Na casa soterrada pelo desmoronamento do morro moravam Josimar do Nascimento, a mulher Ana Kelly e os filhos, Tayane e Rian. A família está abrigada na casa da mãe dele, que foi invadida pela enchente mas continua de pé, e não pretende sair do bairro em que sempre morou FOTO: ANA CAROLINA FERNANDES_2014
Depois da tempestade
Como se vive em Austin, na Baixada Fluminense
Carol Pires | Edição 89, Fevereiro 2014
Dona Antônia acordou aturdida pelos gritos do vizinho. Ao levantar da cama, sentiu os pés ensopados. A casa estava tomada pela água da chuva. Lembrou-se imediatamente do marido. Por 35 anos, Antônia viveu em função dele, dos cuidados da casa e dos cinco filhos. Nos últimos cinco anos do casamento, José Rosa já não enxergava e desde então ela havia se habituado a também pensar pelos dois – procurava se antecipar às necessidades dele, tentando suprir a visão que lhe faltava.
O problema começou com um descolamento de retina. O casal, ambos já aposentados, pegava até três ônibus para ir de Nova Iguaçu ao Rio de Janeiro em busca de tratamento. Seguiram essa rotina por três anos. Antônia nunca se queixou, até que José Rosa constatou: “Estou cansado, melhor a gente desistir.” Desistiu, e logo depois perdeu a visão de vez.
No final de julho do ano passado, Antônia assistia à transmissão da visita do papa Francisco ao Brasil, mas os ouvidos estavam atentos aos ruídos no banheiro, de onde o marido demorava a sair. Quando ela conseguiu arrombar a porta, ele estava morto; tivera um ataque fulminante do coração. José Rosa Nascimento tinha 73 anos. Antônia Maria Pereira tem 67.
Na madrugada de 11 de dezembro, ao sentir a aluvião tomando a casa, ela logo imaginou como retirar o marido dali, mas ele já não estava. “Se ele estivesse, teria morrido no dia da chuva”, disse, dias depois, sentada na sala, onde quase tudo havia sido destruído pela enxurrada. Ainda pensava por dois. “Ele ia se assustar, gritar e cair na água, e eu não ia ter força para levantar.”
José Rosa e Antônia nasceram em João Pessoa, Paraíba. Ele foi o primeiro a partir para o Rio de Janeiro, em 1970, em busca de trabalho, e ela logo veio atrás, morta de saudade. A primeira casa própria, sem escritura porque construída num terreno irregular, foi a de número 58 da rua Bangu Beira-Rio, no bairro de Austin, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
A linha do trem que corta o bairro, projetada pelo engenheiro Charles Ernest Austin no final do século XIX, passa atrás do muro do quintal de Antônia. O rio Abel corre no meio da rua, a 5 metros do portão da casa dela. Por lei, nada pode ser construído a menos de 30 metros da beira dos rios, área de preservação permanente. Mas todos os vizinhos de Antônia têm o muro quase rente à margem. “Isso de enchente é de agora, nunca tinha acontecido antes. Aqui é muito bom de morar, sem violência, sem gente gritando ‘mata, mata’, só morre quem deve alguma coisa mesmo.” Antônia bebia água engarrafada doada pela igreja. “O filtro não tá dando conta. A água continua com gosto de pano velho”, disse. Ela se queixava de dor de barriga e coceira. Ao terminar de falar, jogou o copo plástico no declive do rio.
O leito do Abel já está tão assoreado que o rio mais parece uma tripa de água suja serpenteando por uma vala rasa. No entanto, na madrugada de 11 de dezembro, uma quarta-feira, a chuva caiu como uma penitência na Baixada Fluminense e o impotente riacho se transformou numa correnteza, invadindo as casas nas duas margens. Em um só dia, choveu na região o previsto para todo o mês.
Eram duas da madrugada quando um vizinho atravessou a rua nadando para resgatar Antônia e o filho dela, Cristiano, de 26 anos. Ela acordou primeiro e foi em busca do caçula: “Pelo amor de Deus, acorda, Cristiano! A gente vai morrer!” Como a calçada da frente estava tomada por uma torrente, o vizinho e Cristiano improvisaram uma escada no quintal e a ajudaram a passar para o 2º andar da casa ao lado, onde vários vizinhos pernoitaram. A chuva caía tão forte que era difícil conversar. Eles ficaram ali até amanhecer.
Por volta das seis da manhã ainda chovia quando todos ouviram um estrondo. “Foi um barulho assim, como se o mundo estivesse acabando. Na hora o pessoal já falou: foi a casa do Mazinho.” Mazinho é como Antônia chama o filho Josimar, nome que a mãe dela escolheu para o neto, mas que ela achava difícil pronunciar.
