A maior parte dos gases de efeito estufa que o Brasil lança na atmosfera vem do desmatamento. A derrubada da floresta para a conversão em pastagem ou lavoura responde por 61% das emissões nacionais. Para reduzir nossa contribuição à mudança climática, basta manter a floresta de pé FOTO: @DANIEL BELTRÁ PARA O GREENPEACE
Contadores de carbono
Como o Brasil calcula a emissão de gases que provocam o aquecimento global – e por que a sua margem de erro é superior a 30%
Bernardo Esteves | Edição 57, Junho 2011
Numa manhã de março, o engenheiro florestal Niro Higuchi se embrenhou Amazônia adentro, a 75 quilômetros ao norte de Manaus. Com gestos decididos, sem recorrer ao facão que carregava, afastou os galhos que lhe cruzavam o caminho e chegou a uma clareira de uns 100 metros quadrados. Em contraste com a mata frondosa ao redor, havia apenas folhas, galhos e tocos de tronco espalhados pelo chão. Todas as árvores tinham sido derrubadas por Niro Higuchi e seus alunos.
Desmatar é um dos ofícios de Higuchi, um filho de imigrantes japoneses que nasceu no Paraná e vive há mais de trinta anos no Amazonas. Em nome da ciência, ele já serrou e derrubou 1 500 árvores. Seu objetivo com a chamada “coleta destrutiva” foi pesar árvores e calcular a quantidade de carbono armazenada em cada uma delas. O cálculo serve para aquilatar quanto carbono existe na Amazônia – informação essencial para se entender a influência da floresta no clima da Terra.
Componente das moléculas que constituem as plantas, microrganismos e animais, o carbono está na base química da vida. Combinado com oxigênio, ele existe na forma gasosa, o CO2, que participa do processo de fotossíntese: as plantas capturam o gás carbônico na atmosfera e dão origem a compostos orgânicos. Como a Amazônia – a maior e mais densa floresta do mundo – absorve uma quantidade significativa de CO2, ela participa das alterações climáticas que afetam o planeta. Para que se saiba como isso acontece, e em qual medida, é preciso saber quanto carbono há na floresta – e é aí que entra Niro Higuchi.
Para realizar a coleta destrutiva, é preciso primeiro selecionar um trecho de mata de 10 por 10 metros. Depois, de motosserra, se derrubam todas as árvores. E aí cada uma delas é cortada em pequenos pedaços, que são pesados numa balança com capacidade para 300 quilos. Das raízes à ponta das folhas, tudo é pesado. As diferentes partes da árvore são estudadas separadamente para calcular a percentagem de carbono no peso total.
Ao analisar os dados de milhares de elementos vegetais, Higuchi estabeleceu a fórmula bioquímica entre o diâmetro do tronco e a quantidade de carbono que a árvore armazena. Expressa numa equação matemática, a fórmula permite determinar, com base no diâmetro do tronco, quanto carbono há numa árvore. “O trabalho destrutivo está concluído”, disse Higuchi. “Não é mais necessário derrubar árvores.” Em vez disso, ele entra na floresta e mede o diâmetro das árvores.
Alguns quilômetros adiante, dois alunos de Higuchi, acompanhados de quatro mateiros, entraram em outro trecho da mata para medir mais troncos. A medição é repetida para todas as árvores de um fragmento de 2 500 metros quadrados. As que foram registradas receberam uma mão de tinta para que não fossem contadas duas vezes. Ao cabo de meia hora, o grupo saiu da floresta com dados sobre 150 árvores.
Higuchi coordena o monitoramento de 1500 fragmentos florestais semelhantes. Assim como as pesquisas de opinião estimam a intenção de voto de dezenas de milhões de eleitores a partir de entrevistas com algumas centenas de pessoas, o engenheiro florestal extrapola os dados obtidos nos fragmentos para o universo da Amazônia. “Nossas estimativas de estoque de carbono da floresta têm uma incerteza de 3%”, disse, referindo-se àquilo que nas pesquisas eleitorais se chama de “margem de erro”.
Uma aluna de Higuchi, a engenheira florestal Roseana Pereira da Silva, defendeu sua tese de doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o Inpa. Usou como matéria-prima da pesquisa 494 árvores, que ela mesma e seu orientador abateram. Como o trabalho foi dos primeiros a registrar quanto carbono as árvores têm abaixo do solo, na raiz, ele foi incluído na bibliografia indicada pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, organismo científico das Nações Unidas que estuda o aquecimento global.
