Maurício de Lacerda, pai de Carlos, posa para o escultor de seu busto; dirigente da Aliança Liberal, em 1930 ele levantou as massas cariocas contra o governo de Washington Luís FOTO: ÁLBUM DE FAMÍLIA
Coração quase bárbaro
O neto do jornalista e político Carlos Lacerda assume a voz do avô numa autobiografia romanceada. Neste trecho inédito, ele relata a morte de João Pessoa e a Revolução de 1930
Rodrigo Lacerda | Edição 85, Outubro 2013
João Pessoa, mesmo derrotado na eleição presidencial, tinha fama de estar fazendo ótima administração. Enfrentava o coronelismo no seu estado, embora descendesse de uma típica família oligárquica, e, numa tentativa de sanear as contas públicas, encarara a classe dos proprietários rurais e taxara o comércio entre o interior e a capital, provocando um levante armado de coronéis contra sua administração.
As circunstâncias do assassinato de João Pessoa misturam de forma trágica questões políticas, nacionais e regionais, com fatores de ordem pessoal. Tudo começou quando a polícia do governador, reagindo com firmeza à revolta dos coronéis, invadiu suas casas e as de seus aliados na capital do estado, em busca de armas e material politicamente comprometedor. Ao invadir a garçonnière de um advogado aliado dos revoltosos, João Duarte Dantas, a polícia apreendeu cartas de amor trocadas entre o sujeito e sua namorada (ou amante ou noiva, variando conforme quem conta a história). A moça, Anayde Beiriz, uma professora órfã, era também solteira, fumante e defensora da igualdade entre os sexos, o que, na sociedade da época, era sinônimo de devassidão. Daí a hipótese de a polícia não ter chegado por acaso àquele material, mas instigada pelo mau juízo que se fazia da jovem. De fato, o conteúdo das cartas era altamente comprometedor, com direito a confidências de alcova e poemas eróticos. Logo depois, a invasão de privacidade ganhou requintes cruéis, quando as cartas apareceram publicadas no jornal oficial. Estava aniquilada a reputação dos amantes.
João Pessoa, maior beneficiado de todo o episódio, estava no Recife quando morreu, cercado de correligionários na Confeitaria Glória. Segundo algumas testemunhas, naquele instante mesmo se gabava do golpe baixo, e ria dos detalhes íntimos que vieram à tona. Embora tudo leve a crer que o governo agiu de má-fé, oficialmente o governador sempre negou qualquer responsabilidade no vazamento das cartas. Seja como for, o advogado exposto ao ridículo apareceu de repente na confeitaria, ele e um cunhado, os dois armados. Já chegaram atirando, e deram tantos tiros que não se sabe quem efetivamente matou o governador.
Tempos depois, os assassinos acabariam se suicidando na prisão, cortando o próprio pescoço a golpes de bisturi, numa história muito mal contada. A professora, moralmente destruída, tomaria veneno de cobra e seria enterrada como indigente. Àquela altura, porém, só quem estava morto era João Pessoa, e tal precedência ofuscava eventuais abusos de sua parte.
O corpo do governador, após o velório na capital paraibana, viajou de navio para o Rio de Janeiro, com escalas em Salvador e Vitória. A decisão de enterrá-lo no Distrito Federal visava provocar o governo, pois Washington Luís era acusado de dar força aos coronéis paraibanos. Entre 26 de julho e 18 de agosto, à medida que o cadáver ia se aproximando da capital, o clima de ansiedade e exaltação foi tomando conta.
Pouco antes do crime, João Pessoa pedira permissão ao governo federal para adquirir armamentos, alegadamente necessários no combate aos coronéis revoltosos. Washington Luís recusara-lhe tal autorização, menos em solidariedade aos oligarcas paraibanos, talvez, e mais por medo de que as armas depois fossem usadas contra ele próprio, como provavelmente seriam. Após o assassinato, contudo, sua recusa passou a ser vista como uma medida deliberada para deixar o governador oposicionista vulnerável, sem proteção. O governo federal não apanhou quieto, claro, denunciando de volta o intuito revolucionário das acusações que sofria.
