“É assumido que uma pessoa da classe trabalhadora é ridícula – exceto quando dá sinais de ser demasiado próspera, e então deixa de ser ridícula e se torna um demônio” IMAGEM: COPYRIGHT © 2009 RALPH STEADMAN_ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA NEW YORKER
De uma classe a outra
Policial do Império Britânico na Birmânia, lavador de pratos na França, investigador da vida operária na Inglaterra e voluntário na guerra civil da Espanha – o caminho à esquerda de George Orwell
| Edição 42, Março 2010
Segundo dos três livros de não ficção de George Orwell dos anos 30, O Caminho para Wigan Pier é uma obra de transição. O primeiro, Na Pior em Paris e Londres, é um testemunho dos anos que passou entre mendigos, cozinheiros e garçons. O terceiro, Homenagem à Catalunha, conta a sua participação na Guerra Civil Espanhola.
Os livros podem ser tomados, a posteriori, como uma trilogia cujo fundamento unificador é a experiência direta com a vida dos pobres – fossem eles indigentes de Paris e Londres, mineiros do norte da Inglaterra ou trabalhadores espanhóis transformados em soldados. A trilogia também comporta uma progressão, uma trajetória que começa no individualismo de um moralista e termina no engajamento antistalinista.
Na Pior em Paris e Londres é apolítico. A simpatia de Orwell pela ralé é de caráter sentimental. O máximo que ele capta do sistema que a explora, ou a põe à margem do mundo do trabalho, é a descrição do funcionamento de um grande hotel parisiense: a rígida estratificação de funções dos trabalhadores na cozinha, e a burguesia apenas entrevista, do outro lado da porta, nos salões.
Já em Homenagem à Catalunha, a política é o nervo do livro. Orwell foi à Espanha para escrever sobre a guerra civil, e não para participar da luta. Ao chegar a Barcelona, sofreu o impacto da efervescência revolucionária: o tratamento igualitário (camarada no lugar de señor e señora), as lojas expropriadas, os prédios públicos cobertos pelas bandeiras vermelhas e negras dos socialistas e anarquistas, o desaparecimento dos automóveis particulares, as igrejas postas abaixo, a abolição da gorjeta.
“Foi a primeira vez que estive numa cidade na qual a classe operária estava na sela”, escreveu. Alistou-se então para defender a república socializante. Orwell, que via com desprezo as disputas entre partidos de esquerda, se dizia socialista. Na Catalunha, simpatizava com os anarquistas, mas concordaria em combater ao lado dos stalinistas e foi parar numa brigada organizada pelo Partido Operário de Unificação Marxista, o POUM, liderado por um ex-trotskista. Numa trincheira, levou um tiro que lhe atravessou a garganta e saiu pela nuca. Não morreu por pouco e, enquanto convalescia, aprendeu à força o que é a política num momento de aceleração da história: violência, mentira, luta de vida e morte por interesses materiais e poder.
De um lado, estavam os fascistas, apoiados pela Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini. De outro, a frágil república burguesa, ameaçada pelo ímpeto igualitário dos trabalhadores e dependente das armas enviadas pela União Soviética de Stálin. Perseguido pelos espiões e agentes stalinistas, que transformaram o partido comunista catalão num aparelho assassino, Orwell acompanhou de perto a dizimação do POUM. O partido foi colocado na ilegalidade, amigos seus foram torturados e mortos, e sua própria vida correu perigo.
OCaminho para Wigan Pier (que será lançado neste mês pela Companhia das Letras) fica a meio caminho entre a compaixão pelos indigentes de Na Pior em Paris e Londres e o comprometimento político de Homenagem à Catalunha. É um meio caminho dividido ao meio. A primeira parte é fruto da convivência de dois meses de Orwell com operários do norte da Inglaterra, numa situação de enorme desemprego. Nela predomina a observação meticulosa, a descrição objetiva (mas furiosa) de uma condição de vida atroz. A segunda é uma análise da estrutura e dos preconceitos de classe britânicos. Confessional e idiossincrática, a análise serve de base para um ataque (também furioso) contra os políticos socialistas, que, teoricamente, deveriam organizar os operários contra a exploração.
