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    Até o começo do século XX, em nome da higiene e da modernidade os cães de Istambul eram deportados para uma ilha, onde se viam condenados a devorar uns aos outros e a morrer de fome IMAGEM: CHARLES TRAMPUS_ABC FOTO

questões mínimas

Deus e o Diabo estão nos detalhes

Notas sobre a importância do desimportante

Marcel Cohen | Edição 134, Novembro 2017

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Episódios que ilustram o dito segundo o qual “o diabo está nos detalhes”, bem como seu contrário, “Deus está nos detalhes”. O primeiro é atribuído a Nietzsche, o segundo é uma interpretação da Parasha Mishpatim, uma das 54 seções da Bíblia hebraica, que cada ano são lidas na íntegra nas sinagogas. Segundo a leitura rabínica, a perfeição e a retidão dependem de todos os detalhes, inclusive dos mais modestos. Consta que o arquiteto Mies van der Rohe citava com frequência essa segunda fórmula. Mas vale lembrar que há vastos domínios em que nem Deus nem o diabo jamais teriam se manifestado, mesmo quando tudo parece ter suas marcas.

a) Em 1943, o pintor Michel Cadoret e sua mulher, amigos do escultor americano Alexander Calder, foram bater à porta do dr. Petiot, à rue Le Sueur, nº 21, no 16º arrondissement de Paris. A sra. Cadoret é médica. É também judia, boa razão para abandonar a Paris ocupada. Graças a suas relações, Petiot garante ao casal que providenciará passaportes falsos e passagens para a América do Sul. Como costuma fazer a quem o procura, aconselha-os a costurar dinheiro e joias no forro das roupas e levar apenas uma bagagem leve. No dia estipulado, bastará se apresentar em seu consultório.

Petiot se ausenta para pegar os formulários que o casal deverá preencher. A dra. Cadoret aproveita e se levanta de um salto. “Vamos fugir o mais rápido possível”, ela murmura para o marido, perplexo. Mas as coisas não estavam tomando o melhor dos rumos? Já na calçada, ela lembra ao marido que Petiot se diz cirurgião. Michel não teria prestado atenção a suas unhas? Estavam negras de sujeira. Um cirurgião jamais se descuidaria a esse ponto, mesmo se não exercesse mais a profissão, ela explica.

Até aquela data, 27 pessoas, todas atrás de passaporte e passagem, tinham sido expoliadas dos bens que traziam escondidos em suas roupas. As vítimas eram assassinadas no consultório da rue Le Sueur pelo suposto médico, que as incinerava em sua estufa a carvão.

b) Num romance póstumo, a escritora Irène Némirovsky menciona uma determinação da Kommandantur de Calais: nos dias de feira, os camponeses estavam proibidos de transportar frangos vivos de cabeça para baixo e com os pés amarrados, como é bastante comum no interior da França. As autoridades da ocupação julgavam muito cruel. Ao lado dessa proclama, um cartaz anunciava a execução de oito homens, a título de represália após um ato de sabotagem.

O escritor Alexandre Jardin, por sua vez, observa que, em março de 1943, um general da SS lotado na Polônia publicava um artigo violento no boletim interno da Ordnungspolizei, a polícia da qual ele era um dos comandantes. O general estava revoltado com o modo como eram encaminhadas para a Alemanha as vacas confiscadas. Os animais ficavam tão apertados nos vagões de gado – ele explicava – que vários morriam durante o transporte. Dali em diante, seriam passíveis de medidas disciplinares os membros da Ordnungspolizei que não tratassem com humanidade os bovinos.

c) Correspondente de guerra de 1942 a 1944, a fotógrafa americana Lee Miller foi uma das primeiras pessoas a entrar no recém-libertado campo de Dachau. Ela observa que, nas câmaras de gás, os próprios deportados acionavam a dispersão do gás Zyklon B ao girar as torneiras das duchas. Com isso, os SS podiam afirmar que não haviam participado dos crimes.

d) Monique, mulher de Robert Antelme, o autor de A Espécie Humana, contava o seguinte episódio. E acrescentava: “Robert era sempre assim.”