A primeira vez que vi Josimar José do Nascimento, o Mazinho, foi num sábado à tarde. Os braços cruzados e um dos pés apoiado no muro a suas costas, ele olhava o rio Abel correr à frente enquanto dois amigos jogavam conversa fora. A casa de Josimar ficava a 50 metros de onde ele estava, na mesma rua Bangu Beira-Rio em que mora sua mãe, mas na outra margem do riacho. Quatro dias antes, parte do morro nos fundos da casa havia desmoronado e a construção veio abaixo. O terreno ficou irrecuperável e tudo o mais foi soterrado – móveis, eletrodomésticos ainda por quitar, fotos de família, documentos e as economias – 150 reais guardados no armário, numa pasta de plástico.
Pouco depois de conversarmos, Josimar se despediu e foi esperar pelo ônibus que o leva à Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, onde trabalha como porteiro noturno – seu pai também era porteiro antes de se aposentar. Ganha 1 300 reais por mês, salário que o coloca na festejada classe C, se considerados os critérios de um estudo divulgado em 2013 pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Josimar, de 44 anos, vestia calça jeans e uma regata preta – doações dos vizinhos, de quem tomou emprestada até a cueca.
O porteiro já desaparecia de vista quando um dos amigos dele, funcionário dos Correios, comentou irônico: “É que na CLT não tem previsão de folga para quem perdeu a casa, né?” Olhando para o monte de ferragens e tecidos revirados, onde antes havia uma casa de dois quartos, sala, cozinha e banheiro, o carteiro apontou a tinta amarela do muro misturada no barro escuro: “Era a casa mais arrumadinha da rua.”
A chuva revelou a intimidade da família de Josimar. Quem passava percebia que eles tinham caprichado – trechos das paredes, pintadas em cores fortes, ainda se destacavam no barro molhado. No fundo do terreno, amontoavam-se as ferragens do fogão e da geladeira (só duas das oito prestações haviam sido pagas). Dava para ver que Ana Kelly, a mulher dele, tinha decorado a sala em tons avermelhados. O sofá foi parar na calçada. Sabia-se que os filhos do casal estavam animados para o Natal. Na única parede que restou de pé, lilás, onde antes era o quarto de Tayane e Rian, continuava pendurado um enfeite desejando “Feliz Natal”.
Em Austin, toda a vizinhança expunha a vida depois das primeiras chuvas de dezembro. A maioria das portas estava aberta, para facilitar a retirada do material encharcado. Jogos de sofá destruídos jaziam nas calçadas. Colchões haviam sido apoiados nos muros. Como o lixeiro só passa três vezes por semana e o lixo era muito, os moradores começaram a atear fogo nas pilhas de móveis arruinados e a cada esquina havia uma fogueira. O calor tinha secado parte da lama e a poeira vermelha dava ao local um ar embaçado de faroeste.
As ruas pareciam todas de terra batida, embora por baixo houvesse asfalto. O bairro de Austin foi construído literalmente em um buraco. Como fica em uma planície rodeada de montanhas, não só os rios transbordaram como a água da chuva correu morro abaixo com velocidade, deixando ruas e casas cobertas de argila. Nova Iguaçu foi o município mais afetado da Baixada. Austin, o bairro mais atingido de Nova Iguaçu.
No final de novembro, o estado do Rio de Janeiro já começou a ter picos de calor de 36 graus centígrados. O clima também estava úmido. É frequente nessa época do ano que a Zona de Convergência do Atlântico Sul – um canal de nebulosidade que corre da Amazônia em direção ao Sudeste do Brasil – carregue umidade para perto do litoral. No dia 5 de dezembro, uma quinta-feira, os dois fenômenos estavam no auge – fez 39,8 graus em algumas regiões e a umidade do ar estava em 71%. À noite, uma frente fria formada no Chile e na Argentina chegou ao Rio. Quando a massa de ar frio se chocou com o clima abrasador, formou-se uma chuva estrepitosa.
Vinte e quatro horas antes, o Instituto Nacional de Meteorologia, o Inmet, havia soltado um boletim anunciando o risco de chuvas fortes e alagamentos. Na capital e na Região Serrana do Rio há um alerta sonoro para que moradores em áreas de risco deixem suas casas. Na serra, o sistema foi instalado depois das chuvas que mataram quase mil pessoas em janeiro de 2011. Na noite do dia 5, o alarme soou em trinta comunidades fluminenses. Na Baixada, não existe esse dispositivo.