Por onde passavam os despojos, a multidão afluía e protestava contra Washington Luís e o presidente que lhe sucederia, eleito mas ainda não empossado. No Rio de Janeiro, as câmaras estadual e federal receberam discursos inflamados. Maurício, como de costume, foi um dos destaques no pelotão de incendiários legislativos, acusando o governo de proteger os assassinos na prisão e de censurar o serviço de telégrafos, bloqueando a chegada de informações às demais unidades federativas. Os donos dos jornais da capital federal foram, efetivamente, convocados à sede da polícia, para receberem instruções explícitas quanto ao “tratamento das informações”.
Meu pai, em plena crise política, nem aparecia lá em casa. Mas líamos sobre seus discursos nos jornais, orgulhosos de seu prestígio entre as lideranças civis da revolução e junto ao povo. Quando as rádios anunciaram que a multidão estava se aglomerando no porto, para receber o corpo do governador assassinado, deduzi que o “Tribuno do Povo” discursaria em algum momento dos funerais, e me mandei para lá.
Quando cheguei em frente à Caixa de Estabilização, uma espécie de Caixa Econômica Federal da época, uma praça, num ponto do cais, já estava lotada de gente. E de policiais, a pé e a cavalo, pesadamente armados. Precisei me embrenhar na massa até um ponto de onde eu visse a escada do navio. Do convés, com forte escolta, o governador do Rio de Janeiro, aliado do presidente, fazia um discurso conciliador, tentando desarmar os espíritos e alertando contra o risco de uma guerra civil. Não estava conseguindo muita coisa, porém, e decidiu acenar com a repressão iminente:
“Ninguém os impedirá de velar o governador. Mas se lembrem de que as forças policiais têm obrigação de manter a ordem pública.”
Era como se dissesse: “Vai doer mais em mim do que em vocês.” Foi vaiado, claro.
Quando baixou do navio, num primeiro momento o caixão pairou acima do aperto generalizado, suspenso nas mãos do povo, para em seguida ser entregue aos líderes da oposição. A tal praça onde estávamos tinha três saídas, e os políticos encaminharam-se para a que ia em direção à avenida Rio Branco, puxando a multidão consigo. Percorrer a principal rua do Centro era uma honraria reservada a poucos cortejos, mas justificada naquele ambiente de grande comoção popular.
Então, para surpresa geral, os soldados da cavalaria e da infantaria fecharam justamente aquela passagem. A multidão ficou atônita. Uma vez erguida a barreira humana, o delegado e os chefes de polícia puseram-se a deliberar se deveriam ou não permitir aquela última homenagem ao governador ilustre. A cada minuto que demoravam, a indignação ia aumentando. Não sei se houve alguma consulta ao Palácio presidencial, mas finalmente um delegado apanhou um megafone e anunciou a decisão das autoridades:
“O cortejo não poderá passar pela avenida Rio Branco. Pedimos a todos, encarecidamente, que saiam pelo outro lado da praça. E lembrem-se: qualquer resistência poderá provocar inúmeras vítimas.”
Novamente ecoou na praça uma vaia estrepitosa. Cabia às lideranças políticas presentes reagir à decisão das autoridades. Iriam acatá-la ou desafiá-la? Subi em cima de um automóvel e vi o caixão de João Pessoa numa carreta, cercada pelos parentes e por alguns aliados oposicionistas. Os irmãos do falecido governador estavam justamente ajudando um aliado a subir na carreta com o caixão. Era meu pai que iria discursar.
“Silêncio!”, gritaram perto de mim.
Não me lembro, claro, do discurso inteiro, pois lá se vão 47 anos[1]. Eu tinha uma cópia datilografada em algum lugar da biblioteca, em Petrópolis. Era, com certeza, de altíssima voltagem revolucionária:
“João Pessoa, Deus tornou-te imortal, o mártir da nossa liberdade, o pendão vermelho da nossa revolta!”
Esse era o “homem do século”, novamente piscando o olho para as fórmulas religiosas. E a multidão, claro, gostou e aplaudiu.