O CO2 é o mais conhecido dos gases acusados de provocar o aquecimento do planeta, ao lado do metano, do óxido nitroso e de outros. Juntos, eles retêm na atmosfera parte do calor irradiado pela Terra aquecida pelo sol, impedindo que ele se dissipe totalmente no espaço*. Esse fenômeno, o efeito estufa, é responsável pela existência da vida na Terra: não fosse pelo armazenamento do calor, o planeta seria gelado.
Desde o final do século XIX, no entanto, se intensificou o acúmulo de CO2 e outros gases na atmosfera. Isso provocou um aumento da temperatura média dos oceanos e da atmosfera próxima à superfície terrestre. O aquecimento global, por sua vez, causou o derretimento das geleiras e, em consequência, a elevação do nível dos mares. Alteraram-se também o regime de distribuição de chuvas e a frequência daquilo que os meteorologistas chamam de “eventos climáticos extremos”: secas, borrascas, enchentes, furacões.
É crescente a convicção, entre os cientistas, de que o aquecimento global foi e é provocado pela atividade humana: pelo aumento da população e incremento das atividades econômicas, sobretudo as industriais. A raiz do problema estaria nos combustíveis fósseis: carvão, gás natural, diesel, gasolina e outros derivados do petróleo. Usados intensivamente desde a Revolução Industrial, eles liberam gás carbônico quando queimados.
Os cientistas vêm chamando a atenção para o aquecimento desde os anos 70. Mas só na Eco-92, no Rio de Janeiro, políticos e diplomatas trataram do problema no âmbito internacional. Instituíram então a Convenção das Nações Unidas sobre Mudança Climática, cujo objetivo é reduzir as emissões de gases que produzem o efeito estufa, retendo a marcha do planeta para um futuro mais quente. Os signatários – hoje são 195 – se comprometem a apresentar periodicamente um inventário da quantidade de gases do efeito estufa que jogam na atmosfera. E precisam informar as medidas que põem em prática para diminuir as emissões.
A comissão do IPCC que define os métodos usados na elaboração dos inventários é copresidida por uma brasileira – a matemática Thelma Krug, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. As normas definidas pela comissão são publicadas em uma série de volumes, em grande formato e lombada colorida, que ela guarda nas estantes do seu gabinete no campus do Inpe em São José dos Campos.
Thelma Krug explicou que os países signatários têm objetivos diferentes entre si de redução de emissão de CO2, em função de sua responsabilidade histórica pela mudança climática. As nações desenvolvidas – maiores responsáveis pelo aumento do efeito estufa – têm metas obrigatórias de redução de emissões e precisam apresentar inventários anuais. Já os ditos países em desenvolvimento não precisam prestar contas a cada doze meses e podem adotar métodos mais toscos de aferição de emissão de gases. “Mas o Brasil acabou usando algumas das abordagens mais complexas do IPCC, ainda que não tivesse essa obrigação”, disse Thelma Krug.
O primeiro inventário brasileiro foi submetido à Convenção do Clima no final de 2004 e cobriu o período entre 1990 e 1994. A segunda edição, que se estende até 2005, foi entregue no final do ano passado, durante a Conferência sobre a Mudança Climática em Cancún. Coordenado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, o documento foi preparado por uma equipe de 700 especialistas de 150 instituições durante cinco anos, ao custo de 10 milhões de dólares. O coordenador técnico foi o engenheiro Newton Paciornik, um homem alto e magro, de olhos claros e cabelos grisalhos, que trabalha num imóvel na Praia do Flamengo, no Rio.
No relatório, o Brasil informou à Convenção do Clima que lançou na atmosfera, em 2005, o equivalente a 2,19 bilhões de toneladas de gás carbônico, o que significaria um aumento impressionante: 58% em relação às emissões de 1990. O número foi obtido a partir de uma fórmula que atribui um peso diferente para cada gás do efeito estufa, de acordo com sua contribuição para a mudança climática.
É uma fórmula contestada pela delegação brasileira. “O cálculo superestima a influência do metano, que é um gás de vida extremamente curta na atmosfera”, alegou Paciornik. Os cientistas brasileiros propuseram uma reavaliação do peso do metano e de outros gases na fórmula. Pelo cálculo alternativo, as emissões brasileiras em 2005 seriam de 1,88 bilhão de toneladas de CO2.
Seja qual for a métrica utilizada, porém, os números do inventário colocam o Brasil entre os maiores emissores globais, atrás apenas da China, dos Estados Unidos e da União Europeia, e à frente da Indonésia, Rússia, Índia e Japão.