A chuva começou em Nova Iguaçu por volta das 19h30. Luiz Ricardo da Silva decidiu faltar ao supletivo e ir direto para casa. Chegou por volta das dez da noite, quando a chuva havia ganhado força, e encontrou o irmão Herverton, de 22 anos, e a mãe, Vera Lúcia, de 58, dormindo. Ele sempre estudou à noite
e costuma ir para a cama mais tarde. O barulho da chuva no telhado de zinco estava forte, ele não conseguia pegar no sono e decidiu ir à cozinha tomar água. De lá, escutou um estouro. A casa toda tremeu. Parte do morro atrás da construção estava desmoronando. A porta do quarto de onde acabara de sair, o único da casa, ficou bloqueada por dentro e não era mais possível entrar.
Luiz Ricardo saiu correndo na chuva, pedindo socorro. Os vizinhos buscaram enxadas e pás e entraram no cômodo por um buraco aberto pela lama na parede dos fundos. Conseguiram tirar Herverton, que estava com a cabeça ferida e tivera uma das pernas soterrada. Por duas horas tentaram encontrar a mãe debaixo da terra. “O primeiro que conseguimos ver foi a cintura dela aqui”, disse Luiz Ricardo, tocando na própria barriga. “Mas ela já estava morta.” Os bombeiros só chegaram quando eles já haviam resgatado o corpo.
Luiz Ricardo da Silva tem 26 anos e trabalha com manipulação de alimentos no Supermercado Zona Sul, em Copacabana. É um rapaz negro, alto, bonito e muito tímido. Fala o mínimo, sempre olhando para baixo e cutucando as unhas. Um mês depois da morte da mãe, ele ainda estava dormindo no chão da sala da pastora Valdenira Soares, da Igreja Batista Nova Jerusalém.
A pastora Valdenira contou que os dois irmãos bebiam quando ela os convenceu a frequentar a igreja. “Eles são meninos bons. Só têm altura, porque são muito tímidos. Só falam se você pergunta alguma coisa.” Ela disse que Vera Lúcia, a mãe, não era muito sociável porque tinha problemas mentais. Diz-se na vizinhança que ela enlouqueceu de amor quando foi abandonada pelo marido. Falava sozinha, mas nunca recebeu um diagnóstico. Luiz Ricardo tinha outra explicação. Disse que a mãe, ao abandonar o terreiro de macumba que frequentava, logo começou a falar sozinha. “Ela tinha essas coisas, mas era só isso. Cuidava da gente, fazia comida, lavava nossa roupa”, contou.
Desde os 6 anos ele morava na casa número 50 da rua Caminho das Flores, em Tancredo Neves, conhecido como Morro do Inferninho. O lugar faz divisa com Austin, mas já é parte de Comendador Soares, outro bairro. Vera Lúcia não trabalhava e Luiz Ricardo sustentava a casa. Ele disse ter investido 8 mil reais em melhorias no terreno nos últimos anos – ampliou os cômodos, construiu um quarto nos fundos do lote e fez uma sala do antigo dormitório. No quarto novo havia três camas de solteiro dispostas lado a lado – a do fundo era de Vera Lúcia; Luiz Ricardo ficava com a do meio, e o irmão dormia perto da porta. A casa não tinha escritura, mas eles pagavam 182 reais de IPTU por ano.
A Defesa Civil de Nova Iguaçu embargou quarenta casas na rua onde Vera Lúcia morreu. Com o laudo da interdição, ao longo de um ano Luiz Ricardo da Silva e o irmão terão direito ao aluguel social, uma ajuda de 500 reais por mês. Mas ele diz que não pretende sair do bairro. Quer limpar o terreno e reconstruir a casa. Comentei que era perigoso seguir morando ali. Olhando para baixo, ele retrucou: “Mas foi tudo que minha mãe deixou para mim.”
A solução para os deslizamentos de terra, sugeriu Luiz Ricardo, seria a construção de barreiras de concreto nas encostas. A vantagem é manter os moradores nos bairros a que estão apegados. Geólogos que trabalham para o governo do estado argumentam que isso pode sair mais caro do que erguer novas moradias, embora os municípios tenham uma dificuldade recorrente de encontrar terrenos bem localizados, com infraestrutura, para realocar pessoas que vivem em áreas de risco.
O vizinho de Luiz Ricardo, José Carlos Oliveira, 48 anos, também teve a casa interditada, mas se recusou a sair. Precisei esperar bastante até que ele atendesse a campainha, pois estava sozinho e se locomovia em uma cadeira de rodas havia quatro meses. Perdeu uma das pernas em um acidente de carro. José Carlos chegou há dezenove anos no Inferninho. Construiu a casa aos poucos, em um terreno invadido, mas há quatro anos a prefeitura lhe cobra IPTU, embora a rua não seja asfaltada nem tenha rede de esgoto. Todas as moradias ficam nos pés de uma encosta altíssima.