No meio de uma entrevista, seu marido declara a um jornalista que, na impossibilidade de mudar o mundo, cabe a cada um – e em especial aos sobreviventes dos campos de concentração, como ele – mudar as pequenas coisas a seu alcance. Palavras que soaram muito obscuras ao jornalista.

Algumas semanas mais tarde, os dois homens se encontram num café. Pedem dois expressos. Quando o garçom chega com as xícaras, a colherinha de Antelme cai no chão. O garçom a recolhe e corre para apanhar uma limpa no balcão.

“Não precisa”, exclama Antelme, “eu sempre tomo sem açúcar!”

Mas o homem já vai longe e não o escuta. Quando retorna, o jornalista vê o escritor mergulhar a colherinha na xícara e mexê-la ostensivamente.

“Eu pensei que você tomasse sempre sem açúcar”, observa o jornalista.

“É verdade”, responde Antelme, “mas não quero que o garçom pense que se esforçou à toa.”

e) Em 1977, quando o poeta Edmond Jabès se aposentou, sua mulher, Arlette, ainda trabalhava. Pela primeira vez em décadas ele se viu sozinho em casa, com todo o dia pela frente para se dedicar a seus trabalhos pessoais.

Tão logo se instala à escrivaninha, percebe uma pequena mancha no carpete. Levanta e sai à procura de um trapo e de um detergente. A mancha sai, mas quando ele está para se sentar, percebe que ela foi substituída por uma pequena auréola branca. Levanta de novo e volta com um trapo para tentar atenuá-la. Só consegue aumentá-la. À noite, quando a mulher volta para casa, Jabès está com uma crise de lumbago e seu humor é dos piores.

“Trabalhou bem?”, ela pergunta, imprudente.

“Como assim, se trabalhei bem? Não dá para ver que passei o dia inteiro limpando o carpete?”

Quando traduziu esta passagem para o espanhol, o poeta José Ángel Valente custou a crer no que estava lendo. Em sua casa em Almería, na Andaluzia, não havia carpete, mas também ele, em vez de trabalhar, passava um tempo considerável caçando manchas nos ladrilhos. Coral, sua mulher, observa que ele começava a explorar o piso logo depois do café da manhã, antes de sentar à escrivaninha. À menor mancha, ele pegava um pano de chão, às vezes na frente da faxineira, correndo o risco de irritá-la. Também dedicava muito tempo a certos trabalhos ingratos, como limpar a plancha em que o casal costumava grelhar os peixes. “Mais parecia um monge em meditação”, explica Coral.

f) Em Coisas que Eu Vi, Victor Hugo demonstra um interesse perturbador por certos detalhes, como se o irremediável, o indizível, a eternidade só cobrassem algum sentido quando perscrutados o mais perto possível, tocados com o dedo ou escutados ao pé do ouvido.

Na rue des Tournelles, perto de sua casa na Place des Vosges, um marceneiro mostra a Hugo o ataúde destinado a recolher as cinzas do imperador, repatriadas de Santa Helena. Hugo fita estupefato um veio esbranquiçado no ébano, no interior da tábua lateral esquerda. “Meus olhos talvez estejam cerrados há 3 ou 4 mil anos”, ele repete consigo mesmo, “antes que seja dado ver a outros olhos humanos o que estou vendo neste momento – o interior do ataúde de Napoleão.” Hugo não se contém e sopesa e apalpa as peças ainda por fixar.

Ao saber que as letras do nome “Napoleão” sobre o ataúde foram fabricadas em cobre, Hugo decreta que devem ser de ouro: ao se oxidar, o cobre terá corroído a madeira em menos de um século. Nessa mesma noite procura Thiers, então presidente do Conselho de Ministros, para exigir que ele dê ordens nesse sentido. Hugo tratou de se informar do custo, para o Estado, da substituição por letras de ouro: cerca de 20 mil francos. Thiers concorda, mas não se sabe se a ordem chega a ser transmitida.

