A tradição é a conquista de um trabalho persistente de autoconhecimento, capaz de discernir a presença do passado na ordem do presente FOTO: NATURESAM
Condenados à tradição
O que fizeram com a poesia brasileira
Iumna Maria Simon | Edição 61, Outubro 2011
Por um desses quiproquós da vida cultural, a tradicionalização, ou a referência à tradição, tornou-se um tema dos mais presentes na poesia contemporânea brasileira, quer dizer, a que vem sendo escrita desde meados dos anos 80.
Pode parecer um paradoxo que a poesia desse período, a mesma que tem continuidade com ciclos anteriores de vanguardismo, sobretudo a poesia concreta, e se seguiu a manifestações antiformalistas de irreverência e espontaneísmo, como a poesia marginal, tenha passado a fazer um uso relutantemente crítico, ou acrítico, da tradição. Nesse momento de esgotamento do moderno e superação das vanguardas, instaura-se o consenso de que é possível recolher as forças em decomposição da modernidade numa espécie de apoteose pluralista. É uma noção conciliatória de tradição que, em lugar da invenção de formas e das intervenções radicais, valoriza a convencionalização a ponto de até incentivar a prática, mesmo que metalinguística, de formas fixas e exercícios regrados.
Ainda assim, não se trata de um tradicionalismo conservador ou “passadista”, para lembrar uma expressão do modernismo dos anos 20. O que se busca na tradição não é nem o passado como experiência, nem a superação crítica do seu legado. Afinal, não somos mais como T. S. Eliot, que acreditava no efeito do passado sobre o presente e, por prazer de inventar, queria mudar o passado a partir da atualidade viva do sentimento moderno. Na sua conhecidíssima definição da tarefa do poeta moderno, formulada no ensaio “Tradição e talento individual”, tradição não é herança. Ao contrário, é a conquista de um trabalho persistente e coletivo de autoconhecimento, capaz de discernir a presença do passado na ordem do presente, o que, segundo Eliot, define a autoconsciência do que é contemporâneo.
Nessa visada, o passado é continuamente refeito pelo novo, recriado pela contribuição do poeta moderno consciente de seus processos artísticos e de seu lugar no tempo. Tal percepção de que passado e presente são simultâneos e inter-relacionados não ocorre na ideia inespecífica de tradição que tratarei aqui. O passado, para o poeta contemporâneo, não é uma projeção de nossas expectativas, ou aquilo que reconfigura o presente. Ficou reduzido, simplesmente, à condição de materiais disponíveis, a um conjunto de técnicas, procedimentos, temas, ângulos, mitologias, que podem ser repetidos, copiados e desdobrados, num presente indefinido, para durar enquanto der, se der.
Na cena contemporânea, a tradição já não é o que permite ao passado vigorar e permanecer ativo, confrontando-se com o presente e dando uma forma conflitante e sempre inacabada ao que somos. Não implica, tampouco, autoconsciência crítica ou consciência histórica, nem a necessidade de identificar se existe uma tendência dominante ou, o que seria incontornável para uma sociedade como a brasileira, se as circunstâncias da periferia pós-colonial alteram as práticas literárias, e como.
Não estou afirmando que os poetas atuais são tradicionalistas, ou que se voltaram todos para o passado, pois não há no retorno deles à tradição traço de classicismo ou revivalismo. Eles recombinam formas, amparados por modelos anteriores, principalmente os modernos. A tradição se tornou um arquivo atemporal, ao qual recorre a produção poética para continuar proliferando em estado de indiferença em relação à atualidade e ao que fervilha dentro dela.
Até onde vejo, as formas poéticas deixaram de ser valores que cobram adesão à experiência histórica e ao significado que carregam. Os velhos conservadorismos culturais apodreceram para dar lugar, quem sabe, a configurações novas e ainda não identificáveis. Mesmo que não exista mais o “antigo”, o esgotado, o entulho conservador, que sustentavam o tradicionalismo, tradição é o que se cultua por todos os lados.
Na literatura brasileira, que sempre sofreu de extrema carência de renovação e variados complexos de inferioridade e provincianismo, em decorrência da vida longa e recessiva, maior do que se esperaria, de modas, escolas e antiqualhas de todo tipo, essa retradicionalização desculpabilizada e complacente tem inegável charme liberador.
Sirvam de ilustração duas declarações de poetas brasileiros atuais, bastante apreciados, que explicitam o uso contemporâneo da tradição.