A casa de José Carlos, onde também moram a mulher dele, quatro filhos e um neto, é uma das maiores da rua – tem dois andares, três quartos, sala, banheiro e cozinha. No andar superior, a varanda ainda acusava o deslizamento que matou a vizinha. “No começo eu tinha medo de o morro desbarrancar. Toda chuva eu tirava um pouco de terra que caía, mas era pouquinho, dois, três carrinhos de mão de areia, mais ou menos.”
Voltei à casa dele com um geólogo que me mostrou como a rocha do morro, por excesso de sol e chuva, já tem comportamento de solo – esfarela fácil. “O caso da vizinha foi uma fatalidade. Agora já caiu todo o barro. Se cair mais, não pega mais na casa, não”, comentou José Carlos. Ele disse que só aceita sair se o governo lhe pagar em dinheiro tudo que ele gastou para construí-la.
Na noite de 10 de dezembro, uma nova frente fria vinda do sul causou o mesmo fenômeno de cinco dias antes. O pico de calor durante o dia foi de 38 graus. Às dez da noite, desabou um dilúvio na Baixada Fluminense, que continuou pela madrugada do dia 11, sem trégua. Naquela noite, em algumas partes do estado do Rio choveu 196 litros de água para cada metro quadrado. Como o solo ainda estava encharcado da chuva anterior, os efeitos foram piores.
Josimar José do Nascimento estava em seu trabalho de porteiro na Penha. Ana Kelly Pereira, mulher dele, dormia em casa com os dois filhos quando ouviu os berros de um sobrinho que mora ao lado. Deslizava muita lama do morro atrás da casa e ele estava preocupado. Ana Kelly e os filhos foram até a esquina, onde o irmão dela, Rafael, tem um salão de beleza, o Salão do Baba. Não podiam avançar porque o fim da rua, um declive, já estava submerso pelo rio Abel. Por oito horas, ficaram ali, impotentes.
Ana Kelly, conhecida como Novinha, é a sexta de oito filhos de pais alcoólatras. Trabalha como faxineira num prédio de seis apartamentos em São Cristóvão, na Zona Norte do Rio, três vezes por semana. É analfabeta e não tem carteira assinada. “Só tivemos paz quando meu pai morreu”, disse, ao explicar que a mãe vivia tão atormentada pelo marido que nunca fez questão de que os filhos fossem à escola. Ela recebe 540 reais por mês – menos que o salário mínimo do estado para a função de auxiliar de limpeza, que é de 809 reais. “Uma vez eu pedi para o síndico assinar minha carteira, mas ele disse que não podia porque era ilegal. Eu não entendi.”
Ana Kelly tem 37 anos e começou a namorar o marido quando tinha 16. Os dois cresceram em Austin. Aos 20, teve a primeira filha, Tayane, e foi morar com Josimar na casa da sogra, dona Antônia. Quando conseguiram dinheiro para construir uma casa própria, não mudaram de rua – invadiram o terreno quase em frente, do outro lado do rio.
Pouco antes das seis da manhã do dia 11, Ana Kelly sentiu a cabeça doer e a filha Tayane decidiu voltar para casa para buscar um remédio e a bolsa da mãe. Foi nesse momento que a avó escutou “um barulho como se o mundo estivesse acabando”. A adolescente mal saíra debaixo do toldo do Salão do Baba quando viu a própria casa ruir à sua frente.
Três dias depois, quando encontrei Josimar pela primeira vez, ele estava aborrecido antes de ir para o trabalho. Na semana seguinte, já parecia resignado. Sua mulher e os dois filhos estavam na cozinha da casa de dona Antônia, onde a família se abrigou, quando Josimar chegou para almoçar e armou um prato considerável de arroz, macarrão e bife. Terminou de comer tudo em menos de dez minutos e, olhando o prato vazio, brincou: “Acho que não vou comer, estou deprimido porque perdi minha casa.” Ana Kelly não achou graça e mandou que ele parasse de falar besteira.
Um outro dia, no ônibus a caminho do trabalho, Josimar disse que se não tivesse perdido tudo iria comprar um carro usado. “Nosso destino não é pagar prestação? Pagava a de um carrinho.” Ana Kelly às vezes demonstrava a mesma resignação. Perguntei por que ela achava que havia acontecido isso com a casa dela. “Tem gente que diz: não tem fúria que não seja divina. Então… acho que as pessoas estão muito perdidas, isso é um castigo, vamos assim dizer.” Argumentei que as pessoas da família dela não mereciam punição, e ela corrigiu: “Mas não foi só minha casa, não. Foi a da vizinha, das minhas amigas todas.” Ela insistia em perguntar se eu havia visitado outras casas destruídas. A aceitação parecia vir do sentimento de fazer parte de um coletivo que não conhecia outra realidade.