As emissões brasileiras se distinguem por um aspecto crucial. Os grandes poluidores globais agravam o efeito estufa com a queima de combustíveis fósseis. Já o Brasil tem uma matriz energética relativamente limpa, baseada em fontes renováveis como a hidreletricidade e os biocombustíveis. Os combustíveis fósseis seriam responsáveis por apenas 15% do total das emissões – essa proporção deve aumentar caso o Brasil construa mais termelétricas e, principalmente, se vier a explorar o petróleo do pré-sal. A agropecuária fica com 19% da responsabilidade.
A maior parte dos gases de efeito estufa que o Brasil lança na atmosfera vem do desmatamento. O setor que os técnicos chamam de “mudança de uso da terra”, no qual se inclui a derrubada da floresta para a conversão em pastagem ou lavoura, responde por 61% das emissões nacionais. Paradoxalmente, esse perfil atípico é um trunfo. Nenhum outro grande emissor pode reduzir tão facilmente a sua contribuição para a mudança climática – basta manter a floresta de pé.
O imperativo da minúcia é inerente ao conceito de “inventário”. Como assinalou, em outro contexto, o escritor francês Georges Perec, “nada parece mais simples do que fazer uma lista. Na verdade, é muito mais complicado do que parece: sempre esquecemos alguma coisa e ficamos tentados a escrever etc. Mas justamente, um inventário é quando não se escreve etc.”. No caso de um inventário de gases do efeito estufa num país das dimensões do Brasil, a busca da exaustividade é mais do que problemática.
A emissão desses gases não se limita ao corte da floresta ou à queima de combustíveis fósseis. Da produção de papel e alimentos ao tratamento de esgoto, da fabricação de cimento e aço à exploração mineral, da plantação de soja à favelização das periferias, não existe um setor da economia que não contribua com a emissão de gases do efeito estufa – e a lista está muito longe de ser representativa para que se possa pretender terminá-la com o abominado et cetera.
O inventário brasileiro tenta retratar, não obstante, todas as fontes. Ele até registra, por exemplo, as emissões de hexafluoreto de enxofre, gás usado como isolante em equipamentos elétricos de grande porte e lançado na atmosfera na sua manutenção ou descarte. As emissões desse tipo correspondem a 0,0067% de todos os gases do efeito estufa produzidos pelo Brasil.
A Amazônia brasileira cobre uma área de 4,2 milhões de quilômetros quadrados, metade do território nacional. As emissões de CO2 causadas pelo corte da floresta são calculadas a 4 mil quilômetros de Manaus, no 18º andar de um prédio no Centro de São José dos Campos. Fica ali a sede da Funcate, a fundação que, junto com o Inpe, monitora a destruição da Amazônia.
O trabalho é feito a partir da interpretação de imagens de satélites como o Landsat-5, da agência espacial americana, a Nasa. Para o mapeamento do território brasileiro, são necessárias 360 imagens contíguas, nas quais cada pixel representa uma área de 30 por 30 metros. Elas são captadas por meio de uma antena em Cuiabá e transmitidas por fibra ótica até São José dos Campos. Ali, elas são analisadas por uma equipe de dezessete técnicos da Funcate.
Para entender como mudou o uso da terra no período coberto pelo segundo inventário, eles compararam imagens de 1994 e de 2002. O país foi dividido em 7,4 milhões de polígonos de tamanho variado, cada um com características homogêneas de solo, vegetação e outros fatores. “Essas células cobrem desde uma área de pastagem com 3 hectares no Rio Grande do Sul até uma vasta região de floresta com quase 77 mil hectares no Amazonas”, exemplificou a engenheira-agrônoma Clotilde Ferri, que coordenou a análise das imagens de satélite na Funcate.
A preparação e a análise de cada uma das 360 imagens do território brasileiro levaram cerca de vinte horas. Nos casos em que a análise acusou desmatamento entre 1994 e 2002, os intérpretes calcularam quanto carbono foi lançado na atmosfera. Para isso, usaram mapas detalhados da vegetação produzidos durante os governos militares e as equações elaboradas na tese de doutorado de Roseana da Silva.
O resultado é um retrato detalhado do que ocorreu em cada célula entre as duas datas. “É possível saber exatamente os pontos que tinham floresta, em 1994, e passaram a ter agricultura ou pastagem, em 2002”, contou Thelma Krug, que fez a revisão do inventário no setor de mudança de uso da terra. “Temos a informação explícita sobre as emissões de cada um dos 7,4 milhões de polígonos.”