Mesmo tendo sido feito por encomenda, é um dos seus livros mais pessoais. Ele é fruto do projeto literário e existencial – duas dimensões inextricáveis na obra de Orwell – que adotou ao voltar à Inglaterra em 1927. Durante cinco anos, trabalhara como policial na Birmânia, onde foi uma peça na engrenagem da colonização. Peça menor, mas significativa: aos 20 anos, era responsável por uma população de 200 mil “nativos”. Tomou tal horror ao imperialismo que decidiu duas coisas: abandonar sua classe social e ser escritor. Em O Caminho para Wigan Pier, ele mostra o entrelaçamento entre metrópole e colônia:
No sistema capitalista, para que a Inglaterra possa viver em relativo conforto, 100 milhões de indianos têm que viver à beira da inanição – um estado de coisas perverso, mas você consente com tudo isso cada vez que entra num táxi ou come morangos com creme.
Eis o Orwell moralista, focalizando um sistema econômico de alcance planetário pelo prisma da culpa individual. A seguir, é o Orwell profeta que pontifica:
A alternativa é jogar fora o Império e reduzir a Inglaterra a uma pequena ilha gélida e sem importância, onde todos nós teríamos que trabalhar muito duro e sobreviver, basicamente, à base de arenque com batatas. Essa é a última coisa que qualquer esquerdista deseja.
Mau profeta: o Império Britânico desmoronou e a Inglaterra, mesmo com a perda de importância, não teve de sobreviver a arenque e batatas. Quanto à afirmação de que nenhum esquerdista queria o fim do Império, ela só não é uma asneira completa porque havia, sim, pelo menos um intelectual de esquerda que não queria a independência da Índia e da Birmânia: George Orwell. Ele defendeu, até 1943, que birmaneses e indianos não tinham condições de se governar sozinhos.
Esse anti-imperialismo sui generis é condensado numa afirmação bestial de O Caminho para Wigan Pier: “Para odiar o imperialismo, é preciso fazer parte dele.” O que equivale a afirmar que os povos coloniais são incapazes de compreender, e detestar a contento, o sistema que os oprime. Só os imperialistas podem legitimamente odiar o Império. E apenas George Orwell, que esteve na colônia e foi parte da máquina imperial, estava apto a explicar, como escritor, que o preconceito social serve de cobertura ideológica para a dominação.
“Nasci em uma camada social que se poderia definir como a faixa inferior da classe média alta”, escreve ele em Wigan Pier. Em inglês, a categoria pende ainda mais para o cientificismo sociológico: lower-upper-middle class. Na vida real, isso significava ter nascido na Índia, de um pai funcionário público cuja família decaiu, conseguiu manter a fachada aristocrática, mas não a prosperidade. E de um avô materno francês que foi tentar a sorte na Birmânia depois que a fortuna familiar secou. Significava também ter cursado uma escola de elite, Eton, mas com bolsa. Nela, a inoculação dos valores tradicionais se confundiu com a consciência ardida de que era mais pobre que os colegas baronetes e, aluno medíocre e revoltado, seu futuro na sociedade era incerto. Desistiu de cursar a universidade, não achou seu lugar na colônia e retornou à Inglaterra.
O programa lítero-existencial de se livrar do esnobismo e do reacionarismo de classe e se tornar escritor implicou aprender, educar-se. A poeta Ruth Pitter, que esteve com Orwell quando ele regressou da Birmânia, lembrou: “Ele escrevia tão mal. Teve que ensinar a si próprio a escrever. Ele era como uma vaca com um mosquete.” Autodidata, leu de tudo, treinou a mão em centenas de resenhas, ensaios, colunas e artigos, manteve um diário minucioso e publicou romances mais ou menos autobiográficos: Dias na Birmânia, A Flor da Inglaterra e A Filha do Reverendo. A opção preferencial pelos pobres, contudo, rendia mais como assunto literário e estratégia de desenraizamento social. Por isso aceitou a proposta do Clube do Livro de Esquerda de ir a Lancashire e Yorkshire para investigar a onda de desemprego e narrar a vida operária.