A chuva deixou 30% de Nova Iguaçu debaixo d’água e 2 300 famílias (11 500 pessoas) desalojadas. A Secretaria de Assistência Social contabilizou 284 famílias desabrigadas – aquelas que não têm sequer a casa de amigos ou parentes para se hospedar e dependem de abrigos improvisados. Na mesma situação ficaram outras cidades do Rio, de Minas Gerais, de São Paulo e do Espírito Santo. O drama de Nova Iguaçu é nacional e crônico. No final de dezembro, já eram 113 mil pessoas sem casa no Sudeste. É como se o mar de manifestantes que percorreu a avenida Rio Branco nos protestos de junho, no Rio, se visse sem casa do dia para a noite.
Seis pessoas morreram na Baixada Fluminense. No Espírito Santo, foram 23. Um total de 53 em todo o Sudeste. Dez pessoas continuam desaparecidas. Passada a chuva e o luto, o noticiário arrefece, mas as cidades continuam vivendo outras tragédias mais silenciosas. Um adolescente de 17 anos morreu, semanas depois das chuvas, com suspeita de ter contraído leptospirose, causada pelo contato com urina de rato nas águas da enchente. Um vendedor, às vésperas de celebrar seu casamento, perdeu todos os móveis que tinha ganhado de presente. Um restaurador de livros raros perdeu as encomendas de dezenas de clientes.
A última vez que o governo do estado do Rio tinha feito um projeto habitacional para reassentar famílias ribeirinhas foi depois das enchentes de 1988. Entre 1990 e 1992, o estado construiu 3 625 casas com financiamento do Banco Mundial, 6 010 com recursos da União e outras 2 569 com financiamento da Caixa Econômica Federal, no projeto Reconstrução-Rio. Por quinze anos, nenhum outro programa foi executado; ativeram-se a obras pontuais. Sem políticas públicas de habitação para famílias pobres, a ocupação desordenada das cidades – na beira de rios e encostas – continuou.
Os moradores de Austin alegam que o rio Abel nunca havia transbordado. Além de assoreados por lixo, muitos dos rios que cortam a Baixada também são poluídos por redes de esgoto improvisadas. Apenas 8% do esgoto de Nova Iguaçu, uma cidade de mais de 800 mil habitantes, são tratados; o resto é jogado nos rios. O posto de saúde de Austin, próximo à casa de Josimar, tem um cano de esgoto que escoa no Abel. O rio nasce na Serra do Mar, corta os municípios de Nova Iguaçu e Queimados, e deságua no rio Guandu, onde a água é então tratada para abastecer a cidade do Rio de Janeiro.
No trecho que passa por Queimados, o Abel já está canalizado. No leito natural a água corre mais lenta porque esbarra em vegetação, raízes, galhos, entulho. Quando as margens são cimentadas, o fluxo ganha velocidade. Se depois volta a passar por trechos assoreados, provavelmente o rio não terá capacidade de vazão e vai transbordar. No caso de Austin, os moradores alegam que aconteceu o contrário. O trecho do Abel que atravessa o bairro corre antes da parte canalizada em Queimados. Como o rio flui lento, não teria força para desaguar no fluxo veloz. Isso o teria represado, fazendo com que transbordasse ao receber a água da tempestade.
O engenheiro civil Saulo Rahal, responsável pela canalização em Queimados, explicou que a largura do canal pré-moldado é duas vezes maior que a do rio, “exatamente para dar vazão à água que chega”. “Depois das chuvas fizemos uma vistoria e eu encontrei, logo pertinho de Queimados, a 1 800 metros do canal, uns três sofás grandes, embaixo de uma ponte, impedindo a passagem de água. A quantidade de entulho que vi nessa calha deve explicar pelo menos um terço da água [do rio Abel] que ficou represada em Austin.”
Para canalizar a parte que lhe cabe do rio Abel, a Prefeitura de Queimados gastou 36,2 milhões de reais e reassentou 110 famílias que viviam às margens. Fez isso apesar de os rios da Baixada Fluminense serem de responsabilidade estadual, e não municipal, uma vez que cruzam várias cidades.