Eucanaã Ferraz:
Quanto à possível caracterização da poesia que se escreve hoje no Brasil, há um ponto pacífico: estamos diante de uma extraordinária heterogeneidade. Na convivência de linhagens está em cena, sobretudo, uma contemporaneidade de “formas”. Assim, o verso livre convive com o metro; o soneto com a página neoconcretista; o coloquial com o registro culto e elevado, assim por diante. Essa atualização de formas várias mostra o quanto os poetas atuais não optaram por uma linguagem canônica, inquestionável, com a qual ingressariam sem riscos e pré-aprovados no quadro da poesia brasileira… Hoje, diante do acervo da poesia brasileira e mesmo universal, os poetas sentem-se beneficiados; têm liberdade de fazer uso de quaisquer formas, numa relação positiva, num exercício de discernimento que implica a aceitação de certos paradigmas e a negação de outros, mas sem que uma verdade canônica estabeleça o certo e o errado para todos. (Entrevista de 2002, no site do poeta.)
Carlito Azevedo:
Eu sou absolutamente tradicional. Até os anos 50, com as vanguardas, com a ideia de poesia concreta, existia a ideia de que era legal romper com a tradição. Este é o lado do modernismo e das vanguardas com que menos me identifico. Acho mais ousado estar dentro da tradição do que tentar criar do lado de fora. É mais ousado quem tenta dialogar com uma tradição enorme, pois terá que se medir com grandes criadores. Quando um autor escreve hoje um soneto, ele terá que se medir com Dante, com Camões, com Shakespeare. É essa uma ousadia muito maior do que partir para um campo novo em que não há um adversário. Gosto muito de saber que tenho uma família no tempo e no espaço, com a qual dialogo constantemente… Sou herdeiro do concretismo como sou do modernismo, da poesia marginal e do surrealismo, pois, tendo vindo depois deles, não ignorei o legado de nenhum. (Entrevista ao Jornal do Brasil, de 14 de dezembro de 1996.)
Em tais declarações encontramos uma definição do que significa fazer poesia no Brasil, definição que traz à tona as implicações estéticas dessa maneira de compreender as formas de apropriação literária e de inscrição nas linhagens da tradição, nas quais o poema se espelha e tende a se acomodar. Acredito que exista nesses usos e abusos da tradição uma política, mas sua feição ainda não se deixa distinguir, e espero que, ao descrevê-la, essa feição ganhe relevo.
Na declaração de Eucanaã Ferraz, não há sinal de interesse por seu próprio tempo. E acrescento: e haverá pelo passado? Observe-se que o termo “atualização” é usado para expressar preferência por uma acumulação normalizada e não problemática do legado poético, em vez de ressaltar a sintonia com o presente ou o descarte do obsoleto. Aí, o que está em foco são formas, linguagens e recursos da tradição, enfim, a plenitude do campo exclusivo do literário, cuja vigência foi ampliada ao máximo. Interessa-lhe a convivência pacífica (civil, como dizem uns, ou republicana, como dizem outros) de diferentes linhagens como expediente para evitar a linguagem canônica, uma verdade canônica que se imponha de fora da literatura – alusão evidente ao que havia de programático e desafiador no movimento moderno. Disso decorre o elogio da heterogeneidade (aliás, uma das bandeiras da década de 90), aqui valorizada como traço de pluralismo, como se agora fossem chegar à arena pública as mais variadas e distintas vozes poéticas.
A definição de tradição como “contemporaneidade de formas” é curiosa: pressupõe que todas elas convivam sem atrito, e compartilhem o mesmo e generoso espaço, sem risco de serem acusadas de regressão, atraso, anacronismo ou conformismo. Etimologicamente, contemporâneo significa o que é do mesmo tempo, pressupondo uma época com a qual se está em sintonia, ainda que seja para divergir ou dela se separar. No uso que Eucanaã Ferraz faz do termo, sobrevive apenas a ideia de existência simultânea no mundo das formas, sem ancoragem na experiência de um presente. A liberdade de criação que o poeta prega é voluntarista e tão combinatória que desconhece sua circunstância imediata, assim como o passado é estático e museológico.