Para avaliar as emissões do desmatamento, considerou-se que todo o carbono contido na floresta ia parar na atmosfera imediatamente após o corte. Mas esse é um cálculo simplificado, que superestima o valor das emissões. Na prática, quando se desmata, a matéria orgânica demora até se decompor por completo, e parte da madeira cortada pode se transformar em móveis. Nos dois casos, parte do carbono que estava na floresta pode levar anos, ou décadas, até ir para a atmosfera.
Em seu próximo inventário, o Brasil mudará a forma como calcula as emissões. O anúncio foi feito pelo climatologista Carlos Nobre, que, no início do governo de Dilma Rousseff, assumiu a secretaria do Ministério da Ciência e Tecnologia responsável pela elaboração do inventário. “Usaremos um modelo dinâmico mais realístico, desenvolvido pelo Inpe em parceria com a Universidade de Brasília e outras instituições”, disse Nobre, mostrando no computador de seu gabinete no MCT a curva de emissões por desmatamento calculadas com a nova técnica.
Com a modificação, a conta do desmatamento, que no cálculo atual é paga à vista, passará a ser saldada em parcelas anuais de CO2. “Apenas 50% do carbono derrubado serão contabilizados no primeiro ano e o resto vai ser computado nos anos seguintes”, disse Carlos Nobre.
Os inventários nacionais de gases do efeito estufa levam em conta apenas as emissões e remoções de origem antrópica, ou seja, motivadas pela ação humana. O gás carbônico lançado por uma erupção vulcânica, por exemplo, é excluído dos levantamentos. O mesmo princípio poderia ser aplicado, em sentido inverso, a uma floresta em crescimento, na qual as árvores absorvem CO2 da atmosfera – fenômeno conhecido como “sequestro de carbono”.
Assim foi feito no primeiro inventário elaborado pelo Brasil, que não levou em conta o CO2 absorvido pela Amazônia. No documento apresentado no fim do ano passado, a orientação mudou e o Brasil passou a abater de suas emissões o carbono capturado por uma porção considerável de floresta: aquela que cabe no conceito de “terra manejada”.
Numa área de floresta manejada existe, teoricamente, um planejamento para a exploração sustentável de seus recursos. Ou seja, há intervenção humana na elaboração e fiscalização do plano de manejo. Mas a definição do IPCC é mais maleável. “Terra manejada é aquela que tem algum propósito de produção, mas pode ser também aquela que tem funções ecológicas, sociais, religiosas, o que você quiser”, explicou Thelma Krug em seu gabinete do Inpe. Cada país é livre para determinar as áreas de seu território que considera “manejadas”. Nessas regiões, qualquer absorção de carbono passa a ser considerada de origem humana.
Jogando com as regras do IPCC, o Brasil passou a interpretar a seu favor a flexibilidade desse conceito. “Podemos considerar que todos os trechos de floresta que estão protegidos por lei – como unidades de conservação, reservas ambientais ou terras indígenas – caracterizam uma intenção do governo de dar a essas áreas uma função ecológica ou social”, justificou Krug. Assim, todo o território amazônico sob proteção legal passou a ser classificado como terra manejada. Nessa área, em vez de emitir CO2, o Brasil o estaria estocando.
Com isso, o inventário brasileiro considerou que 220 milhões de toneladas de gás carbônico foram retiradas da atmosfera por florestas manejadas – ou 10% do total de emissões. Sem essa consideração artificiosa, que não altera em nada a realidade concreta da destruição da Amazônia, o Brasil teria emitido 2,4 bilhões de toneladas de gás carbônico.
Thelma Krug não esconde algum desconforto com a decisão. Mas alega que ela tem o mérito de tornar o inventário brasileiro comparável ao de outros países. “Se tomarmos ao pé da letra, não tem nada de antrópico nisso”, disse. “Mas se fizermos de outra forma, fugiremos do que estão fazendo os outros países, que seguem a definição do IPCC.”
Ao se incorporar no inventário o carbono absorvido pela floresta nas áreas manejadas, criou-se um novo problema. Era preciso definir quanto CO2 estava sendo retirado da atmosfera pelas árvores – questão para a qual a ciência ainda não tem uma resposta.