A literatura de aproximação dos trabalhadores é fértil e multifacetada. Ela abarca A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, que Friedrich Engels publicou em 1845; os escritos do americano Jack London no início do século XX, que Orwell admirava; e os diários nos quais Simone Weil relata a sua vida como trabalhadora na Renault e na Alstom, nos anos 30, reunidos em A Condição Operária.
Em A Situação da Classe Trabalhadora, a pesquisa econômica, histórica e sociológica se sobrepõe à experiência do convívio com os trabalhadores, ainda que Engels tivesse um contato triplo com a classe operária: como pensador, político e patrão. Ele colaborou com Marx na elaboração da teoria comunista. Participou do movimento que criou a Internacional. E era filho de um industrial alemão que montou uma fábrica em Manchester, na Inglaterra, administrada por Engels durante décadas.
O Caminho para Wigan Pier tem um aspecto documental que por vezes lembra A Situação da Classe Trabalhadora. Mas, se influência houve (e é duvidoso que Orwell tenha sido influenciado por Engels, apesar de ter O Manifesto Comunista em alta conta), ela é imperceptível. O objeto de ambos é o mesmo, mas as abordagens são distintas. Toda a primeira parte do livro de Engels é uma história da formação do proletariado inglês à luz do desenvolvimento econômico e do progresso tecnológico. Já Orwell resume essa história de maneira sumária, caricatural mesmo:
Colombo atravessou o Atlântico, as primeiras locomotivas a vapor entraram em movimento, os ingleses resistiram firmes sob as espingardas francesas em Waterloo, os salafrários de um olho só do século XIX louvavam a Deus e enchiam o bolso; e, assim, tudo aquilo veio dar nisto – nestas favelas labirínticas, com cozinhas escuras lá no fundo e gente velha e doente rondando como um bando de besouros negros. É uma espécie de dever ir a esses lugares, vê-los e cheirá-los de vez em quando – especialmente sentir o cheiro deles, para não nos esquecermos de que eles existem; embora talvez seja melhor não nos demorarmos muito tempo por lá.
O andamento rápido, de teor panfletário, desemboca no “dever” moral de cheirar a gente animalizada, os “besouros” que são produto da civilização industrial.
Alguns trechos de Wigan Pier ecoam O Povo do Abismo, livro de 1903 no qual Jack London descreveu a vida da gentalha de Londres, e que Orwell leu quando estava em Eton. Como Orwell, o americano viveu em pensões e asilos repugnantes e dormiu na rua para descrever por dentro a desgraça social.
O segundo capítulo de O Caminho para Wigan Pier, que trata dos trabalhadores nas minas de carvão, é um testemunho infernal dos porões da sociedade industrial. As descrições do calor demoníaco, da fuligem que cola na pele e tapa os poros, da barulheira incessante, do esforço desmesurado e mecânico, dos desmoronamentos, da necessidade de andar quilômetros agachado se sucedem sem pausa. A acumulação de detalhes, os cortes súbitos da terceira pessoa (objetiva) para a primeira (irada) resultam num painel pestilento:
Os subterrâneos onde se escava o carvão são uma espécie de mundo à parte, e é fácil viver toda uma vida sem jamais ouvir falar dele. É provável que a maioria das pessoas até prefira não ouvir falar dele. E, contudo, esse mundo é a contraparte indispensável do nosso mundo da superfície. Praticamente tudo que fazemos, desde tomar um sorvete até atravessar o Atlântico, desde assar um filão de pão até escrever um romance, envolve usar carvão, direta ou indiretamente. Para todas as artes da paz, o carvão é necessário; e se a guerra irrompe, é ainda mais necessário. Em épocas de revolução o mineiro precisa continuar trabalhando, do contrário a revolução tem que parar, pois o carvão é essencial tanto para a revolta como para a reação. Seja lá o que for que aconteça na superfície, as pás e picaretas têm que continuar escavando sem trégua – ou fazendo uma pausa de algumas semanas no máximo. Para que Hitler possa marchar em passo de ganso, para que o papa possa denunciar o bolchevismo, para que os fãs de críquete possam assistir a seu campeonato, para que os ‘Nancy poets’[1] possam dar palmadinhas nas costas um do outro, o carvão tem que estar disponível.