Nessas palavras, não há fusão entre poeta e passado. Nem se considera que o “talento individual” possa ser testado a partir de um conflito objetivo ou de uma luta interior. O poeta entra na dita contemporaneidade como um consumidor, que pode hoje usar todas as formas disponíveis sem se comprometer, sem ser afetado por nenhuma delas – e nem elas afetam o seu dizer. As formas não são autoconstituintes do poema, porque a convenção tem a precedência e delimita o campo da intuição criadora, onde qualquer emoção precisará de um ponto de apoio instituído ou de uma intermediação cultural (via direta para o intertextualismo, que é uma espécie de primo rico da retradicionalização). “Forma”, nessa acepção, é coisa pronta, fôrma, gêneros modernos ou não, medidas, o que preexiste dentro dessa liberadora heterogeneidade do prêt-à-porter,esvaziado de matéria.
Na explicação de Eucanaã Ferraz surge uma oposição especiosa entre contemporaneidade de formas e a submissão ao cânone, entendida como uma identificação subalterna a tendências ou movimentos do passado. O cânone tem uma função fantasma de entidade repressora, monológica, enclausurante, ao passo que o poeta contemporâneo frequenta todas as linguagens consagradas sem programa, mas ainda simulando um discernimento crítico. Ele diz que os poetas que no passado escolhiam uma determinada forma não corriam riscos, ao contrário, eram reverentes ao cânone e entravam “pré-aprovados” para o quadro da poesia de seu tempo. Eis uma compreensão nada generosa da aventura implicada na criação moderna, desde o romantismo, senão antes. Vê-se que ele projeta retroativamente a condição pós-moderna, recusando-se a compreender o que estava em jogo na criação poética em momentos anteriores, quando as formas nem eram canônicas e sequer estavam convencionalizadas.
Não deixa de ser um anacronismo supor que as opções vigentes no presente já estavam configuradas no passado, tais como as conhecemos. Os poetas que experimentavam formas são aí, por meio dessa distorção, acusados de conhecer apenas uma possibilidade formal, de se empenhar numa linha, uma apenas, em detrimento das demais. Enquanto os poetas que vieram depois, esses sim, podem usufruir o tesouro de formas cristalizadas, sabendo apreciar sua variedade em liberdade e brincar com elas. Ademais, Eucanaã Ferraz insinua, não sem alguma timidez, que os poetas atuais superaram por inércia os poetas anteriores, embora ele próprio não esteja interessado nesse processo de superação – basta-lhe acreditar que a posição histórica de sua época é superior. Por condição, os que vieram depois estão em vantagem em relação aos antecessores.
A consciência do que é contemporâneo subentende, portanto, o elogio da heterogeneidade, a reverência à tradição e aos seus materiais, que afinal se mostraram flexíveis e recicláveis – o pluralismo relativiza a função da crítica e desarma a releitura transformadora do legado. Por isso, Eucanaã Ferraz prefere formas reconhecíveis, ao mesmo tempo que tem o topete de dizer que usar a tradição é desafiar o cânone – por quê? A proposição parece-me quase um nonsense, mas é preciso entender ao avesso do absurdo a necessidade dessa tradicionalização, dita anticanônica.
Não custa notar que aqui a situação é oposta aos debates recentes sobre a politização do cânone, dos quais se passa à margem. Quais os autores admitidos e os argumentos para instituí-los? Quais as políticas de exclusão? Que circunstâncias histórico-sociais são decisivas para uma canonização que pode deformar a transmissão do legado e enrijecer o ensino? Nada disso aparece nesses depoimentos sobre a tradição. Ao que tudo indica, a moda da politização do cânone virou, na boca dos poetas brasileiros recentes – e Eucanaã Ferraz não está sozinho –, argumento a favor da autonomia estética, posta em prática por um esteticismo intertextual. O pluralismo das boas intenções enxerga a si mesmo como liberal, aberto e acima de qualquer suspeita.
O pronunciamento de Carlito Azevedo, mais didático e um tantinho frívolo, começa com uma ideia também equívoca do movimento moderno, caricaturado como ruptura tout court com a tradição, como se os modernos – parece sugerir – tivessem rompido no vazio. Isso quando se sabe que a tradição moderna se constituiu pela dialética permanente entre a impregnação do legado e a capacidade de revolucionar as formas – basta lembrar o pensamento de Mário de Andrade ou a teoria estética de Adorno. Simulando radicalidade conservadora, Carlito Azevedo declara que é preciso ser “absolutamente tradicional”, numa inversão jocosa da frase de Rimbaud (Il faut être absolument moderne).
Pode ser que tal declaração tenha mais gratuidade do que convicção, embora o que vem a seguir seja de má-fé, por apresentar a tradição moderna como uma linhagem de autores molengas, que praticaram o experimentalismo por medo, para ocultar suas deficiências e, astutamente, se postarem do “lado de fora” da tradição, assim escapando a julgamento por falta de termos de comparação.