O mais recente programa estadual de recuperação dos rios da Baixada, o Projeto Iguaçu, foi criado em 2007, com previsão de limpar as bacias hidrográficas de Nova Iguaçu, Belford Roxo, Mesquita, São João de Meriti, Nilópolis, Duque de Caxias e o bairro carioca de Bangu. O dinheiro vem do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC federal. Estimou-se haver em torno de 10 mil famílias em situação de risco, das quais 3 500 foram realocadas na primeira fase do projeto, quando também foram retirados 4 milhões de toneladas de lixo e lama, além de 20 mil pneus dos rios – tudo ao custo de 450 milhões de reais.
A segunda fase, com orçamento de 464 milhões de reais, ainda não começou a ser executada. O objetivo é reassentar outras 3 500 famílias residentes em áreas de risco, além de seguir com a limpeza dos rios e construir diques para contenção das cheias. O trecho do rio Abel que corta Austin nunca foi canalizado. A cidade de Nova Iguaçu só será contemplada na terceira etapa do Projeto Iguaçu, que não tem previsão para começar.
Eleito em 2012, o prefeito de Nova Iguaçu, Nelson Bornier, do PMDB, reclama que o senador Lindbergh Farias, do PT, responsável pela cidade nos dois mandatos anteriores, não cobrou dos governos estadual e federal a liberação do dinheiro para a terceira fase do projeto. Antes de Lindbergh, o alcaide da cidade tinha sido o próprio Bornier. O problema das enchentes pede uma solução há muito mais tempo que a carreira política dos dois.
No dia 11 de dezembro, o prefeito Bornier decretou estado de calamidade pública em Nova Iguaçu. A medida abre caminho para que a cidade receba verbas emergenciais do estado e da União. Ainda assim, esse dinheiro demora a chegar. Demora ainda mais a gerar resultados. Somente em maio de 2013 a Prefeitura de Nova Friburgo, na Região Serrana, entregou as primeiras 50 casas para famílias que ficaram desabrigadas na tragédia de 2011.
Enquanto o problema estrutural não é resolvido, o recurso paliativo é pagar o aluguel social às pessoas expulsas por inundações e deslizamentos de terra. Em torno de 13 mil famílias recebem esse benefício no estado do Rio, o que consumiu 76 milhões de reais em 2013.
Para fazer jus ao amparo, a família precisa, primeiro, apresentar um laudo da Defesa Civil do município que comprove que a casa foi interditada. A Defesa Civil de Nova Iguaçu conta com dois engenheiros capazes de fornecer esses laudos. O secretário de Defesa Civil e Ordem Urbana da cidade, Luiz Antunes, conhecido como “Xerife”, explicava essa situação quando chegaram dois geólogos da Defesa Civil estadual que tinham sido requisitados por ele. Os dois disseram que não podiam ajudar porque só estavam autorizados a atuar em situações de emergência. “Mas a cidade inteira está em emergência!”, respondeu o secretário.
Enquanto o poder público não chega, várias redes autônomas vão se formando pela cidade – redes de solidariedade com pessoas dispostas a dividir o pouco que têm, e redes de disputa de poder, nas quais alguns estão interessados em tirar proveito desse mesmo pouco.
Três dias depois da segunda enchente de dezembro, um grupo de black blocs distribuía donativos na Vila Zenith, um sub-bairro de Austin, também à beira do rio Abel. Duas dezenas deles, vestidos de preto, alguns com panos cobrindo os rostos, separavam sacolas com comida, roupas e brinquedos, enquanto vários moradores esperavam na fila, alguns sem saber exatamente quem eram os garotos. Na hora de entregar a doação, um deles disse a uma moradora: “Isso não é da prefeitura nem de nenhum político. É independente, viu?” Ela assentiu e pediu para levar um segundo kit para um vizinho, “que é quem mais precisa, mas ele tem vergonha de pedir”.
O vizinho era um senhor negro e baixo, de 55 anos, com os olhos baços – consequência de uma provável catarata –, que estava embriagado. Um grupo de cinco black blocs e um repórter do Mídia Ninja entraram na casa dele com as sacolas de doações. Uma moça morena, de olhos verdes, perguntou: “A chuva levou o piso da casa do senhor?” “Não, sempre foi assim mesmo”, ele respondeu. O barraco, de não mais que 16 metros quadrados, tinha o chão de terra batida. Sobraram uma geladeira velha, agora queimada, e uma cama de casal enlameada. O documento de identidade dele foi embora com a correnteza.
Muitas pessoas que precisavam de ajuda em Austin já viviam problemas sérios antes de perder nas chuvas parte dos móveis ou suas casas inteiras. Uma senhora chorava na porta da Secretaria de Defesa Civil, inconsolável porque tinha ficado um ano na fila para tirar uma radiografia do pulmão do filho, que vivia doente, mas a chuva havia levado o exame. Uma outra senhora abrigada em uma escola vazia disse que dormia ali dia sim, dia não. Nos dias em que não dormia lá, passava a noite no hospital com a filha, que semanas antes tinha sido diagnosticada com câncer terminal.