E, inesperadamente, ele volta à superfície com uma flor na mão:
Seria fácil atravessar de carro todo o norte da Inglaterra sem se lembrar, nem uma só vez, que dezenas de metros abaixo da estrada os mineiros estão atacando o carvão com suas picaretas. E contudo são eles que estão fazendo seu carro andar. O mundo deles lá embaixo, iluminado por suas lâmpadas, é tão necessário para o mundo da superfície, da luz do dia, como a raiz é necessária para a flor.
O carvão foi substituído pelo petróleo, pelas hidrelétricas e pela energia nuclear. Mas a unidade de raiz e flor, negada pelo ocultamento das atrocidades do mundo do trabalho e a “naturalidade” da vida social, permanece a mesma. A atualidade de Wigan Pier é reforçada quando Orwell, depois de esmiuçar as favelas e casas dos mineiros, de expor a imundície, a superlotação e a insalubridade, registra:
Hoje ninguém acha admissível onze pessoas dormirem em um quarto, e mesmo os que têm uma renda confortável ficam vagamente perturbados ao pensar nas “favelas” – daí todo o falatório sobre “relocação dos moradores” e “desfavelização”, que ressurge de tempos em tempos desde a Primeira Guerra. Os bispos, políticos filantropos e sei lá mais quem gostam de falar caridosamente sobre a “desfavelização”, pois assim podem desviar a atenção dos males mais sérios e fingir que se você abolir as favelas, vai abolir a pobreza. Mas todas essas conversas levaram a resultados surpreendentemente insignificantes. Pelo que se pode ver, a superpopulação não diminuiu nada – talvez esteja um pouco pior do que há dez ou doze anos.
Se é certo que as condições de vida do proletariado inglês melhoraram, foi à custa da sua luta política e, também, da generalização e das mutações do capitalismo, que, por sua vez, fizeram surgir, na periferia do sistema – em Joanesburgo, Mumbai ou São Paulo – uma classe operária que vive em favelas tão ou mais horrendas que as percorridas por Orwell. No Rio de Janeiro, onde as favelas foram feitas para abrigar os soldados que voltavam da guerra em Canudos, há mais de 100 anos é recorrente a conversa de bispos, políticos filantropos e sei lá mais quem sobre relocação e desfavelização. Mas, para continuar com os termos de O Caminho para Wigan Pier, a situação dos bairros de trabalhadores talvez esteja um pouco pior do que há dez ou doze anos.
A atualidade brasileira também aparece quando Orwell diz que, na revista Punch, é “assumido como fato inconteste que a pessoa da classe trabalhadora, enquanto tal, é uma figura ridícula – exceto quando dá sinais de ser demasiado próspera, quando então deixa de ser ridícula e se torna um demônio”. Basta trocar o nome da publicação para constatar que a hostilidade de classe continua a mesma.
É difícil escrever sobre lugares e pessoas de pobreza lancinante. “Palavras são coisas muito frágeis”, diz Orwell em Wigan Pier. “De que adianta dizer ‘goteiras no teto’ ou ‘quatro camas para oito pessoas’? É o tipo de expressão por onde o olhar desliza sem registrar nada. E, contudo, quanta riqueza de miséria e sofrimento essas palavras abrangem!” Ele desenvolveu um estilo tremendamente eficaz. Suas frases, assertivas e certeiras, estão isentas de adereços e tremeliques sintáticos. Parecem de tal maneira coladas à realidade que sugerem ser sua própria expressão.
Num ensaio de 1946, Orwell defendeu que “é impossível escrever algo legível sem lutar constantemente para apagar a própria personalidade. A boa prosa é como uma vidraça”. Esse credo, no qual o escritor se limita a contar o que contemplou, apalpou e cheirou, é tão somente isso: credo. Em Wigan Pier, a ênfase em escrever sobre a sujeira, com páginas e mais páginas em torno do tema “a classe operária fede”, não decorre apenas do que ele percebeu na vidraça da realidade. Decorre também da sensibilidade pessoal do escritor. Dos recursos que decalcou do naturalismo francês (Orwell gostava de Zola). E também do seu afã de épater le bourgeois. É a sua personalidade que está em primeiro plano, e não a vidraça.