Para calcular quanto carbono há na Amazônia, o inventário adotou uma tabela detalhada, que leva em conta suas diferentes formações florestais. Já para estimar a quantidade de CO2 capturado da atmosfera, foi usado um único número, aplicado indistintamente a todas as áreas supostamente manejadas – tenham elas árvores altas ou baixas, jovens ou maduras, finas ou grossas. Considerou-se que, nessas áreas, cada hectare de floresta absorveu 0,62 tonelada de carbono por ano.
Esse número surgiu num artigo publicado na revista Science, em 1998, que teve Niro Higuchi entre seus onze autores. O estudo monitorou durante vários anos cerca de trinta fragmentos florestais na Amazônia – três deles foram acompanhados pela equipe de Higuchi. Ao medir como o diâmetro do tronco das árvores desses fragmentos aumentava ao longo dos anos, puderam afirmar quanto carbono absorviam ao longo de determinado período. O número obtido é uma média do crescimento medido em todos os fragmentos monitorados.
O entendimento da questão melhorou nos últimos anos. O diâmetro do tronco das árvores continua sendo o índice mais confiável para medir a quantidade de CO2 que a Amazônia retira da atmosfera. Mas ele é complementado por dados obtidos por outras técnicas. É o caso dos sensores instalados no alto de torres metálicas, com dezenas de metros de altura, fincadas em pontos variados da mata. Essas torres foram instaladas no âmbito do Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in Amazonia (LBA), um grande projeto multinacional de pesquisa, lançado no fim dos anos 90, para investigar o papel da Amazônia no clima global.
Estender ao conjunto da floresta os dados obtidos em poucos fragmentos pode parecer uma extrapolação delicada, mas não foi a mais ousada do inventário brasileiro. O valor de sequestro de carbono calculado para a Amazônia foi adotado também para as áreas de floresta manejadas na Mata Atlântica – uma vegetação bastante diferente da amazônica em vários aspectos. Thelma Krug vê essa decisão com reticência. “Sem respaldo científico para a Mata Atlântica, acho um pouco prematuro estender a ela a remoção de carbono calculada para a Amazônia”, disse.
A Amazônia foi atingida por uma seca severa no ano passado, motivada pelo El Niño. Foi a maior estiagem do século, mais intensa até que a ocorrida em 2005, que já havia sido considerada um ponto fora da curva. O fenômeno matou grande número de árvores e teve um custo alto para o clima global. O valor exato dessa conta foi divulgado em um estudo publicado, em fevereiro, na revista Science, por cientistas brasileiros e britânicos. De acordo com eles, a mortandade de árvores provocada pela seca representará o lançamento de 5 bilhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera à medida que elas se decompuserem – mais de duas vezes o valor das emissões anuais do Brasil.
Além da seca, em 2005 a Amazônia foi atingida por outro evento climático extremo, que dizimou um grande número de árvores. Em janeiro daquele ano, foi registrada uma tempestade violenta de tipo incomum. “Esse fenômeno, conhecido como downburst, funciona da forma inversa à de um balão”, comparou Niro Higuchi. “O balão sobe porque o ar em seu interior é mais quente. No downburst, uma bolha de ar muito frio e pesado desce com força e explode no chão, com rajadas de vento.”
No ano passado, Higuchi publicou junto com outros colegas na revista Geophysical Research Letters um artigo que avaliou o estrago causado pelo downburst. De acordo com suas estimativas, a tempestade pode ter causado a morte de mais de meio bilhão de árvores, com a liberação de 500 milhões de toneladas de gás carbônico para a atmosfera nos anos seguintes.
Os dois exemplos mostram como eventos climáticos extremos podem afetar a captura de carbono pela floresta. Nesses casos, a Amazônia deixa de funcionar como um ralo de carbono e passa a se comportar como um grande emissor. Má notícia para os próximos inventários brasileiros: por uma questão de simetria, o Brasil teria que quantificar o CO2 emitido pelas árvores mortas em secas, ou tempestades nas mesmas áreas manejadas nas quais computou o sequestro de carbono.
No setor agropecuário, a maior parte das emissões vem da fermentação entérica durante a digestão dos animais ruminantes – expressão técnica que designa o processo de liberação de gases pelo gado, por meio de flatulência ou eructação. A irrupção da escatologia no sisudo universo da política climática costuma despertar sorrisos, mas os gases dos ruminantes equivalem a 241 milhões de toneladas de CO2, ou 11% de tudo o que o Brasil emite.