Na conjuntura brasileira, o alvo visado é a poesia concreta, que alimentou durante décadas a chama do vanguardismo e assumiu a “tradição da ruptura”, nos termos de Octavio Paz. Mas também neste caso Carlito Azevedo erra a pontaria, porque um poeta como Haroldo de Campos, por exemplo, jamais subestimou o papel da vanguarda, no sentido de renovar a tradição e definir autores e obras do passado que a anteciparam e a inspiraram.
Lembro a passagem famosa de um texto de 1961, que está incluído em Teoria da Poesia Concreta: “A tradição viva é moderna. Nessa acepção, quanto mais moderno, mais tradicional, mais parente da tradição válida, onde quer que ela se encontre.” Por isso, o ataque de Carlito Azevedo à ruptura moderna não estará simplificando de modo escandaloso a posição histórica da poesia moderna como um todo e falseando o básico da poesia concreta em particular? Seja como for, fica claríssimo que ele não aceita mais os termos peremptórios em que a vanguarda se pronunciava: dispensa-se de buscar a tradição viva, renuncia a questionar o estatuto da tradição (oficial ou não) ou a decretar o que vale e o que não vale. Está interessado, ao contrário, em desarmar os enfrentamentos e subestimar o momento destrutivo da vanguarda como poeta-herdeiro que é. Assim, se perfila ao lado do canonicamente existente, cujo funcionamento abstrato e atemporal, como entendido por Carlito Azevedo, desconhece proibições, hierarquias e exclusões, é alheio à política e à história do presente. Sem dúvida, no Brasil, o debate norte-americano sobre o cânone serviu de licença para essa corrida rumo à tradicionalização – isto é, rumo à contemporaneidade de formas, nos termos de Eucanaã Ferraz.
Observe-se que a defesa de um ultratradicionalismo é no mínimo caprichosa, se não for mais uma gaiatice (pois Carlito Azevedo gosta muito delas). O poeta simula que a tradição não se forma pelo diálogo crítico dos criadores com obras do passado, seja refazendo continuidades, seja manifestando confronto e anseio de superação. Na sua concepção, a tradição está a-historicamente configurada, e sempre aberta para acolher o que quer que seja. Ao mesmo tempo, esquece de propósito que, nos países periféricos, a tradição se constitui medindo forças com a imposição colonial, ao manifestar o desejo de construir uma cultura própria e válida universalmente. O conceito de “formação” de Antonio Candido, explorado em Formação da Literatura Brasileira, significa para um crítico como Roberto Schwarz justamente isso: “Verificação crítica da tradição.” Tradicionalizar, para Mário de Andrade, significava referir-se ao presente, conquistar o passado, mesmo o passado inautêntico, para a sensibilidade contemporânea, com uma generalidade nova e nacional.
O que Carlito Azevedo entende por ser “absolutamente tradicional” pode ainda suscitar outras indagações: estar “dentro da tradição” será a grande ousadia contemporânea? Ousadia e defesa da tradição são termos que se atraem, numa dialética que desconhecemos (a mesma de Eucanaã Ferraz?), mas que não é a da poesia moderna – dos modernismos à poesia concreta. Medir forças com grandes criadores do passado, será essa a grande novidade que os poetas podem hoje oferecer? Mas como medir forças com Homero ou Dante, a não ser retorica e fantasiosamente? Um campo de experimentação poética não teria adversários porque os conservadores hoje estão todos camuflados?
As duas passagens transcritas convergem para apresentar como ousado justamente aquele que não corre riscos. Os dois poetas ostentam o que chamo de “complexo de quem vem depois”, que pressupõe a superioridade da própria posição histórica, beneficiando-se do fato de ser subsequente, sobretudo subsequente à vanguarda e ao esgotamento do movimento moderno. Quem vem depois acredita que, pelas graças da diacronia, herda automaticamente tudo o que veio antes. Situa-se num momento adiantado, não precisa prestar contas, não se impõe uma disciplina criadora ou expressiva, nem pretende formular um projeto – ideia considerada autoritária e canônica, de uma verdade única, como dizem. Os que vieram depois gozam da liberdade de vivenciar sobreposições, tempos múltiplos de causalidade desconhecida ou já esquecida, sem divergências ou intempestividades. Os dois poetas fazem o elogio da heterogeneidade e do repertório universal de formas poéticas que convivem pacificamente neste desaguadouro de tempos e tendências que é o presente.