“João Pessoa, meus amigos, sintetizava em si mesmo a coragem do nordestino civilizado, enquanto a fereza do assassino é a mais abjeta expressão da bravura malsã do sertanejo. A morte que viemos chorar é, portanto, o triste resultado do encontro de duas civilizações: a do nordestino que o litoral já abençoou com o bálsamo da cultura europeia, guiada no dorso do oceano até seus olhos, seus ouvidos, para ilustrá-lo, escamá-lo, poli-lo, e a do nordestino ainda rude, retardatário, jagunço da semisselva de seu coração quase bárbaro.”
A multidão, emocionada, rebentou em aplausos:
“Muito bem! Muito bem!”
“Viva Maurício!”
Após uma pausa medida, ele retomou:
“Entre essas duas civilizações, o cadáver do líder paraibano é o marco divisório, a fronteira entre as duas correntes do Brasil. A da cultura que dirige; a da incultura, que fermenta. Mais grave ainda, cidadãos, é ver a supercultura social, o governo, colocando-se por trás do sertão jagunço, atiçando as armas bárbaras contra a lei!”
“Apoiado!”
E novas palmas ecoaram, contidas apenas a um gesto do próprio orador:
“Singular destino o desse herói! Ele, que relutou em conspirar, que desejava apenas a justiça, foi encurralado pelo bloqueio federal e dos estados vizinhos, sem armas capazes de resistir à jagunçada que o presidente da República mandou se rebelar contra ele!”
Meu orgulho ao assistir àquilo, embora fácil de entender, é bastante difícil de explicar. Apesar de todas as mágoas, o carisma de meu pai incidia sobre mim, irresistível e indelével. Mas, aquele dia no cais, não só eu me rendi à sua oratória inflamada:
“A democracia não pode ser apenas uma palavra. Seus mecanismos fundamentais têm de estar em ação para ela existir! Ajoelhem-se, cidadãos, e deixem passar o cadáver deste Cristo do civismo. Mas ergam-se depois, para ajustar contas com os judas que o traíram. Morrei por este homem que por vós morreu!”
Mais uma vez incitava o povo à revolução, agora nas barbas da polícia:
“Vós, gaúchos e mineiros, vinde cumprir a vossa promessa! A oligarquia nacional roda no eixo conservador paulista!
O povo está disposto a morrer pela liberdade! Do que o povo, do que os proletários precisam é ouvir e ver, com sinceridade, uma realidade que já vai surgindo em contornos definitivos. A modernização das leis repressivas e do autoritarismo, iniciada por Bernardes, garantida e garantia de Washington Luís, continuará com Júlio Prestes. Não importa que tenham mudado a máscara do Catete, uma vez que a consciência de grupo e de classe ali continua, em seu nome e no da banca internacional, a obra de adiamento, cerceamento e sufocamento dos direitos e dos ideais de toda uma geração!”
A multidão se agitou no porto, chiando feito uma gigantesca cigarra. Bem nessa hora, um sujeito imenso parou na minha frente, tapando toda a cena. Esgueirei-me, pisando no pé de um vizinho e dando uma cotovelada involuntária em outro. O discurso não demorou a prosseguir:
“No Brasil, oprimido, a questão social está tão viva e é tão real que mesmo a revolução, quando vitoriosa, mal poderá conter suas imposições: a instituição de leis que protejam o trabalhador, os direitos do cidadão mais carente e o fim da mentalidade policial dos governantes!”
“Muito bem!”, ecoou a multidão, com aplausos frenéticos.
“A revolução deve evoluir racionalmente, do tipo das revoluções meramente políticas para o grande tipo das revoluções sociais. Washington Luís preside o epílogo do movimento político e abrirá o prefácio do movimento social no Brasil. O duelo entre a nação e os políticos profissionais prosseguirá cada vez mais rude até lá.”
A multidão ressoava, com um rumor profundo, de algo muito grande, ao mesmo tempo em movimento e estático, somatório de aplausos, gritos, assobios, comentários, palavras de ordem, punhos erguidos, palmas, passos, sussurros, chapéus voando, vento batendo, ultimatos e desafios. Do meio da massa, surgiu apenas uma voz dissonante, de um delegado auxiliar, que aos berros procurou conter os ânimos:
“Senhores! Senhores! Somos todos brasileiros! Como brasileiro, peço que obedeçam às autoridades.”