Há bons motivos, contudo, para se desconfiar desse número. A quantidade de metano emitida pelo gado depende de uma longa lista de variáveis, que inclui a raça, o peso e a idade do animal, o que e quanto ele come, e até se ele pratica atividade física. Na maior parte dos casos, o Brasil não dispõe dessas informações e usou nos seus cálculos os índices sugeridos pelo IPCC.
Mas de nada adiantaria dispor dessas estatísticas. O país peca num nível ainda mais básico: desconhece até o tamanho do seu rebanho bovino. Ao compilar os dados para o cálculo das emissões, a ecóloga Magda Lima, uma das responsáveis pelo inventário no setor agropecuário, se deparou com informações discrepantes fornecidas pela mesma fonte – o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. “O anuário estatístico de 2006 indicava que havia mais de 200 milhões de cabeças, enquanto o censo agropecuário do mesmo ano dizia haver 171 milhões”, contou a pesquisadora.
O IBGE não é o único culpado pela imprecisão do inventário no setor agropecuário. Magda Lima tampouco dispôs de estatísticas atualizadas sobre a área das lavouras de cana de açúcar queimadas antes da colheita – uma fonte considerável de gases do efeito estufa. E as queixas não param aí. “Os dados sobre arroz irrigado no Brasil são uma piada”, completou a pesquisadora, referindo-se a um tipo de cultivo no qual há grande emissão de metano.
Ainda assim, Magda Lima acredita ter obtido um cálculo razoável das emissões desse setor. “Os valores que obtivemos tendem a estar superestimados, mas são números bons, que dão uma orientação sobre as lacunas de pesquisa que temos que perseguir”, disse.
O item mais fácil para o cálculo das emissões é o relativo à queima de combustíveis fósseis. A conta é simples: soma-se a quantidade de combustíveis fósseis que o Brasil produziu ou importou, e subtrai-se o que foi exportado. A quantidade de carbono é calculada de acordo com fórmulas há muito tidas como corretas. “Fazemos alguns refinamentos depois disso, mas essa primeira aproximação é quase equivalente ao valor total”, afirma o físico Carlos Feu Alvim, que participou do cálculo das emissões brasileiras nesse setor.
O inventário brasileiro não contabiliza, no entanto, as emissões geradas nos reservatórios das usinas hidrelétricas. Estudos recentes, feitos no Brasil e em outros países tropicais, indicam que a decomposição da matéria orgânica da vegetação e dos solos inundados produz uma quantidade considerável de metano, que é dissolvido na água e lançado na superfície aquática ou na saída das turbinas.
O biólogo americano Philip Fearnside, pesquisador do Inpa radicado em Manaus desde o fim dos anos 70, fez uma estimativa de quanto metano seria emitido com a construção de Belo Monte. Pelas suas contas, se forem construídas as duas barragens previstas no projeto original da usina, a emissão seria equivalente a 11 milhões de toneladas de CO2 nos dez primeiros anos de operação, diminuindo nos anos seguintes. “Belo Monte levaria 41 anos para começar a gerar benefícios em termos de efeito estufa”, disse.
O coordenador técnico do inventário alega que o IPCC ainda não definiu como esses cálculos teriam que ser feitos. “Enquanto não houver acordo quanto à metodologia a se utilizar fica difícil”, afirmou Newton Paciornik.
Como existem dificuldades e imprecisões em praticamente todas as etapas de medição dos gases lançados na atmosfera, a Convenção do Clima recomenda que cada país elabore uma estimativa da incerteza dos números apresentados, de forma análoga à margem de erro das pesquisas eleitorais.
A estimativa de incerteza do inventário brasileiro é da ordem de 32%, o que significa que as emissões do Brasil podem estar situadas entre 1,49 bilhão e 2,89 bilhões de toneladas de gás carbônico. Uma sondagem de intenção de voto que tivesse a margem de erro da ordem de 32% não seria levada a sério. Isso não significaria que os números do inventário brasileiro são uma ficção inútil? Newton Paciornik rejeita a interpretação. “Os valores apresentados são os melhores que podemos obter neste momento com o conhecimento de que dispomos”, respondeu. “São números bona fide. O importante é que a probabilidade de estarmos errando para mais e para menos é a mesma.”
A enorme margem de incerteza reflete também a natureza das emissões brasileiras. Os setores em que o cálculo das emissões é mais impreciso – mudança de uso da terra e agropecuária – são justamente aqueles que respondem por 80% das emissões. É por isso que a estimativa de incerteza do Brasil é bem maior que a de outros países. Em 2008, o índice foi de 2% para o Japão, 4% para a Alemanha, 8% para a Austrália, 14% para o Reino Unido e 23% para a França.