Cabe nesta altura tomarmos um desvio para situar esses dois pronunciamentos exemplares. A compreensão tradicionalizadora que apresentam não deixa de ser uma variante da “poesia pós-utópica”, tal como formulada por Haroldo de Campos, em 1984, no intuito de marcar oficialmente o fim da poesia concreta ou do ciclo vanguardista e o fim das utopias (“Poesia e modernidade”, no livro O Arco-Íris Branco). A “poesia da agoridade” foi então anunciada como um programa modesto, mas redentor, para as adversidades do presente: suspendia-se a estratégia de oposição às tradições com prazo vencido e ao conformismo do cânone, em nome de uma “pluralização das poéticas possíveis”, o que subentende um recuo tático e a admissão realista do que existe. Sem derrotismo, ao contrário, com seu imbatível entusiasmo, Haroldo de Campos limitava o âmbito poético ao diálogo com a tradição, ao intertexto e à tradução, todos eles formas fraquinhas de negatividade, porém suficientes, segundo o ex-concretista, para uma reflexão sobre o desencanto do momento.
Seu propósito, a meu ver, é o de mascarar a falta de saída histórica, cancelando a adversidade do presente, a historicidade do eu e das formas literárias, mas preservando uma noção de rigor de construção do poema, cuja matéria fica esvaziada de atualidade (ou seja, da proximidade de um presente problemático). É ocasião, portanto, para multiplicar as linhas da tradição e incitar a apropriação de uma pluralidade de passados, sem o filtro deformador de um programa de futuro. Noutra passagem dos mesmos anos (1983), Haroldo de Campos expressa com euforia o regime novo em que entrava a atividade poética: “Escrever, hoje, na América Latina como na Europa, significará cada vez mais reescrever, remastigar.” Parece definir, assim, uma versão intertextual e determinista da Antropofagia de Oswald de Andrade.
A afinidade das posições dos poetas contemporâneos com a panaceia pós-utópica de Haroldo de Campos não costuma ser apontada ou lembrada, talvez porque diferentes gerações não cheguem a um resultado comum pelas mesmas vias. Entretanto, foi a partir da decretação por tabela do ocaso da vanguarda e do lançamento da “poesia da agoridade”, como abertura edificante para o impasse histórico do momento, que a poesia brasileira se reorganizou e bateu em retirada pelo caminho pós-moderno da retradicionalização. Mas é imprescindível acrescentar que a incorporação generalizada daquelas palavras de ordem de Haroldo de Campos acabou por limpá-las de seus resíduos vanguardistas e de certo progressismo altissonante. Tanto que a poesia contemporânea desmanchou a referência nacional que ainda balizava o itinerário concretista, assim como subestimou a existência de uma crise do verso – as novas gerações sabem, a partir da leitura da poesia dos antigos concretistas, que o verso sobreviveu como um arcaísmo feliz dentro da linguagem multimídia. Os poetas podem agora assumir a heterogeneidade e a multiplicação de passados como ponto de partida, e não mais como pouco heroico ponto de chegada. Menos normativos, sem a folha corrida de feitos revolucionários, dispensam-se de prestar contas sobre a própria posição e ostentar outra vez algum vanguardismo espectral. A retradicionalização decorrente é inespecífica e pró-globalização, uma espécie de abertura geral do mercado, no que se distingue das precauções judiciosas e paternais que Haroldo ainda tomava contra a invasão da poesia convencional.
Os novos poetas logo trocariam a suposta radicalidade construtiva por dicções mais triviais, porém não menos convictas do trabalho rigoroso com a linguagem: o resultado é uma lírica debilitada em que a autorreflexão se torna sentimentalismo e a construção se torna (anticabralinamente?) subjetivismo e contingência. Enfim, o bem-estar da tradição supera o dilaceramento entre formas avançadas e formas anacrônicas, pois umas e outras não encarnam mais o agonismo de opções implacáveis.
A virada para a tradição, a partir dos meados dos anos 80, deu-se no contexto do colapso da modernização, da desagregação do projeto moderno, da falência das utopias, que correspondeu, em países como o Brasil, a um período longo de estagnação econômica e social. Nessas condições, fomos surpreendidos por esse novo e prolongado ciclo de institucionalização de toda a experiência moderna, incluídas as vanguardas que entraram para o grande varejo modernista. Esses anos coincidiram, como vocês sabem, com o auge do neoliberalismo, que atravessaria os dez anos seguintes e pico difundindo o consenso pluralista a favor da mercantilização, da competência abstrata, da liberação dos mercados, do universalismo vazio. Que são práticas alheias à inquietação crítica e contrárias a tradições intelectuais avançadas, dirigidas à crítica do capitalismo.