Uma vaia colossal abafou-o imediatamente. Maurício fulminou o intrometido com total descaso, e partiu de onde estava:
“A morte de João Pessoa não é um crime comum, é um crime a serviço de um mandatário. Mas façamos com que ela seja também o polo que nos falta para a sublevação e a insurreição nacional! A República de 1889 precisa acabar para que surja outra, mais própria à liberdade, à democracia e à justiça social!”
A multidão, eletrizada, subitamente tomou a dianteira do cortejo e deu um passo em direção à avenida Rio Branco. Na carreta, Maurício sorriu, de braços abertos. Os soldados que barravam aquela passagem, muito compenetrados, tentaram demonstrar frieza, mas até seus cavalos sentiram o avanço da massa, relinchando e tentando desobedecer à formação da tropa. Como que do nada, nas costas do povo, surgiram mais soldados, e as outras duas saídas da praça foram fechadas. Uma corneta soou, com as ordens de “sentido” e “preparar” silenciando o cais. Ninguém podia acreditar. Os policiais montados desembainharam as espadas, a infantaria engatilhou as armas e apontou-as contra a multidão. Esta continuou paralisada, ouvindo a respiração forte dos cavalos. Assustado, usei o capô de um automóvel para me proteger.
Meu pai, em pé sobre a carreta, evidentemente subestimara a determinação das autoridades. Insuflara a multidão e agora estava a um passo de provocar uma chacina, cuja lista de vítimas ele próprio tinha muitas chances de integrar. Pensando rápido, ele se ajoelhou perante o esquife de João Pessoa e pediu, com sua voz escura:
“População carioca, enterremos em paz este herói!”
Recebeu como resposta um grito de apoio, mas o grito veio tão forte que denunciou o quanto estava desencaixado da intenção. O orador precisava recuperar o controle sobre a multidão, e rápido. Meu pai desandou a falar, numa tentativa meio desesperada de encaixar um golpe de retórica capaz de acalmá-la:
“Precisamos aguardar melhor oportunidade para a desforra!”
“O Exército virá em socorro do povo, e vencerá em seu nome!”
“Ainda não estamos preparados para a revolução! Precipitar as coisas é favorecer o regime dos oligarcas!”
A multidão, entretanto, continuava recolhendo pedaços de pau, correntes e pedras. Se ela decidisse mesmo forçar passagem até a avenida Rio Branco, enfrentando as tropas, fatalmente os políticos presentes e os familiares de João Pessoa teriam de segui-la, pois qual o valor simbólico de um líder enterrado sem multidão? Maurício, pressionado, tentou mais uma vez impedir o confronto:
“Companheiros, estes soldados apenas cumprem ordens. Estão sujeitos aos castigos das autoridades tanto quanto nós!”
E mais uma:
“É apenas uma questão de tempo! Por hoje, cidadãos, enterremos o herói em paz!”
Nada parecia funcionar. Então, num arriscado lance de gênio, ele trocou de interlocutor, pegando a todos de surpresa:
“Soldados da pátria, estejam conosco no dia em que nos revoltarmos contra a política que matou João Pessoa!”
A multidão, de repente, estourou em aplausos, risos e urros de patriotismo. Deu até vivas aos soldados, que ficaram atônitos por um instante, mas depois também esboçaram um sorriso. Fica difícil fuzilar uma multidão enquanto ela está te aplaudindo. Não recuaram um milímetro, mas pararam de avançar contra o povo, cuja prontidão para a violência diminuiu.
Tendo conseguido o improvável, Maurício vislumbrou a chance de conseguir o que até minutos antes seria impossível:
“Façamos o cortejo permitido pelas autoridades, como bons brasileiros, mas que ao nosso lado marchem as forças públicas da nação. Não para nos vigiar, não para tolher nossas homenagens, mas cumprindo o trajeto para servir ao eminente governador como sua guarda de honra. As espadas, antes desembainhadas contra o povo, reluzirão agora, como escoltas do seu herói!”
“Viva Maurício de Lacerda!”, gritaram de todos os lados.
O cerco policial se abriu na direção pretendida pelas autoridades. Para lá se encaminhou a multidão, lenta e pacificamente. A carreta voltou a rodar, levando meu pai e o cadáver de João Pessoa em triunfo, sem confrontos, sem derramamento de sangue, e com escolta policial, até chegar aqui no Cemitério São João Batista.