O cálculo das emissões do desmatamento é bem mais impreciso do que o de outros setores. Tome-se o caso dos combustíveis fósseis. O teor de carbono dos compostos e a fórmula química da sua combustão são bem conhecidos. Quando se queima um litro de gasolina, é possível dizer quanto gás carbônico será lançado na atmosfera com uma margem de erro ínfima. O mesmo não se pode dizer da queima de 1 hectare de floresta, pois ninguém sabe ao certo quanto carbono há nas árvores consumidas pelo fogo. E mesmo que esse número fosse conhecido, faltaria saber quanta matéria orgânica há nos galhos e folhas mortas no chão da floresta e no solo propriamente dito, que são outras fontes de carbono e de incerteza.
Por causa de fatores como esses, talvez a estimativa de incerteza do inventário brasileiro seja até conservadora. Isso é o que indica a reação inicial de Thelma Krug ao se deparar pela primeira vez com o número. Quando lhe mostrei o capítulo do inventário referente às incertezas, no final de um volume de capa verde e azul com quase 300 páginas, ela levou as mãos ao rosto e exclamou para si mesma: “Mas é muito baixo!” Encontrei-a novamente no dia seguinte e ela disse que revira sua opinião. Depois de pensar, achava que a incerteza de 32% era um número razoável, afinal.
Em novembro de 2009, às vésperas da Conferência sobre a Mudança Climática de Copenhague, o governo brasileiro anunciou que apresentaria metas voluntárias para reduzir suas emissões de gases do efeito estufa. Por não ter responsabilidade histórica pelo aquecimento global, o Brasil não é obrigado a apresentar essas metas. Por isso, a decisão era vista por setores do governo como uma iniciativa importante para que o Brasil consolidasse a posição de destaque que almejava ter na política climática global.
O anúncio, no entanto, esbarrava num obstáculo: como elaborar metas se o Brasil não dispunha de dados atualizados sobre suas emissões? Naquele momento, os únicos dados oficiais disponíveis eram os do primeiro inventário, que cobria o longínquo período de 1990 a 1994. Os trabalhos da segunda edição, que começara a ser elaborada em 2006, estavam atrasados.
Diante do vácuo de dados oficiais, o Ministério do Meio Ambiente encomendou a um grupo de especialistas uma estimativa que servisse de base para o cálculo das metas de redução. O anúncio provocou desconforto no Ministério da Ciência e Tecnologia e precipitou a divulgação de resultados preliminares do inventário oficial.
A geógrafa Branca Americano, que era diretora da Secretaria de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente, e coordenou a realização do levantamento paralelo, minimizou a saia justa. “Tivemos a preocupação de deixar claro que não fizemos um inventário, mas apenas uma estimativa, tanto que trabalhamos apenas com os principais gases do efeito estufa”, disse, na sede da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável.
Ela não atribui a demora da divulgação dos dados do inventário à incompetência da equipe da Ciência e Tecnologia. “Eles estavam perfeitamente em dia, só que precisávamos desses dados para fundamentar as políticas públicas de redução das emissões”, disse.
A estimativa coordenada por Branca Americano concluiu que as emissões do Brasil haviam aumentado para 1,94 bilhão de toneladas de gás carbônico – cerca de 11% menos do que o número que veio a constar do inventário oficial. A discrepância se explica porque o levantamento do Ministério do Meio Ambiente adotou um cálculo conservador da quantidade de carbono armazenada na Amazônia.
As metas do Brasil para reduzir seu papel no aquecimento do planeta têm formulação barroca: com base nos números de 2005, reduzir entre 36,1% e 38,9% as emissões projetadas para 2020. Ou seja, o valor tomado como referência para a redução é um número fictício – o volume de gases que o Brasil emitiria em 2020 caso nenhuma medida de redução fosse tomada até lá.
O percentual de redução proposto pela meta brasileira não é muito diferente da margem de incerteza estimada para o inventário: 32%. Caso o inventário tenha errado para menos, ou seja, subestimado as emissões, não será necessário um grande sacrifício para cumprir o compromisso estabelecido em lei. Num cenário oposto, se o inventário tiver superestimado as emissões, o Brasil terá que fazer um esforço considerável para cortar as emissões projetadas a partir de um número artificialmente inflado.