Abro um parêntese para contar como procurei, aos tateios, encontrar nesse cipoal maneiras de descrever e designar o novo regime em que entrava a poesia contemporânea, embalada pelo pluralismo neoliberal. No final dos anos 80, falei em “requalificação literária” ou “reliterarização” para descrever o movimento da poesia brasileira em direção a valores literários elevados, aliteratados e poetizantes, uma vez que a produção daquele período recusava a circunstância imediata, a experiência existencial ou as formas antiliterárias – vanguardistas ou não. Contudo, “reliterarização” tinha o inconveniente de nos jogar de volta às tradições oratórias e acadêmicas que infestaram, até bem pouco tempo, as práticas literárias brasileiras, com seu padrão ornamental e suas dicções pomposas. Evidentemente, não era mais o caso: sabemos o quanto a poesia contemporânea está integrada no cotidiano, redescobrindo a beleza poética sem antagonizar alta cultura e cultura de massa.
Em 1989, escrevendo sobre as tendências vanguardistas dos anos 50 e 60, assumi que estava encerrado o ciclo do que Mário de Andrade qualificou de “atualização da inteligência artística brasileira”, por ele definida como uma das conquistas fundamentais do movimento modernista. Sob a pressão do presente, minha constatação se baseava na experiência de que a vida cotidiana estava tão alterada pela economia e pela tecnologia, tão internacionalizada, que dispensava o requisito de atualização. A internacionalização brasileira era um fato e o país sofria a consequência de uma modernização truncada e catastrófica, a qual necessitava impreterivelmente uma crítica especificada do progresso como elemento atualizador. Foi nesse clima, entretanto, que se iniciou uma era de pastiches, glosas, revisitações e intertextualismos, marcada pela volta às convenções poéticas e aos ofícios do verso que idealizam o poético, bem à distância da autoconsciência moderna de que os documentos de cultura são documentos da barbárie de que são feitos.
Esbocei de modo prospectivo o vínculo do fim da atualização artística no Brasil com a crise da modernização mundial como sinais das transformações e impasses que atravessávamos. Nos anos seguintes, não poucas vezes pude reverificar o que constatei, desacorçoada com os rumos da produção poética que, até então, parecia não reconhecer esse vínculo (ou preferia recalcá-lo). Por volta de 1998, utilizei pela primeira vez o rótulo irônico “retradicionalização frívola” para reagir à consolidação dessa poesia culta, séria e intertextual, empenhada na institucionalização literária e pluralista na publicidade que faz de si própria. Àquela altura, a impressão avassaladora era de que a mercantilização atingira a produção cultural mais independente: havia uma poesia profissionalmente poética, integrada ao mercado e com baixo interesse artístico. A despeito de ser um processo irrefreável do capitalismo, a mercantilização não é uma categoria explicativa suficiente para apreender um ciclo literário como este, pois, soando como uma condenação moral, subestima a história de sua gênese e de suas filiações formais, além de intimidar a consideração estética.
Descrever esse itinerário sob o ângulo da retradicionalização oferece alternativamente uma complexidade que presumo multilateral e que não conclui simplesmente que houve rendição ou queda. Nesse processo histórico-literário, existem expectativas que se cumprem, outras que fracassam e mais outras que, ao se realizarem, fracassam igualmente. É um processo em aberto, que carreia implicações intra e extraestéticas, cujo andamento se confunde com seu âmbito nacional, que também está em mudança. Com essa autojustificação, não pretendo minimizar o fato de que essa produção sobrevive dentro do mercado, mesmo que possa dentro dele ter a limitação (ou as vantagens) de uma indústria cultural caseira.
