“Vou ao cinema diariamente, sou festeiro como poucos, dou lições pra burro, leio pra burro, não invejo ninguém, tenho raiva de vocês.” ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIO ONZE_2011
Contraposições premonitórias
Arte e técnica na coletânea de Mário de Andrade sobre cinema
Eduardo Escorel | Edição 54, Março 2011
O cinema é arte norte-americana, sendo benéfico transplantá-lo para o Brasil, escreve Mário de Andrade. Ressalvando que “é preciso compreender os norte-americanos e não macaqueá-los”, o escritor modernista recomenda persistência, e adverte contra uma exigência excessiva que “seria preconceito esterilizante no início de empreitada tão difícil”. Termina prometendo seguir “com entusiasmo os progressos da cinematografia paulista”.
A promessa não parece ter sido cumprida, pois o breve comentário publicado na revista Klaxon, em 1922, sobre o obscuro Do Rio a São Paulo para Casar, foi o único que escreveu sobre filmes nacionais, mesmo sendo cinemeiro e tendo tratado, embora sem regularidade, de diversas produções estrangeiras.
Publicado entre 1922 e 1943, esse pequeno conjunto de textos vem de ser editado pela Nova Fronteira com o título No Cinema, em volume de 103 páginas, trazendo posfácio do organizador, Paulo José da Silva Cunha, sobre a relação de Mário de Andrade com a que ele mesmo chamou de “décima musa”.
Excetuando a versão inédita do artigo sobre Charles Chaplin, publicado originalmente em 1934, e o trecho de “Crônicas de Malazarte – III”, de 1923, em que comenta O Gabinete do Dr. Caligari, os demais são conhecidos, podendo ser encontrados na edição fac-similar da revista Klaxon, de 1972, e em antigas edições, algumas póstumas, da obra de Mário de Andrade. Ao serem reunidos pela primeira vez em um mesmo volume temático, agora o acesso aos artigos fica facilitado. Ele permite formar noção de conjunto de uma das múltiplas facetas do autor de Macunaíma.
Outro mérito da edição foi ter estabelecido o texto com cuidado, levando em conta as inúmeras correções feitas a mão por Mário de Andrade nos recortes de jornais e exemplares de revistas publicados, além dos acréscimos e mudanças – inclusive de opinião, no caso de Fantasia, de Walt Disney – feitos posteriormente.
Não surpreende que haja artigos sobre Charles Chaplin, Robert Wiene, Erich von Stroheim, F. W. Murnau e G. W. Pabst, todos diretores integrados ao cânone da cinematografia mundial. Menos previsível é que Mário de Andrade tivesse valorizado tanto o esquecido ator, diretor e produtor Charles Ray, além de não ter escrito sobre Cidadão Kane, que Vinicius de Moraes saudou, em 1941, como “uma revolução completa na moderna cinematografia”.
Inesperado também é ter visto e mencionado “o movimento ‘neorrealista’ de filme documental”, obra sem igual, segundo Mário de Andrade, “profundamente inglesa” apesar de iniciada “por um escocês, John Grierson”. A ideologia trabalhista teria inspirado “alguns de seus mais impressivos documentários”, além de ter dirigido “o sentido social permanente dos seus filmes”. Citando clássicos do gênero realizados entre 1929 e 1936, como The Song of Ceylon, Coal Face (Cara de Carvão), Night Mail (Correio Noturno), Drifters (Pescadores) e The Voice of Britain, Mário de Andrade comprova até que ponto foi observador atento da produção cultural do seu tempo, revelando não ter escapado à influência nefasta do didatismo intrínseco da escola britânica de documentários, cujas principais vítimas, no Brasil, foram Edgard Roquette-Pinto, criador do Instituto Nacional de Cinema Educativo, em 1936, e Humberto Mauro, autor, entre outros filmes de maior mérito, de Lição Prática de Taxidermia, O Preparo da Vacina contra a Raiva e Um Parafuso, todos também de 1936.
Para o fã-clube de Buster Keaton, é decepcionante constatar que Mário de Andrade o considerou inferior, pertencente ao “cinema-comércio”, por oposição ao “cinema-arte”. O rosto bonito de Carlitos contribuiria para a comicidade, enquanto a cara feia de Buster Keaton, segundo Mário de Andrade, prejudicaria o efeito cômico.
