lula “vai mostrar quem é de verdade”. Relembro meu pai de que Lula, assim como fez durante os oito anos em que foi o melhor presidente deste país, não vai mandar as crianças cantarem o hino de Cuba nas escolas, nem nos obrigar a manter em casa, bem alimentados, desconhecidos em situação de rua. “Minha filha, você é muito ingênua mesmo. Aqueles primeiros anos ele estava apenas armando o que vai fazer agora.”

Digo que Lula é católico e não vai fechar igrejas ou obrigá-las a celebrar casamentos gays (o que é uma pena). Não sem dor, rememoro papai de que nosso novo presidente se posicionou novamente contra o aborto e que seu plano de governo não inclui a liberação das drogas. “Vamos ter essa conversa daqui a quatro anos, caso a gente já não tenha morrido de fome ou não esteja preso por falar o que pensa”, ele responde.

De repente, meu pai dispara contra o espírito de algum militante do Psol que fantasiosamente ele encara sentado no sofá vazio na sua frente. Diz: “Eu sou mil vezes contra o aborto e contra liberarem a maconha pros adolescentes na porta das escolas.” Pergunto com quem ele está falando. Ele então decide me contar algo muito pessoal, acredito que na esperança de se conectar comigo de alguma forma:

Quando chegamos a São Paulo, seu avô me dava dinheiro pra andar de ônibus, mas eu ia de bonde, que era mais barato, e guardava o que sobrava. No final do mês, ia sozinho à Rua dos Andradas, no Centro, com os meus amigos. A gente se divertia muito, e foi lá que eu perdi a virgindade com uma… você sabe. Depois fui diversas vezes na mesma casa de… você sabe. À noite, hoje, lá na Rua dos Andradas só tem bandido, mas na época o tipo mais perigoso era o maconheiro. E esse a gente aprendeu, depois, que não faz mal a ninguém, né? Inclusive você ficou de ver pra mim as gotinhas de canabidiol e esqueceu.

Começo a rir, e ele volta a falar com o espectro psolista no sofá vazio. “Não tenho nada contra casamento gay, desde que eles não fiquem se agarrando muito na minha frente, como se quisessem se mostrar demais, sabe? E isso me incomoda quando é homem e mulher também.” Eu pergunto: “Então qualquer pessoa que exibe amor te irrita, pai?” Ficamos um pouco em silêncio, até que ele diz: “Você acredita que ontem eu liguei pra sua mãe, pra falar que eu não me conformava que esse bebum ladrão comunista tinha ganhado, e sua mãe me mandou tomar no cu?”

Meu pai quer entender por que estou tão feliz. “Será porque agora você vai ter seu emprego de volta na Globo, minha filha? Ou é porque seu emprego na Folha de S.Paulo fica mais garantido com o Lula no poder?” Começo a explicar que a cultura e o jornalismo, de um modo geral, tendem a melhorar, mas desisto quando percebo que papai, que não tem a menor ideia do que é a Lei Rouanet, está tentando me perguntar se dou uma boa mamada nela de vez em quando. É muito difícil não se afogar na água imunda de um meme do Telegram bolsonarista quando você só está bebericando a água muito gelada que o seu pai lhe serviu.

Então seu Carlos diz: “Um dia você vai entender quem é o Lula.” Para ele, que se informa pelo Facebook, Lula ficou bilionário “saqueando e afundando” o país e está envolvido no assassinato do político Celso Daniel (que foi prefeito de Santo André, pelo PT, e foi morto em 2002). É também o homem que tirou dinheiro das famílias pobres do Brasil para financiar o PCC e, via BNDES, a ditadura na Venezuela. “E tem mais: com tanto dinheiro, por que ele não arruma aquela voz desgraçada? Eu não suporto aquela voz dele!” Eu tenho a teoria de que todos morrem de tesão pela voz do Lula, mas imagina falar isso para um adorador de uniformes militares de 81 anos?

Meu pai, que durante toda a infância brincou de construir radinhos, queria ser engenheiro eletrônico, mas não conseguiu se formar no Supletivo Santa Inês porque levou pau em matemática. Ele só amou obsessivamente uma única mulher. Minha mãe era sexy, inteligente, culta, irônica, engraçada e profissionalmente mais bem-sucedida, mas meu pai a perdeu porque até hoje acredita na história fake da fada submissa, a futura esposinha que aguardava na estação de trem de Caçapava. Com a graça de Deus e do sistema de saúde da era PT, ele ficou curado do câncer, mesmo escolhendo se tratar com radioterapia, o menos invasivo dos tratamentos, mas se diz “morto por dentro”, porque durante a pandemia perdeu contato com suas duas ou três paqueras, e agora está com preguiça de começar tudo de novo.

Qualquer passagem importante da sua vida, meu pai relaciona aos carros que teve. A sua firma começou a dar certo depois que ele comprou duas “peruas C10”, ele conheceu minha mãe quando tinha o “dojão americano”, os dois viajaram de lua de mel pelo Sul do país quando ele comprou o “SP2 conversível”, da Volkswagen. Hoje em dia, ele sempre me pede para chamar um carro de aplicativo, porque se sente inseguro ao dirigir, por causa da neuropatia.

Quando avisei ao meu pai que já estava bom, que já tinha material suficiente para este perfil e não ia aparecer mais em sua casa com o gravador, ele foi procurar fotos para ilustrar o texto e me fez um único pedido: “Se o Cordeiro de Miranda, do Alto Comando em Brasília, ler esse texto e te escrever, eu gostaria de saber se ele é feliz.”

Quando estou meio quieta, olhando pela janela, meu pai, que sempre fez de tudo para eu ficar bem (e não estou sendo irônica), resolve me dar um afago: “Mas os filhos do Bolsonaro, esses eu concordo com você que não prestam.” Olha que maravilha! Já temos quatro pessoas para falar mal durante o almoço. “Agora, o que o Bolsonaro tem a ver com esses filhos? Se você um dia roubar, Tatiane, eu não tenho nada a ver com isso, tá?”