Ao longo desses anos, o que verifiquei foi a mudança do peso e do sentido da tradição, que não precisa ser necessariamente reverenciada, contestada ou transformada, mas tal como existe franqueia um acervo de formas para que os poetas cultivem seus anseios de superação e crítica. As passagens dos depoimentos de Carlito Azevedo e Eucanaã Ferraz manifestam o ideário latente da retradicionalização frívola, indicando como essa nova política da tradição se converteu ela própria numa ideologia recorrente, de largo uso, para explicar e justificar (melhor dizer: legitimar) a posição atual dos poetas e da sua poesia. O discurso da tradição tornou-se desse modo o fiador de um estado de normalidade contra a exceção anterior que, afinal, pôde ser controlada pela institucionalização progressiva, pelo oficialismo midiático e por um calculismo highbrow. Temos de sugerir que a poesia que escrevem está integrada a essa prática relutantemente crítica, que reverencia a tradição e se apropria dela, embora aqui e ali ambos possam temperar o paradigma retradicionalizador com os seus próprios interesses geracionais. Em Carlito Azevedo, o rigor construtivo vira esteticismo escancarado, um dispositivo de dissolução referencial e vertigem sintática que transpõe a contundência do cabralismo para um espetáculo de indeterminação textual movido pelo desejo de ornamento e beleza. Em Eucanaã Ferraz, emoção e beleza curam as cicatrizes da construção, pois o ritmo do desejo, com sua naturalidade sensual, corrige e humaniza (sentimentaliza?) a racionalidade construtiva – desse modo, o poeta pode ousar um cabralismo do afeto e da delicadeza em diálogo com autores portugueses.
Enfim, a novidade pouco entusiasmante da dinâmica recente da poesia brasileira é esse apego institucional ou quase oficial à tradição. Valeria agora inscrevermos o significado do fenômeno numa perspectiva longa da história da literatura brasileira. Em literaturas recém-constituídas, de países novos como os da América Latina, o desejo de construir uma tradição sempre envolveu um timbre político de insatisfação com o passado imediato e de protesto contra o atraso. Como dizia Mário de Andrade, já em 1924, só nos tradicionalizaremos integralmente e “só seremos uma Nação quando enriquecermos a humanidade com um contingente original e nacional de cultura”. Criar usos próprios e internos para a apropriação da literatura universal, estabelecer códigos literários e sistemas de transmissão de vasto alcance, posicionar-se em relação aos componentes recalcados da nacionalidade e do mundo popular, delinear linhas de continuidade nas quais se verificasse a formação de uma tradição local – tais eram os pré-requisitos para que uma tradição nacional alcançasse funcionamento pleno.
Desde o século XIX, consolidar uma tradição implicava, após a Independência, incorporar experiências e formas artísticas anteriores para definir a nacionalidade, com propósito de superação e de autonomia, ou seja, estabelecer discriminações e filtros para o rumo que interessava. Nesse sentido, a tradição encarnava uma espécie de ficção de identidade, de tal forma que pudesse interessar e envolver o povo numa experiência comum de imaginação e criatividade cultural, mesmo que originalmente proveniente das classes dominantes. Na literatura brasileira, o romantismo e o modernismo representaram dois momentos em que essa experiência foi testada e validada de múltiplas maneiras. A tradição culta foi concebida como a mais abrangente e atualizada possível, com a premissa de que sua difusão em diferentes estratos da sociedade favorecesse um patamar de excelência e exigência cultural, no qual o não canônico propiciava o choque de uma beleza nova. Fundar ou inventar uma tradição pressupunha um horizonte político de luta, de transformação e de difusão das Luzes como índice da integração interna. Até no caso da Antropofagia de Oswald de Andrade, até neste caso, que apresenta a aventura dessa formação cultural em versão cômico-grotesca, não deixa de constar a assimilação crítica das tradições cultas e a superação delas como originalidade nativa.
No curso dos anos 40 e 50, a tônica do debate sobre a tradição se deslocaria para o âmbito político-social, em que surgiram instrumentos econômicos e políticos para implantar o desenvolvimento e a transformação do país. Confiava-se que a acumulação de forças empenhadas na superação do atraso poderia ser arrebatada pelas mãos do Estado, completando as reformas estruturais e combatendo a desigualdade. As promessas de integração e autossuficiência que tais mudanças aventavam sabemos o quão míticas foram, e sempre acabam sendo, na interminável revolução brasileira.
Talvez possamos hoje ter a nitidez de afirmar que poetas como João Cabral de Melo Neto e movimentos como o concretismo, vivenciando o deslocamento do significado da tradição naquele tempo de desenvolvimentismo, pressentiram que ela estava cada dia mais ameaçada pela internacionalização e pelo avanço da sociedade urbano-industrial. João Cabral pensa a crise de comunicação da poesia moderna, cuja intransitividade o incomoda, voltando-se para uma poesia antilírica de andamento prosaico e formas arcaicas, que rompe com a prosódia fácil e a musicalidade sentimental do mais arraigado lirismo luso-brasileiro, ao mesmo tempo que se arrisca na abstração metapoética a partir de temas da miséria nordestina e espanhola. O concretismo, insatisfeito com o déficit de vanguarda do modernismo brasileiro, abre-se para a cultura de massa e os meios de comunicação, inclusive a publicidade, para lançar uma poesia de exportação com base num elenco de antecessores pescados em várias linhagens da poesia moderna. São articulações exploratórias e inesperadas, que fundem experiências de várias origens e quebram a linearidade da tradição anterior.