Paulo José da Silva Cunha, organizador de No Cinema, admite que “a análise das referências ao cinema no poeta Mário de Andrade e da captação de soluções cinematográficas na poesia dele vale um estudo de fôlego, no futuro”. Faltou acrescentar, porém, que outros veios poderiam ter sido explorados, mas foram deixados de lado.
A coletânea não inclui levantamento sistemático das referências feitas ao cinema na correspondência de Mário de Andrade, nem a relação de livros e revistas relacionados ao tema existentes na biblioteca do escritor. Sem mencionar a ausência de índice remissivo, falha imperdoável em publicação do gênero. Frustrante também é o organizador mais descrever do que analisar o que Mário de Andrade escreveu a respeito dos filmes, além de ignorar as circunstâncias em que foram exibidos no Brasil. Com isso, o posfácio de Paulo José da Silva Cunha, embora correto, resulta insatisfatório.
No Cinema não inclui referência, por exemplo, à carta que Mário de Andrade escreveu a Pedro Nava, em 25 de fevereiro de 1928:
Vou ao cinema diariamente, sou festeiro como poucos, escrevo artiguete diário no Diário Nacional, dou lições pra burro, leio pra burro, não invejo ninguém, tenho raiva de vocês.
Faltou fazer levantamento dos filmes vistos por ele nesse período, e analisar o que o teria levado a comentar apenas dois deles. Traçando paralelo entre O Gato e o Canário (1927), de Paul Leni, e Fausto (1926), de Murnau, Mário de Andrade distingue arte e técnica, comparando o cinema norte-americano com o europeu, o primeiro tendo sistematizado a “bobagem sentimental” em filmes tecnicamente perfeitos; o segundo, “mal realizado”, faltando “virtuosidade” técnica, mas atingindo “o domínio da arte”. Contraposição premonitória entre entretenimento de massa e cinema de arte que continua atual.
No artigo “Filmes de Guerra”, publicado em março de 1932, além de revelar que “em qualquer parte da Europa a gente sente a guerra”, impressão transmitida por um viajante recém-chegado, Mário de Andrade destaca dois filmes, identificando-os apenas como Nada de Novo e Guerra.
O organizador de No Cinema nomeia corretamente os títulos completos – Nada de Novo no Front e Guerra, Flagelo de Deus, dirigidos, respectivamente, por Lewis Milestone e Pabst –, mas deixa de mencionar os títulos originais que por si só indicam a relação estreita existente entre eles – All Quiet on the Western Front e Westfront 1918.
O posfácio não se preocupa em informar que o filme de Pabst, considerado um libelo antimilitarista radical, foi lançado no Brasil como sendo a réplica alemã a Nada de Novo no Front, adaptação do best-seller de Erich Maria Remarque. Nem que o desencanto com a guerra causou controvérsia na Alemanha, levando o filme de Pabst a ser banido pela censura em 1933, depois de Hitler assumir o poder.
No Brasil, Guerra, Flagelo de Deus inaugurou a temporada cinematográfica carioca de 1932, estreando no novo cinema Broadway três meses antes de a guerra civil, conhecida como Revolução Constitucionalista, levar à morte mais de 800 homens. A partir de 25 de março, o Correio da Manhã noticia o lançamento de Guerra, Flagelo de Deus [sic]. O slogan do anúncio, ocupando um quarto da página, refere-se a “Lares que se derrocam! Esposas que se vendem! Famílias que se dissolvem!”.
A crítica publicada na coluna “No mundo da tela”, sem assinatura, diz que Pabst “empreendeu a tarefa de aniquilar a guerra. Para destruir a guerra, ele apenas transportou para a tela o que ela é de fato, sem a auréola de glória que lhe costumam emprestar. Ao vermos, a 30 deste mês, na tela do Broadway, Guerra, Flagelo de Deus, vamos sentir pela primeira vez o que foi na verdade a hecatombe de 1914–18, sem precisarmos entrar nos detalhes chocantes das trincheiras. E nisso está principalmente toda a glória de que pode se orgulhar Pabst, um dos diretores cinematográficos da atualidade”.
