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    CRÉDITO: RONALD AUGUSTO

poesia

Convidam-me para um debate por causa das qualidades de minha literatura ou porque sou (um escritor) negro?

Ronald Augusto | Edição 185, Fevereiro 2022

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QUEM SEGUE, QUEM ESBARRA

1

peregrino em noite branca tenebrosa

com pé incerto a confusão pisando do deserto

vozes em vão    passos sem tino

repetido latir se não vizinho      nítido

ouviu de cão contumaz e desperto

e em pastoral albergue que se ergue

mal coberto piedade achou

uma vez que não achou caminho

 

e vem madrugada e mais depois o sol

foi quando entre arminhos uns risos

de escondida sonolenta beldade –

a bem dizer um pensamento que atoleimava

a vontade e o torrencial da determinação

– com doce sanha no dedirróseo alvorecer então

saltou de sonho sobre o não bem são viandante

 

quase pagou a hospedagem com a magra vida

que por acaso ainda lhe sobrevinha

antes ô errar na montanha do que morrer

da sorte que para si imaginara

contudo não havia cão contumaz

sanha beldade     nada       risca nenhuma

alquebrado a confusão pisando do deserto

uma vez diserto outra vez sobrevivo

só o repetido latir do pensamento

na tenebrosa noite branca do peregrino

 

2

tão facilmente um se esconde em outro

e não obstante cada qual a sede sendo

de todos sem expurgo

de nenhum grosso tumulto

tão vasto é o apetite mais rude

tão curvo o espírito do corpo       túmulo

tão lúcido esse que a vigília chameja em surto

tão sem paradeiro tão jamais

seu mais rápido rugitar dura um ano terrestre

seus mais largos lustros um coice do sol

sua mais vigilante quietude o conduz

às bordas do seu inumerável quem

 

A NARRATIVA NÃO SEGUE EM LINHA RETA

 

não sei quantos portugais morreriam à míngua

caso pisássemos em seus calos desfazendo da arte da calista gostosona

 

de sena, o seu      o se’o        o siô

o seô jorge que – concedida a presunção de inocência –

ainda tenho em grande consideração

 

quanto ao outro, até que não me incomoda, isto é,

desde que não se demore e decida ir embora

com seu bandoneon de milonga enfiado no embornal

antes que se anuncie a inominada aurora

 

PONENCIAS ADVENTÍCIAS

 

convidam-me para um debate

para compor uma mesa com outros escritores

por causa das qualidades de minha literatura

ou porque sou (um escritor) negro

um rosto preto a menos entre os humanos?

 

quando convidam um escritor não negro

para participar de uma mesa

aparentemente é por causa da sua literatura

porém ele é convidado justamente por ser não negro

porque ele é um igual

porque não é considerado um corpo estranho

porque os envolvidos

querem se reconhecer no sujeito

que vai palestrar para eles os aquém os além-raciais

os sem-narinas

– endogamia –

talvez tudo aconteça desse jeito

sem que ninguém desse círculo de mesmidades pense

sobre as consequências advindas

por simples e contratual inércia

– pode ser –

 

quando convidam um escritor negro para um debate

é por causa de sua literatura e imediatamente

porque ele é um sujeito que combate o racismo

onde quer que se apresente

ou porque esse autor negro

executa para os não negros o trabalho

que eles se orgulhariam de realizar

– melhor não ir com tamanha sede –

já que os brancos solidários não querem invadir

ou sequestrar o disco arranhado da representatividade

o lugar de fala de ninguém

– de jeito nenhum –

então se convencem da importância de exercitar a escuta

de permitir o testemunho do outro

de como isso lhes garante certa paz de espírito

pois assim estão colaborando corretamente

na luta contra o racismo

 

quando convidam um escritor negro

para compor uma mesa apenas por causa de sua obra

é porque nem ele nem a curadoria sabem

que se trata de um negro

ou nem ele nem a curadoria

querem saber qualquer coisa a

propósito desse tópico

são reféns da noção segundo a qual

a qualidade literária

– cedo ou tarde –

põe cada coisa no seu devido lugar

 


Os caligramas que ilustram esta página, feitos pelo autor, fazem parte, junto com os poemas aqui reproduzidos, do livro Scriptio Defectiva (ainda sem data de lançamento). Caligramas são poemas visuais que mesclam palavra e imagem.