***
A partir dali, todos os quartéis da capital federal entraram em prontidão.
O quartel-general do Exército foi guarnecido com grande número de sentinelas. Em vários pontos da cidade, montaram-se piquetes de cavalaria. A vigilância tomou a Central do Brasil, onde policiais fiscalizavam a entrada e a saída de cada um. Eu havia crescido ouvindo os adultos à minha volta discutirem a revolução, e assistira-os destruindo a própria vida em seu nome. Dessa vez ela parecia realmente ter chances de vencer.
Na imagem muito comum da época, e imortalizada pela biógrafa de um dos líderes civis do movimento, os revolucionários dividiam-se em dois grandes rios: o que nascia no Rio Grande do Sul e subia em direção a São Paulo, e o que, já dono da Paraíba, avançava por todo o Norte e Nordeste do país. A guerra civil começara no dia 3 de outubro, em Porto Alegre, e estourou no Recife com um dia de atraso, provavelmente por falha de comunicação entre os revoltosos. As duas cidades foram tomadas em pouco mais de 24 horas de combate. Em relação a Minas Gerais e ao Rio de Janeiro, a ordem do comandante Góis Monteiro era esperar, pois em ambos os estados o governo fortificara suas posições. Em Minas, apesar da pouca penetração militar, o governador e o establishment político eram a favor da revolução, e de certa forma, como dissidentes do regime anterior, davam legitimidade ao levante. No Distrito Federal, o caso era mais delicado, já que, além de concentrar forças militares, as forças políticas eram ali ferrenhamente contrárias à queda do regime oligárquico.
Pelo Brasil afora, seguiram-se 21 dias de combates, expectativas e apreensões. Com uma força surpreendente, embora muito anunciada, os tenentes foram rebelando quartéis em todo o país, mobilizando efetivos cada vez maiores, desautorizando cada vez mais comandantes do alto escalão, ganhando apoios e controle sobre as capitais e o território de vários estados, entre eles Santa Catarina, Paraná, Pernambuco, Bahia e Espírito Santo.
Muitos povos mediriam apenas em litros de sangue o heroísmo da empreitada, mas nós, brasileiros, por sorte, não somos tão literais. Os combates mesmo, não sei se foram tantos, ou tão sangrentos. Nossos conflitos armados costumam ser decididos um pouco por contagem de pontos. De um lado e de outro, os militares fazem o chamado “exame de situação”, perguntando aos adversários: “Quantos tanques você tem? Quantas balas e quantas horas de munição você tem?” Quem tiver mais já ganhou! Alguém pode achar que isso é uma leviandade dos nossos generais, mas estará equivocado, pois os três principais objetivos do Exército são, sempre: evitar a guerra civil, manter a própria unidade e, por fim, morrer e matar na dose estritamente necessária. Um conflito prolongado inviabilizaria tudo isso.
No Rio de Janeiro, durante essas três semanas, enquanto o resto do país virava de cabeça para baixo, a força quase esmagadora do cotidiano ainda criou uma ilusão de normalidade, para quem quisesse acreditar. Contida pelo governo a propaganda subversiva, posta a vigilância nas ruas, as casas de diversão tiveram frequência normal, os cafés e lugares públicos funcionaram como sempre, até mais alegres do que o normal. Algumas fisionomias sobressaltadas, alguns comentários receosos, mas nada que evidenciasse tamanho solavanco na história nacional. Lá em casa, com nosso pai escondido em algum bunker rebelde, acompanhávamos as notícias com volúpia, torcendo por ele e pela vitória, que coroaria vinte anos de atividade político-revolucionária.