As biografias mais recentes de Orwell colocaram em cheque o credo do escritor-vidraça, que mostraria a realidade tal e qual ela é. Em Wigan Pier, ele tomou a precaução de alertar que, em Na Pior em Paris e Londres, “quase todos os incidentes ali descritos realmente aconteceram, embora em outra sequência”. Quase é eufemismo. Orwell tinha uma tia que morava em Paris quando ele viveu com mendigos e trabalhou como lavador de pratos em restaurantes. E não contou em Na Pior que recorreu a ela quando estava muito na pior. Alguns de seus escritos de não ficção mais elogiados, como “Um enforcamento” e “O abate de um elefante”, alteraram bastante a realidade. É provável que ele nunca tenha visto um enforcamento. E que matou um elefante em circunstâncias bem diferentes das que descreveu.
A publicação no ano passado dos Diários de Orwell, na Inglaterra, permite avaliar o quanto ele mudou a realidade para retratá-la. Em fevereiro de 1936, quando estava em Wigan, ele escreveu no diário:
Passando numa ruela de lado, horrível e sórdida, vi uma mulher ainda jovem, mas muito pálida e com o costumeiro olhar gasto e exausto, ajoelhada na sarjeta e enfiando um pedaço de pau num cano de esgoto de chumbo, que estava entupido. Pensei em como era terrível ter como destino se ajoelhar na sarjeta de uma ruela de Wigan, num frio de rachar, e cutucar um cano entupido. Nesse momento, ela levantou a vista e captou o meu olhar, e a sua expressão era a mais desconsolada que eu já vira; fiquei chocado porque ela estava pensando exatamente a mesma coisa que eu.
Em O caminho para Wigan Pier, a anotação vira o seguinte:
O trem me levou embora, através do monstruoso cenário de montanhas de escória de carvão, chaminés, pilhas de ferro-velho, canais imundos, caminhos feitos de barro e cinzas, atravessados por incontáveis marcas de tamancos. Já era março, mas o tempo estava horrivelmente frio e por toda parte havia montes de neve enegrecida. Enquanto passávamos devagar pela periferia da cidade, víamos fileira após fileira de casinhas cinzentas de favela saindo em ângulo reto das margens dos canais. No fundo de uma das casas, uma moça ajoelhada no chão de pedras enfiava um pedaço de pau no cano de esgoto que vinha da pia dentro de casa, e que devia estar entupido. Tive tempo de vê-la muito bem – o avental feito de pano de saco, os tamancos grosseiros, os braços vermelhos de frio. Levantou a vista quando o trem passou, e eu estava tão perto que quase encontrei seu olhar. Tinha a cara redonda e pálida, o habitual rosto exausto da jovem favelada de 25 anos que parece ter quarenta por causa dos abortos e do trabalho pesado; um rosto que mostrava, naquele segundo em que passou por mim, a expressão mais infeliz e desconsolada que jamais vi. Percebi no mesmo instante que nos enganamos quando dizemos: “Para eles não é a mesma coisa que seria para nós”, supondo que as pessoas criadas na favela não conseguem imaginar nada mais do que a favela. Pois aquilo que vi em seu rosto não era o sofrimento ignorante de um animal. Ela sabia muito bem o que estava lhe acontecendo – compreendia tão bem como eu que terrível destino era esse, ficar de joelhos naquele frio terrível, no chão de pedras úmidas do quintal de uma favela, enfiando uma vareta em um cano de escoamento imundo, entupido de sujeira.
O texto do livro é mais complexo e pungente que a anotação rápida no diário. Mas há uma diferença significativa. Orwell viu a moça ao andar a pé, e em ele se coloca num trem, que se distancia logo que cruzam o olhar. A modificação é de natureza dramática: ela sublinha a rapidez do encontro fortuito e a separação inapelável de dois seres humanos que, compartilhando a mesma consciência, estão separados pelas barreiras de classe.
