ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Depois da motosserra, o jardim
O ex-ministro Ricardo Salles cultiva moreias e amendoinzeiros em sua nova casa em São Paulo
João Batista Jr. | Edição 181, Outubro 2021
Ricardo Salles vive um impasse. O ex-ministro do Meio Ambiente, conhecido pelo descaso com que tratou a Amazônia, o desrespeito aos direitos dos indígenas e a tolerância com o garimpo e o desmatamento ilegais, pretende disputar o cargo de deputado estadual por São Paulo nas eleições de 2022. Sua prioridade número 1 é integrar o mesmo partido de Jair Bolsonaro, que ainda não sabe com qual legenda vai tentar a reeleição.
Se o presidente demorar muito para decidir, Salles guarda uma carta na manga: fechar com o Partido Progressista (PP) – a não ser que o PP paulista resolva apoiar a chapa de Rodrigo Garcia, atual vice de João Doria (ambos do PSDB), para governador. Nesse caso, o partido estará comprometido com a campanha presidencial de Doria (caso ele vença as prévias do PSDB), e Salles não quer de modo algum fazer parte de uma coligação em favor de um dos principais desafetos de Bolsonaro.
A saída será cair nos braços do PTB, comandado em São Paulo pelo empresário Otávio Fakhoury, um bolsonarista radical que defende o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que, aliás, o investiga por financiar disparos de fake news*. Ou então aceitar o convite do PSL, no momento a última das opções de Salles, que deu para si mesmo um prazo até dezembro para decidir qual será sua legenda.
O ex-ministro quer disputar a eleição para ficar mais tempo na cidade de São Paulo, onde nasceu, há 46 anos. Ele tem duas filhas do primeiro casamento, de 10 e 13 anos, e se casou em março com a modelo Gisela Estella, mãe de duas crianças. Salles está fincando os pés na capital, onde comprou, em 21 de janeiro passado, uma casa de dois andares no Jardim Paulista, em uma parte do bairro onde é proibido erguer prédios. É vizinho do Jardim América, uma das áreas residenciais preferidas dos milionários que vivem em São Paulo, como o empresário Joesley Batista e o banqueiro André Esteves. Nas ruas de ambos os bairros, numerosos ipês, jerivás e tipuanas formam agradáveis corredores verdes, preservados com esmero pela prefeitura e pelos moradores.
Salles pagou 3,1 milhões de reais pelo imóvel, dos quais financiou 800 mil em 361 parcelas em uma agência do Banco do Brasil da Avenida Faria Lima, segundo consta na matrícula nº 9.071 do 4º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo. Em meados de setembro, o local ainda estava em obras, mas não tinha na fachada nenhuma placa falando da reforma, como exige a legislação municipal.
A casa fica na Rua Honduras, a menos de 500 metros do Parque Ibirapuera, e foi construída em 1957 pelo arquiteto modernista João Kon, hoje com 88 anos, que residiu ali com sua família. A fachada principal tem um painel feito por Alfredo Volpi e no fundo da residência havia dois desenhos do artista plástico Waldemar Cordeiro, mas um deles foi destruído por um morador que resolveu erguer uma edícula.
A mulher de Salles entrou em contato com a família de Kon para pedir a planta e fotos antigas da residência, que foram cedidas. Ela também solicitou uma reunião do casal com João Kon, o que foi recusado. “Não queremos encontrar o seu marido. Temos profundas divergências morais e éticas com ele e não podemos aceitar a enorme destruição do meio ambiente da qual ele é cúmplice. Ficamos tristes ao saber o destino da casa”, escreveu o fotógrafo Nelson Kon, filho do arquiteto, que fez ainda um pedido, em tom sarcástico: “E diga a ele, por favor, para não estragar o jardim.”
Estella respondeu que irá conservar o jardim – e Salles também parece interessado na preservação. Ele agora costuma ocupar as manhãs visitando grandes floriculturas (que alguns paulistanos chamam de garden centers), em busca de mudas para a sua nova casa. Além disso, tem se envolvido pessoalmente no plantio e nos cuidados do jardim. Aos amigos, gosta de mostrar as mãos marcadas pelo trabalho com terra, adubo, pás e tesouras de poda. O ex-ministro já adquiriu moreias-brancas e amendoinzeiros.
O pedido de exoneração de Salles da pasta do Meio Ambiente, em 23 de junho, veio após dois inquéritos do STF nos quais ele é o principal investigado. Um deles se baseia em denúncias de Alexandre Saraiva, ex-superintendente da Polícia Federal no Amazonas, que acusou Salles de atuar para impedir a fiscalização dos agentes federais e do Ibama sobre a maior apreensão de madeira da história do país – 131 mil m³ de madeira em tora, o equivalente a 6 243 caminhões lotados com a carga.