Finalmente o exército tenentista chegou às bordas do Distrito Federal. O presidente agora partia para o combate, na esperança de um verdadeiro milagre militar, ou renunciava ao cargo de uma vez. Se não fizesse nem uma coisa nem outra, acabaria derrubado por seus próprios comandantes militares. Dentro do Palácio do Catete, Washington Luís, em reunião com seu Estado-Maior, exigiu que se contra-atacasse a coluna rebelde com força total. Para qualquer despesa que se fizesse necessária, obteve uma garantia de crédito no Banco do Brasil, de mil contos de réis. Os comandantes decidiram entregar a tarefa ao 1o Regimento de Cavalaria, apoiado pelo 1o Grupo de Artilharia Pesada e pelo 1o Regimento de São Cristóvão. Mas, exatamente por fazerem o “exame de situação”, muitos militares de alta patente, do Exército e da Marinha, a despeito da determinação presidencial e do Estado-Maior, iniciaram um esforço para evitar a sangria inútil. Aumentou a pressão pela renúncia do presidente, e começaram as defecções.
Boatos correram a cidade, e a multidão se juntou fora do palácio, esperando a queda do regime. A parte da população que o defendia ficou quieta. A vigília se estendeu por toda a noite. O suspense acabou às sete da manhã do dia 24 de outubro: Washington Luís estava deposto. Quando a notícia chegou lá em casa, vesti o uniforme do Colégio Pio Americano, a coisa mais próxima de um uniforme militar que eu tinha à mão, arranjei um talabarte, para fingir que carregava uma espada, e saí às ruas, disfarçado de tenente.
Encontrei uma festa da qual tomavam parte homens, mulheres, senhoras idosas, gente que nunca tinha se ocupado com política na vida, até criancinhas de colo! Tremulava por todos os lados a bandeira nacional, e também os lenços vermelhos, símbolo da revolução. Havia música, as pessoas gritavam, cantavam hinos patrióticos, sopravam cornetas, batiam panelas, disparavam sirenes. Vi passar um grande boneco de papelão com a cara do presidente deposto, e ajudando a carregá-lo estava um amigo de colégio. Ele descendia de alemães radicados numa colônia próxima a São Borja, cidade natal de Getúlio. Seu pai, portanto, defendera ardorosamente a candidatura do governador gaúcho à Presidência da República, assim como agora apoiava sua liderança revolucionária. Trocamos um abraço efusivo, e ele me perguntou, quase aos gritos:
“Quer vir com a gente?”
“Mas para onde vocês estão indo?”
“Para a avenida Atlântica, está a maior festa lá! Washington Luís ficará detido no Forte de Copacabana, até partir para o exílio, e a multidão está se juntando para vê-lo chegar.”
A multidão nos empurrava para a frente. Pegamos carona num caminhão, com boneco e tudo. Durante o percurso até a praia, vi o povo inebriado de felicidade. O que ninguém na multidão sabia, eu tampouco, era que não havia sido o alto-comando revolucionário a derrubar o presidente. Quem o derrubou foi uma junta militar independente, formada por dois generais e um almirante, a autointitulada Junta Pacificadora. O povão nem mesmo ficou sabendo que o alto-comando revolucionário e a Junta passariam os dez dias seguintes negociando os termos da passagem de poder a Getúlio. Ele assumiria o Governo Provisório, com plenos poderes, somente no dia 3 de novembro.
Quando chegamos a Copacabana, a apoteose era total. Os aviões iam e vinham no céu, fazendo vibrar o patriotismo que desfilava a pé na avenida Atlântica. Aqui e ali, muito aplaudidos, passavam retratos de Getúlio, carregados pelos transeuntes. Mulheres distribuíam rosas vermelhas, lenços vermelhos, bandeiras vermelhas. À passagem de carros e caminhões militares, conduzindo praças revolucionários, todos com um laço também vermelho no fuzil ou na farda, o povo explodia de entusiasmo:
“Viva o Brasil! Viva a revolução! Viva João Pessoa! Viva Getúlio!”
Civis e militares viviam um momento da mais completa confraternização. Desde a Proclamação da República, nunca voltara tão forte aquele sentimento de identificação entre o Exército e o espírito de mudança nacional, nem mesmo em 1922 ou 24. Quando finalmente vencemos a multidão e nos aproximamos do Forte de Copacabana, para onde todos convergiam, eu e meus amigos sentimos um movimento geral de curiosidade à nossa volta. O povo calou-se por instantes.
“É Maurício!”, alguém gritou perto de mim.