Um rapaz contou que a filha tinha nascido com deficiência respiratória e estava na UTI desde que viera ao mundo, havia três meses. No dia seguinte, quando eu deixava a cidade, a irmã dele reconheceu meu carro e correu para me pedir dinheiro, segurando o atestado de óbito da menina. A bebê morrera naquela madrugada. Como os vizinhos haviam perdido tudo, ninguém tinha como ajudar a pagar o enterro, que custaria 900 reais.
Na esquina onde os black blocs distribuíam as doações, um grupo de vizinhas conversava no portão enquanto Kaliane Pereira tentava puxar a lama que havia tomado sua casa. Como muitos na rua, ela construiu uma barreira de cimento de 30 centímetros na porta de casa para evitar que a água da chuva entrasse. Como a enchente ultrapassou essa altura, a barreira impedia que a água saísse.
Kaliane está desempregada e o marido vende amendoim na praia em Rio das Ostras, na Região dos Lagos fluminense. Há uma fábrica em Austin e muitos dos seus moradores se mudam durante o verão para vender amendoim torrado, em porções divididas em cones de papel branco. Uma amiga de Kaliane se aproximou queixando-se de que o presidente da Associação de Moradores estava deixando os parentes dele escolherem o que quisessem antes de distribuir as doações recebidas pela única igreja católica do bairro.
Na Paróquia de São Sebastião, Ramon Paiva, um dos líderes do grupo jovem, estava feliz porque haviam chegado muitas doações, inclusive de pessoas que percorreram os 50 quilômetros do Rio a Nova Iguaçu para levar água, roupas e alimentos. Em contrapartida, ele contou que, dias antes, havia sido ameaçado porque estava ajudando bairros que eram currais eleitorais de uma certa pessoa, que preferiu não identificar. Ramon também disse que uma funcionária da prefeitura pediu para ser fotografada ao lado dos donativos recebidos pela igreja antes de entregar os colchonetes que haviam sido solicitados. Ramon não consentiu. A igreja recebeu apenas vinte dos 300 colchonetes que seriam necessários.
“Vamos levar essa comida aqui, mas eles não estão precisando só porque houve a enchente, não. Se você levar todo dia, todo dia eles vão estar precisando”, disse o motorista da Secretaria de Assistência Social de Nova Iguaçu, a três dias do Natal, enquanto transportava tomates e bananas ao bairro de Rodilândia. Na cidade, quase 58 762 famílias, correspondentes a 292 108 pessoas, recebem Bolsa Família. Isso significa que 36% da população de Nova Iguaçu carecem da ajuda (a média nacional é de 25% da população).
Os tomates tinham sido estocados no Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua. Lá, é possível ver tevê, dormir e lavar a roupa, mas ninguém pode ficar depois das seis da tarde. “Em Nova Iguaçu não temos tanto morador de rua nem muito usuário de crack”, disse Maria do Rosário Soares, diretora do Centro. “Agora aumentou um pouco por causa das Unidades de Polícia Pacificadora no Rio. Os bandidos fogem de lá para cá.”
Do Centro, os alimentos foram levados para a casa do vereador Fabio Macedo, do DEM, que iria usar o próprio carro para distribuí-los. Fabio é conhecido como Fabio Rodilândia. Assim são chamados muitos dos vereadores – no lugar do sobrenome, eles adotam o nome do bairro onde moram. Em Austin, os moradores disseram que as doações estavam concentradas na casa do vereador Jorge Luiz de Freitas Dias – Jorge de Austin, do PSDB.
Ele estava na porta de casa, um sobrado com o portão branco empenado pela enchente, mas lá não havia centro de doações algum. O que ele tentava coordenar naquele momento era para onde deveriam se dirigir primeiro as escavadeiras que recolhiam lixo e lama das ruas do bairro. Jorge de Austin esfregou os olhos azuis e disse: “Há dias que a gente está assim, dorme duas horas e vai trabalhar. Até os traficantes, que a gente que mora aqui há muito tempo sabe quem são, estão ajudando.”
Ele é um dos três vereadores eleitos por Austin, e é a eles que os moradores recorrem quando precisam de ajuda. A sede da Prefeitura de Nova Iguaçu fica a 15 quilômetros de lá – percurso que se faz em uma hora e meia em transporte público. O bairro, com 100 mil habitantes – uma cidade por si só –, não tem banco, só uma agência lotérica. Não tem hospital, só um posto de saúde. Há uma igreja católica e dezesseis evangélicas. O lugar até possui uma sede da prefeitura, onde deveria trabalhar um subprefeito. O prédio, porém, foi abandonado. Hoje, virou um lixão murado.