Hugo vai ao local em que o duque de Orléans, o filho mais velho do rei Luís Filipe, fraturou o crânio. Ele repara que a morte golpeou “no ponto da calçada entre a 26ª e a 27ª árvore à esquerda, contadas a partir da esquina que a rua forma com a rotatória da Porte Maillot”. Constata que, nesse trecho, a lombada do pavimento “compreende 21 pedras de um lado a outro e que o príncipe fraturou a testa contra a terceira e a quarta pedras à esquerda, perto da borda”. Se, no momento em que os cavalos dispararam, o príncipe tivesse sido ejetado da carruagem 18 polegadas mais para diante, Hugo observa que ele teria caído sobre a terra batida.

Em 19 de maio de 1838, dois dias depois da morte de Talleyrand, Hugo anota que, segundo a vontade do falecido, seus médicos se apresentaram ao palacete que levava seu nome, na esquina da rue Saint-Florentin e da atual rue de Rivoli. Tinham ordem de embalsamar o corpo do homem de Estado conforme se fazia no Egito antigo. Terminada a tarefa, os médicos partem com as vísceras. Um criado percebe que esqueceram o cérebro em cima de uma mesa. Não sabendo o que fazer, ele o recolhe e vai jogá-lo no bueiro da rue Saint-Florentin.

Quando, no cemitério de Père-Lachaise, Hugo pronuncia algumas palavras à beira do túmulo onde o corpo de Balzac acaba de descer, ele nota que os torrões de terra ressoam ao cair sobre o caixão e volta e meia abafam sua voz.

Visitando a prisão da Conciergerie, ele encontra um prisioneiro que fora servente do carrasco Sanson. O prisioneiro é falastrão, Hugo o enche de perguntas e o faz contar em detalhe a história de uma jovem inglesa que queria saber tudo sobre a preparação dos réus. Não se dando por satisfeita, ela insiste que o verdugo lhe amarre primeiro as pernas; depois os braços, às costas; que a deite na prancha da guilhotina e aperte o cinturão de couro. Mas a moça ainda quer mais: que Sanson ajuste sua cabeça na luneta e lhe meta o capuz. O antigo servente não teria sido tão loquaz sem as perguntas de Hugo.

g) César Ritz, que em 1898 fundou o palácio de mesmo nome em Paris, sempre foi obsessivo. Vivia repetindo que nada era mais sério que os detalhes. Exigia que os clientes fossem chamados por seus nomes de família desde a chegada ao hotel, inclusive pelas arrumadeiras, o que supunha um esforço considerável de memorização. A cor do champanhe era a única tolerada para a roupa de cama, as cortinas duplas, a seda que revestia as paredes, as toalhas e os guardanapos: aos olhos de Ritz, era a única a favorecer a tez de uma mulher. Até a metade da década de 90 – fato único no mundo –, ainda havia nos armários uma gaveta destinada às perucas. Também dignos de nota eram os relógios de pêndulo a ar comprimido. A pedido de Ritz, foram concebidos para indicar a mesma hora em todo o estabelecimento, das cozinhas à suíte imperial. De origem suíça, Ritz não suportava a imprecisão.

No dia da inauguração, faltando três horas para a chegada dos primeiros convidados, Ritz mandou chamar os marceneiros: as mesas do restaurante estariam 1,5 centímetro mais altas do que deveriam. Aproveitou para mandar aparafusar um gancho no espaldar das cadeiras, para que as mulheres tivessem onde pendurar suas bolsas. Não é de estranhar que nos Estados Unidos seu nome tenha dado origem ao adjetivo ritzy, sinônimo de luxo, conforto e bom gosto. Tampouco que alguns turistas americanos se decepcionem ao saber que, no alto da Coluna Vendôme, diante da entrada do hotel, a estátua não representa César Ritz, mas Napoleão.