Retomando: o fenômeno da retradicionalização frívola ocorreu depois que o nexo da poesia com a modernização foi rompido. É precisamente esse o momento em que a referência nacional sai de cena e a ideia de tradição moderna, plenamente consolidada, deixa de funcionar como referência ou trunfo. A tradição, que passou a ter o mesmo valor de um artigo de comércio, já não representa uma experiência nacional e popular em curso, ou um fator decisivo para se pensar e combater a dependência. Sem desenvolvimento ou integração nacional à vista, num quadro em que o atraso educacional e mesmo a alfabetização parecem agravados pela entrada maciça da tecnologia no cotidiano, os poetas não deixam de ter motivos para mandar às favas a responsabilidade esclarecida e crítica. Essa mudança de perspectiva, de alcance geral, convenceu os produtores culturais de que as diferenças nacionais existem como marcas de fábrica e as tradições estrangeiras são todas elas acessíveis, como se a globalização por si só franqueasse a igualdade dos processos culturais.
O bando de herdeiros que são os poetas parece ignorar que a tradição no sentido próprio é uma experiência coletiva passível de aperfeiçoamento e generalização. Confiam que a dinâmica da acumulação literária estaria agora sendo conduzida precipuamente pelo interesse individual (e suas idiossincrasias) e pela proclamada vocação à universalidade. A tradição, como a conhecíamos, deixou de ser um valor a ser transmitido, um patrimônio coletivo que, mesmo à mercê de interesses políticos e econômicos, poderia agenciar e dramatizar elementos de uma identidade pessoal ou nacional. Se é inegável que a retradicionalização frívola corresponde à desilusão com o processo modernizador, com a falta de alternativas nacionais à integração capitalista, isso não justifica a rendição à sociabilidade triunfante e o decorrente recalque do subdesenvolvimento como problema estético-político.
Desaparecem desse modo as questões da dependência ou o debate político sobre a hegemonia cultural, tão descondicionado aparenta ser o âmbito em que essa retradicionalização impera. O que era um legado de irresoluções nos planos nacional e internacional se transforma num conjunto abstrato de superações, acompanhado por uma suspensão militante de discriminações, já que a imposição do consumismo converte as deficiências anteriores em novas disponibilidades. Podemos identificar nessa liberdade pós-moderna a prerrogativa que algumas frações da sociedade têm de se integrar culturalmente e circular no mundo globalizado, sem comprometimento local e, enfim, livres do que é dilacerante numa relação desse tipo; uma liberdade que não pode ser vivenciada ou usufruída com a mesma desenvoltura por outras classes, empenhadas em vencer o estigma socioeconômico.
Na aparência, a retradicionalização frívola da poesia assinala a superação do velho sentimento nacionalista, o que não quer dizer que a sua noção de arquivo de formas esteja livre de oficialismo – um oficialismo sem burguesia e sem Estado, mas muito ativo e negociável no mercado dos bens culturais (mídia, universidade, congressos, fundações culturais, internet e indústria editorial). Um pluralismo facilitador de concessões inumeráveis substitui o impulso modernizador, proporcionando aos produtores de poesia uma inserção salvadora no mercado, como se um universalismo pragmaticamente tramado em redes fosse (e será que não é?) o motor da vida cultural.
Nesta altura, vocês devem estar curiosos para saber quais são as condições de permanência da retradicionalização frívola, até quando terá ela gás para continuar se reproduzindo. Atualmente há sinais de que o complexo cultural do neoliberalismo foi abalado em sua hegemonia, que o pensamento único perdeu a autoridade de nos condenar a um modelo inapelável de sociedade, embora não despontem alternativas relevantes ao capitalismo, mesmo após uma crise sistêmica de proporções ainda não reveladas de todo, como a que atravessamos desde 2008. Falando da experiência brasileira, é verdade que raras são até agora as reações propriamente artísticas, no campo da poesia, a esta conjuntura. Mas elas existem e estarão fundadas na insatisfação com o paradigma retradicionalizador, o qual, como vimos, não passa de um parasitismo do cânone.
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