Na véspera do lançamento, o Correio da Manhã publicou fotografia de um tanque em frente ao cinema Broadway. O texto da reportagem informa que “ontem à tarde, quando maior era o movimento na avenida Rio Branco, ouviu-se subitamente um toque estridente de clarim e todas as atenções se voltaram para um tanque, um carro de assalto que passava, despertando os mais divertidos comentários. De longe, houve quem se assustasse. Mas o susto passava à proporção que se aproximava o belicoso carro de assalto. Tratava-se de um reclame do cine Broadway para o filme Guerra, Flagelo de Deus”.
Contextualizações como essas, negadas ao leitor de No Cinema, permitiriam situar os artigos no momento em que foram escritos.
Durante a ditadura do Estado Novo (1937–45), Mário de Andrade escreve sobre O Grande Ditador, de Chaplin, depois de jornais terem sido advertidos pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, de que não deveriam fazer menções, nem publicar fotografias do filme, o que levou ao seu desaparecimento na imprensa.
Segundo relato de Raimundo Magalhães Jr., redator do DIP, a proibição de O Grande Ditador teria propiciado a formação de caravanas de trem especial, partindo do Rio Grande do Sul, para ver o filme no Uruguai.
Tendo considerado o filme comunista e desmoralizador das Forças Armadas, o diretor do DIP, major Coelho dos Reis, quis eliminar a sequência final em que é feito o famoso discurso contra regimes ditatoriais. Por ingerência dos americanos, porém, o filme acabou liberado, depois de suprimidas legendas consideradas inapropriadas pelo governo de Getulio Vargas.
Com a imprensa sob censura, Mário de Andrade dificilmente poderia ter acesso a essas informações, mas ao leitor de hoje elas permitiriam entender as circunstâncias políticas em que o filme foi comentado, poucos meses depois de as interdições terem sido suspensas.
Em retrospecto, Mário de Andrade parece desassombrado ao considerar, em pleno Estado Novo, que O Grande Ditador “tangencia em excesso para uma defesa dos israelitas, para quase uma propaganda sionista quando o problema da ditadura é uma lepra universal que afeta a todos nós. Não nos interessa, minimamente no caso, lembrar que Charles Chaplin é judeu e que os israelitas estão sendo perseguidos na Alemanha. O problema é muito maior que isso”.
No discurso final de O Grande Ditador, Mário de Andrade vê Carlitos desaparecer e surgir Chaplin em seu lugar. E a humanidade do primeiro ser substituída por um orador demagógico. A falha do filme seria fazer rir quando “nosso dever é destruir. Destruir Hitler, destruir o nazismo, destruir todos esses totalitarismos que preferem o individualismo da máquina estatal a isso que somos – Carlitos em busca de uma distribuição mais humana das desgraças e felicidades do mundo”.
Publicado nos Diários Associados dois meses antes de o Brasil declarar guerra à Alemanha e à Itália, o artigo é um desdobramento da conferência de fevereiro daquele ano, a propósito dos vinte anos da Semana de Arte Moderna. Nela, Mário de Andrade confessou estar insatisfeito por perceber em quase toda sua obra a falta de participação, e não se ver “uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito, lhe fiz de longe umas caretas”.
Em consulta feita por mim há vinte anos, só foi possível identificar a existência de oito livros sobre cinema na biblioteca pessoal de Mário de Andrade, preservada no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, dos quais dois são dedicados a Chaplin. Relacionado ao cinema brasileiro encontramos apenas, com dedicatória do autor, Cinema contra Cinema – Bases Gerais para um Esboço de Organização do Cinema Educativo no Brasil, de Canuto Mendes de Almeida, publicado em 1931. No livro, o autor não só defende a importância do cinema para a educação, como assinala que a televisão “transformará, de alguma maneira, o aspecto dos espetáculos cinematográficos”. O exemplar de Mário de Andrade, porém, não apresentava sinais de ter sido lido, o que talvez possa ser tomado como indicação de desinteresse do dono pelo cinema brasileiro.
Diante da riqueza de qualquer texto de Mário de Andrade, sempre abrindo caminhos a serem investigados, Paulo José da Silva Cunha pecou por excesso de modéstia. Faltam ao livro a ambição e a pesquisa necessárias para dar tratamento à altura aos escritos de Mário de Andrade sobre cinema – tarefa que foi apenas esboçada.
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