Quando olhei, era meu pai chegando, em pé no banco de trás de um conversível. Sua fisionomia estava alegre, mas se via, por trás do sorriso, o cansaço e o abatimento físico. A massa abriu passagem, com alegria:
“Viva Maurício!”
O automóvel estacionou próximo aos portões do forte. O povo pediu, em altos brados, que discursasse o Tribuno do Povo. Meu pai, entretanto, limitou-se a sorrir, enquanto dirigia um cumprimento às pessoas e acenava com as mãos. Como toda a multidão, aguardaria a chegada de Washington Luís. Eu me despedi do meu amigo, dos outros rapazes, e fui em sua direção. Quando brotei diante do automóvel, saindo do meio da confusão, ele me deu um sorriso e abriu a porta. Agarrando minha nuca com as duas mãos, puxou-me para um abraço:
“Vencemos! Vencemos!”
A alguns metros de nós, o povo se agitou novamente, aos gritos:
“Viva a revolução!”
Centenas de braços se levantaram, agitando retalhos de pano vermelho contra o céu azul. Achamos que fosse o presidente derrubado, em seu primeiro passo rumo ao ostracismo. Logo a causa da turbulência se revelou outra. No interior de uma baratinha conversível, que rodava lentamente cercada pela multidão, dirigida por um homem de cabelos gomalinados, vinha em pé, no banco do passageiro, uma vênus revolucionária, de belo sorriso e corpo escultural, distribuindo entre os homens retalhos de seu vestido vermelho, àquela altura já no alto das coxas.
Da entrada do forte, fazendo-se ouvir graças a um megafone, um sargento pediu silêncio. Os comandantes da Junta Pacificadora haviam ordenado que o povo conhecesse a sequência dos acontecimentos que culminaram com a derrubada do governo constitucional. Claro que a versão por eles fornecida, sem ser mentirosa, não mencionava as dúvidas quanto aos seus objetivos, que, entretanto, ainda inquietavam o alto escalão revolucionário. A multidão se calou e ouviu o sargento com atenção:
“Na madrugada de hoje, por volta das cinco e meia, os generais do Rio que haviam aderido à revolução, no comando de alguns dos mais importantes contingentes militares na região, e ainda dizendo-se apoiados pelo 1o Regimento de São Cristóvão, enviaram um ultimato ao Estado-Maior, exigindo a deposição das armas legalistas. Recebido o documento, um coronel da Intendência da Guerra foi destacado para confirmar com o 1o de São Cristóvão seu apoio ao ultimato. A adesão foi confirmada.
“Trancado em seu palácio, ainda assim o presidente Washington Luís decidiu lutar até o fim. Mas, sem o apoio de São Cristóvão, o Regimento de Cavalaria e o Grupo de Artilharia Pesada estavam derrotados antes mesmo de a luta começar. O comando revolucionário emitiu então o segundo ultimato. Nele, argumentava que a nação já vivia a guerra civil, em armas de norte a sul, cabendo ao governo dar o sinal para que cessasse a luta, voltasse a paz e, por fim, para libertar as energias necessárias à urgente reconstrução institucional. Washington Luís e as forças legalistas estavam obrigados, por espírito cívico e até mesmo por suas reputações pessoais, a entregar os destinos do país aos generais revoltosos e ao povo.”
A plateia apoiou ruidosamente os termos do manifesto:
“Viva a revolução!”
“Momentos depois”, continuou o oficial, gritando apesar do megafone, “as altas patentes da 1a Região anunciaram o fim da resistência. Em seguida, o presidente renunciou. Os revolucionários formaram um Conselho de Administração, para tomar conta dos dinheiros públicos. Enquanto isso, nos quartéis, as cores revolucionárias já podiam ser hasteadas, lado a lado com o pavilhão nacional.”
No fim do relato, a multidão explodiu em aplausos e gritos:
“Viva a República! Viva o Brasil!”
Após quase uma hora de espera, Washington Luís despontou no fim da rua. O povo recebeu-o com uma vaia terrível. Enquanto o carro ia passando, muitos o xingavam, a 1 metro de distância do seu rosto. Eu, fantasiado de tenente, fiz como todo mundo, acrescentando aos xingamentos um gesto obsceno.
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[1] Estamos em 1977, ano da morte de Carlos Lacerda.