Na véspera do Natal, o dia amanheceu nublado em Austin. O bairro estava movimentado, as pessoas faziam suas últimas compras no mercado. Na frente da casa desabada de Josimar do Nascimento e Ana Kelly, as crianças soltavam pipa em meio à fiação. Paulo, o irmão de Josimar que mora na Rocinha, decorou com enfeites natalinos os pés de abacate, graviola e acerola que ficam em frente à casa da mãe, dona Antônia, onde a família estava reunida.
Depois que o marido morreu, Antônia perdeu a fome e ficou 12 quilos mais magra. Duas semanas depois da enchente, ela ainda reclamava de dor de barriga, o que a fez perder ainda mais peso. Na virada do ano, acabaria sendo internada com anemia. A casa dela já estava quase toda mobiliada outra vez. Prevendo novas enchentes, os filhos fizeram um pedestal com placas de cerâmica para colocar a geladeira. Uma amiga de Ana Kelly tivera a cozinha da casa soterrada por um deslizamento de terra e deixou a cama de casal com Antônia antes de ir morar com parentes. Josimar havia escavado os escombros da sua casa e conseguiu tirar de lá a televisão, que milagrosamente voltou a funcionar depois que ele a limpou. Como a parte superior do guarda-roupa despontava para fora da terra, ele também conseguiu cavar no lugar certo para recuperar a pasta onde estavam os documentos da mulher e os 150 reais das economias.
Os escombros da casa continuavam como no dia do desmoronamento. Os acostamentos das ruas ainda estavam cobertos da lama que os vizinhos haviam tirado de dentro das casas. A escavadeira da prefeitura foi lá um dia. Pouco antes de começar o serviço, o condutor recebeu uma chamada e foi atender outro lugar. Nunca mais voltou. A Defesa Civil só passou em frente à casa deles uma vez, mas ainda não havia retornado para fazer o laudo de interdição.
A despeito de tudo, o clima na vizinhança era qualquer coisa, menos triste. Josimar armou uma caixa de som na porta de casa, colocou um cd de clássicos internacionais da virada do século, e todos levaram cadeiras para as margens do Abel, apesar das moscas e do cheiro azedo do rio. Tomando cerveja, Paulo contou que fim de ano em Nova Iguaçu é sempre uma festa. “Mas agora está nublado, o pessoal fica preocupado de chover de novo.”
Um vizinho apareceu trazendo roupas que havia separado para Josimar. Contou que tinha chamado a Defesa Civil para arrancar a amendoeira que fica em frente à casa dele. Comentei que arrancar a vegetação aumentava o risco de assoreamento dos rios, mas ele argumentou que era melhor isso do que a árvore cair em cima da casa na próxima chuva. Dona Antônia pegou uma das roupas recém-chegadas, uma calça social preta, e foi fazer a bainha para Josimar, que ia perder a ceia de Natal porque dali a pouco tinha de ir trabalhar.
Ana Kelly decidiu passar no salão do irmão para escovar o cabelo e pintar as sobrancelhas antes que anoitecesse. “A gente sofre, mas não custa ficar bonita”, disse. “Eu não vou estar aí, você quer ficar bonita pra quem?”, perguntou Josimar, fazendo-se de enciumado. Antes de sair, ela apontou para o Salão do Baba, do outro lado da rua, onde também havia deslizado terra no quintal. “Meu irmão disse que eu posso fazer minha casa de novo ali. Decidimos aumentar a laje do salão e levantar duas casas, uma para mim e uma para ele.” Ela e Josimar cresceram no bairro. A família dos dois – mães, irmãos, primos – mora quase toda na mesma rua. Eles gostam de estar juntos e não querem viver em outro lugar.
O síndico do prédio onde Josimar trabalha deu mil reais para ele comprar material de construção para a casa nova. Dias antes do Natal, uma vizinha também ficou consternada e reuniu mais mil reais entre amigos para doar à família. “Um amigo me disse para eu não me iludir com aluguel social não, que isso aí, se eles derem, dão só por três meses”, explicou. Um pedreiro cobrou 3 500 reais para construir três cômodos, cozinha, banheiro e quarto. Ele e Ana Kelly não tinham o dinheiro, mas contrataram o serviço. Vão pagar à prestação. Ela voltou do salão com os cabelos lisos, bem a tempo de se despedir do marido, que ia para o trabalho vestindo a calça social nova. Quando Josimar sumiu de vista, voltou a chover.