É corriqueiro – e desejável – que um escritor reconstrua o que viu para obter determinado efeito. Em literatura, não existe a-vida-como-ela-é. Escrever numa prosa neutra, como Orwell preconizava, é um recurso estilístico como outro qualquer, e não a expressão última do real. E tampouco garante que o escritor escape dos preconceitos de sua classe ou de sua época. Em Wigan Pier, por exemplo, Orwell defendeu: “Você consegue sentir afeto por um assassino ou um sodomita, porém não consegue sentir afeto por um homem de hálito pestilento.” O que coloca assassinos e homossexuais numa mesma categoria, a de criminosos, e é homofobia.
Na segunda parte do livro, o convencionalismo é mais evidente. Sua atitude geral é considerar que estar junto com os operários, e não se importar com o cheiro deles, é mais sensato que teorizar a respeito do comunismo. Que a luta de classes é uma insensatez. Que basta gritar “Justiça e Liberdade!” que a igualdade social virá. E achar que a pregação socialista é coisa de esquerdistas da classe média, que ele define assim: “Vegetarianos de barbas compridas, comissários bolcheviques (metade gângsteres, metade gramofones), senhoras bem-intencionadas de sandálias, marxistas de cabelos desgrenhados mastigando preciosismos, quakers em fuga, fanáticos do controle da natalidade, carreiristas dos bastidores do Partido Trabalhista.”
O conjunto é uma argamassa de senso comum, anti-intelectualismo, empirismo epidérmico, simplificações reducionistas, antifeminismo e hostilidade aos militantes socialistas e à política em geral. O ponto de vista, outra vez, é moral e individualista.
O caminho de Orwell rumo à causa dos trabalhadores foi diverso dos de Friedrich Engels, Simone Weil e Jack London. Para Engels, ser filho de um burguês e patrão de fábrica não impediu que lutasse pelo comunismo na teoria e na prática, e que usasse o capital da família para ajudar Marx a sobreviver enquanto escrevia O Capital.
Filho de um pai que o abandonou e de uma mãe que tentou o suicídio, Jack London era de origem operária. Aos 16 anos, trabalhava dezoito horas por dia. Não conseguiu cursar a universidade por falta de dinheiro. Foi vagabundo, aventureiro, pescador clandestino e marinheiro. Tornou-se um escritor imensamente popular e se dizia socialista revolucionário. Não obstante, escreveu um ensaio racista sobre a China cujo título é “O Perigo Amarelo”.
Simone Weil foi professora, sindicalista, militante de esquerda – lutou na Espanha, com os anarquistas – e crítica do stalinismo. Filósofa de formação, viveu como operária e resistiu à ocupação nazista da França. Aproximou-se pouco a pouco da metafísica e do misticismo religioso, de pendor ascético e tingido de masoquismo. Morreu aos 34 anos, em 1943.
O caminho de Orwell foi tortuoso. Sua fuga da prisão de classe teve elementos de expiação por ter servido o imperialismo. E foi empenhada e honesta. Enquanto tantos escritores usaram e usam a literatura como ferramenta de alpinismo social, foi um espeleólogo que desceu aos subterrâneos da exploração. Viveu sempre de escanteio, doente e na pobreza. Só ganhou dinheiro com livros quando estava para morrer, aos 46 anos. Apesar de A Revolução dos Bichos e 1984 terem sido usados durante a Guerra Fria como propaganda anticomunista, terminou seus dias defendendo a revolução socialista.
Era sincera a sua afinidade com camponeses da Birmânia, rebotalhos de Paris e Londres, operários favelados de Wigan e trabalhadores em armas da Catalunha. Foi essa empatia que o levou, no batismo de fogo na Espanha, a se revoltar contra a traição da causa operária promovida pelo stalinismo, numa época em que boa parte dos artistas de esquerda enaltecia o ditador – vide Neruda, Jorge Amado, Aragon, Picasso e tantos outros. Empatia e revolta que são o pano de fundo de 1984, um marco da literatura política do século XX cujas invenções linguísticas – teletela, Big Brother – continuam em circulação, agora do avesso, na vidraça da indústria cultural.
[1] “Nancy poets” é uma expressão de Orwell para designar os escritores reunidos em torno do poeta W. H. Auden: Christopher Isherwood, Louis MacNeice, Stephen Spender e Cecil Day-Lewis. Como “Nancy boy” é gíria para homossexual, a expressão é pejorativa.
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