Mas, no final das contas, o Brasil tem uma perspectiva favorável para cumprir a meta. Isso porque o ano a partir do qual a redução das emissões será projetada coincide com o pico histórico de desmatamento. Em 2004, foi registrada a mais alta taxa de derrubada da Amazônia dos últimos quinze anos – quase 28 mil quilômetros quadrados –, e o índice vem caindo desde então. Em 2010, foi registrado o menor índice de desmatamento desde que o Inpe começou a fazer seu monitoramento – 6,5 mil quilômetros quadrados.
No próximo inventário, a redução começará a se traduzir em menos CO2 lançado na atmosfera. “A diminuição de emissões do desmatamento na Amazônia é, de longe, a maior contribuição que está sendo feita em todo o planeta para a redução de gases do efeito estufa”, afirma o engenheiro florestal Tasso Azevedo, que dirigiu o Serviço Florestal Brasileiro entre 2006 e 2009.
Manter a trajetória de queda do desmatamento é essencial para que o Brasil cumpra suas metas. Mas essa tarefa deve se tornar bem mais difícil se o novo Código Florestal, aprovado pela Câmara no fim de maio, não for vetado pela presidenta Dilma Rousseff. O texto aprovado propõe medidas como a redução das áreas de preservação permanente nas margens dos rios e topos de morro, o que torna vulneráveis trechos de floresta que estavam até então resguardados por lei.
A Câmara aprovou também a regularização de áreas ilegalmente desmatadas até 2008, o que pode estimular novas derrubadas na expectativa de impunidade. “Essa anistia sinaliza que não será preciso cumprir o novo Código”, acredita Tasso Azevedo. “Se ninguém respeitá-lo, daqui a alguns anos poderemos dizer que a lei não está adequada à realidade, assim como Aldo Rebelo fez para justificar a anistia.” Enquanto ambientalistas e ruralistas discutiam o Código, o desmatamento fugiu ao controle. Dados preliminares do Inpe indicam que a derrubada aumentou 27% na Amazônia entre agosto de 2010 e abril deste ano. Só em Mato Grosso, 480 quilômetros quadrados de floresta foram cortados.
Numa análise dos inventários dos países em desenvolvimento feita em 2003 pela agência alemã Öko-Institut, os dados submetidos pelo Brasil foram elogiados pela transparência. O segundo inventário brasileiro ainda não passou por qualquer tipo de escrutínio internacional. Mas ele seria bem avaliado caso fosse submetido a uma auditoria, na opinião do engenheiro-agrônomo Marcelo Theoto Rocha, que faz pareceres de inventários nacionais da Convenção do Clima e não fez parte da equipe que elaborou o documento brasileiro.
“A aplicação das metodologias do IPCC pelos grupos que o governo contratou é boa”, afirmou Rocha. “Obviamente há pontos em que é preciso melhorar, como a aquisição de dados, a elaboração dos coeficientes de emissões ou o tratamento da informação. No monitoramento do desmatamento em biomas como o cerrado, por exemplo, não estamos no mesmo estágio em comparação com o que temos para a Amazônia. Outro aspecto em que é possível melhorar é o refinamento das estatísticas de produção agrícola, que são confiáveis só até certo ponto.”
Na avaliação de Branca Americano, a precisão do inventário é mais que satisfatória. “Sempre haverá pequenas discrepâncias, mas no fundo essa contabilidade é irrelevante”, avalia. “Todos sabem o que é preciso fazer. A mudança climática não é um problema como a Aids, para o qual a ciência não tem resposta. Ela tem resposta, sim, o que não há é vontade política.”
É possível e recomendável aumentar a precisão das estimativas, mas chega um ponto em que faz mais sentido direcionar esforços e recursos para diminuir as emissões. Afinal, para usar uma metáfora de Carlos Nobre, o interesse último não é aprimorar a identificação dos sintomas, mas estabelecer ações para combater a doença. “O inventário é um termômetro que diz se você está com febre ou não, mas não aponta a causa”, disse Nobre. “Para isso você precisa entender os processos que levaram à febre.”
A principal contribuição desse esforço não é, portanto, tirar da cartola um número que no fim das contas é inócuo, mas identificar os mecanismos por trás das emissões do país. “Ao fazer o inventário, você tem que entender profundamente todo o processo e estar em posição estratégica para propor tecnologias de mitigação adequadas à realidade do país, e é esse o aprendizado importante”, diz Nobre.
* Correção em relação à edição impressa, onde se lia “Juntos, eles retêm na atmosfera parte da radiação do sol, impedindo que ela seja totalmente refletida de volta para o espaço.”
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