Como Salles deixou o ministério e perdeu o foro privilegiado, a ministra Cármen Lúcia, do STF, mandou o inquérito para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, onde está em curso uma ação de conflito de competência para decidir se o caso correrá pela 7ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas ou pela 4ª Vara da Seção Judiciária do Pará. “Salles ultrapassou uma linha vermelha quando se reuniu com os investigados do inquérito aberto em janeiro e alardeou prazos para liberar as madeiras apreendidas”, diz Saraiva.
O ex-ministro está ainda mais enrolado em outro processo, cujo objetivo é investigar o envolvimento de agentes públicos na exportação de madeira ilegal. Salles e sua mãe, Diva Carvalho de Aquino, de quem é sócio em um escritório de advocacia, tiveram seus apartamentos revirados pela PF no fim de maio. O escritório dele no Ministério do Meio Ambiente também foi alvo de busca e apreensão, a pedido do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Salles esteve no local para acompanhar as diligências e soube que o responsável pela operação era o delegado Franco Perazzoni, chefe da Divisão de Repressão a Crimes Fazendários, de quem bateu à porta, pedindo acesso ao inquérito. O delegado não entregou.
Na operação, foi levado o computador pessoal de Salles, mas não o celular, como previsto. Duas semanas depois, a PF informou a Moraes não ter tido acesso ao celular – e Salles alegou que a entrega do aparelho não fora solicitada pelos agentes. Moraes fez então um despacho exigindo o celular. Salles entregou o aparelho, mas sem informar a senha para desbloqueá-lo, e argumentou que, seguindo a Constituição, não era obrigado a produzir provas contra si mesmo. O iPhone foi enviado para perícia. Procurada pela piauí, a assessoria de imprensa da PF diz que não pode informar se o celular já foi periciado, pois o caso ainda está em andamento.
Depois de instalados os processos contra Salles, os delegados no comando das operações foram punidos. Saraiva foi transferido para a PF de Volta Redonda, no Rio de Janeiro. Perazzoni, que estava prestes a ser promovido para o comando da Delegacia Regional de Combate ao Crime Organizado, não assumiu o cargo e, além disso, perdeu o comando da operação e a chefia da divisão onde atuava. O desmonte se completou com a exoneração do delegado que trabalhava ao lado de Perazzoni, Rubens Lopes da Silva, chefe da Divisão de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico, que foi rebaixado para um setor de direitos humanos da PF, com menos recursos e uma pequena equipe.
Antes de assumir o Ministério do Meio Ambiente, Salles nunca havia pisado na Amazônia. Nos seus dois anos e meio no governo, precisou ir à região 59 vezes. Só não foi ao Amapá. A avaliação do governo Bolsonaro é que ele, com seu modo truculento, agradava a turma do agro “bruto”, os produtores que vendem mais para o mercado interno. Os exportadores de commodities, por puro pragmatismo, torciam o nariz para o ministro por ele projetar uma imagem negativa do Brasil nas questões do meio ambiente.
As afinidades de Salles com Bolsonaro são conhecidas, mas o ex-ministro diz com orgulho que nunca aderiu à sandice do presidente de dizer que foi fraudada a eleição da qual Joe Biden saiu vencedor. Apesar do alinhamento do governo brasileiro com Donald Trump, Salles foi ignorado pelo ex-presidente, que sequer respondeu a um ofício de junho de 2020 em que o Ministério do Meio Ambiente manifestava interesse num acordo bilateral com os Estados Unidos referente à troca de créditos de carbono.
Paradoxalmente, o acesso ao governo norte-americano melhorou depois da posse de Biden, ocorrida em janeiro deste ano. Salles chegou a ter cinco reuniões online com o encarregado de assuntos de clima da Casa Branca, John Kerry. Trataram de um acordo para que os Estados Unidos repassassem 1 bilhão de dólares ao Brasil, que em contrapartida fiscalizaria com mais rigor o desmatamento e investiria em bioeconomia. O acordo não prosperou. Segundo Salles, por causa da imprensa, que criticou Biden por manter contato com o ministro de um governo de reputação radioativa.
Além de cuidar da campanha para deputado estadual e das plantas no jardim, Salles planeja retomar o trabalho de advogado em dezembro, quando encerra a quarentena obrigatória de seis meses após deixar o ministério. Hoje, graças ao governo, ele tem dois trabalhos: atua como membro dos conselhos administrativos das concessionárias dos aeroportos de Cumbica e Brasília. A piauí solicitou o valor da remuneração, mas nem a Infraero nem as concessionárias quiseram informar – por serem companhias privadas, as administradoras dos aeroportos não são obrigadas a divulgar a remuneração de seus funcionários.
* Em nota enviada à piauí em 12/11/2021, cerca de um mês após a publicação da reportagem acima, Otávio Fakhoury informou à revista que nunca defendeu, por quaisquer meios, o fechamento do STF.
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