h) Em 16 de setembro de 1936, quando o navio transoceânico Pourquoi Pas? vai de encontro a um recife perto do litoral islandês, o comandante Jean-Baptiste Charcot está no convés. Percebendo o tamanho do desastre, e antes de morrer afogado, ele pronuncia as palavras: “Ai dos meus pobres meninos!” Tem em mente os quarenta marinheiros a bordo. Um só deles, o mestre timoneiro Eugène Gonidec, que está a seu lado, terá a vida salva, junto à gaivota Rita, mascote de bordo. Ferida e caída, a gaivota tinha quebrado uma das patas. Improvisou-se uma tala. Uma vez curada, recusou-se a abandonar o Pourquoi Pas?. Fabricaram-lhe uma gaiola. Antes de sumir no mar, relata Gonidec, e quando o navio já se inclinava a estibordo, Charcot teve a presença de espírito de abrir a gaiola para libertar a gaivota.

i) Em 9 de junho de 1942, Hélène Berr anota em seu Diário que, no metrô École Militaire, uma desconhecida sorri para ela ao notar sua estrela amarela. Chega mesmo a dizer: “Bom dia, senhorita.” Mas o condutor do trem lhe aponta o dedo e dispara: “Último vagão.”

Em 10 de julho, na mesma estação, diante do comboio já parado junto à plataforma, Hélène se precipita para o primeiro vagão para não dar com a cara contra as portas. O chefe da estação berra: “Você aí, já para o outro vagão.” Ela corre e termina por embarcar no penúltimo vagão, não tendo conseguido chegar ao último, o único que os judeus devem usar. Uma vez dentro, ela não aguenta mais e não consegue conter as lágrimas.

Em 18 de setembro, ela anota que um médico judeu, o dr. Charles Meyer, é detido porque sua estrela amarela está costurada um pouco alto demais sobre o peito. Uma mulher comenta: “É a prova de que eles são de má-fé!”

Em 9 de novembro de 1943, contam a Hélène o que disse um inspetor de polícia que vai deter treze crianças com idades entre 5 e 13 anos no orfanato judeu em que ela trabalhava como voluntária. Os pais das crianças já haviam sido deportados e só por milagre elas escaparam pelos buracos da rede: “O que a senhora quer que eu faça – estou cumprindo meu dever.” No mesmo dia, os gendarmes detêm uma criança de 2 anos, cujos pais foram previamente deportados e que acaba de ser deixada com uma ama de leite.

Em 24 de janeiro de 1944, uma mulher indefesa é convocada a comparecer a um escritório da Kommandantur, onde é obrigada a ficar duas horas em pé, enquanto à enfermeira que a acompanha é oferecida uma cadeira: os judeus não são autorizados a se sentar diante de um alemão. Tampouco podem procurar um hospital ou uma clínica privada. A irmã de Hélène recebe de volta o adiantamento pago à clínica em que devia dar à luz. “Quem chegará a saber de tudo isso?”, pergunta-se Hélène.

Na entrada de 31 de janeiro de 1944, Hélène anota que um homem acaba de se mudar. Já não aguentava mais passar o dia ouvindo os berros das pessoas que a polícia tortura “enfiando coisas por baixo das unhas, até que confessem”. Ele trabalhava na Place des Saussaies, diante do prédio ocupado pela Gestapo.

Em 14 de fevereiro de 1944, Hélène fica sabendo de um homem que procura os pais por toda Paris. Encontra a mãe de 80 anos no necrotério, morta em Drancy. Transportaram-na nua, sem nem sequer um lençol ou uma camisola. Não contentes de separar os pais do filho e de expoliá-los de todos seus bens, ainda despojaram a mulher das roupas que vestia ao ser presa. A mãe de Hélène Berr, a quem a filha conta esse pormenor: “Seria preciso anotar essas coisas todas, para recordá-las depois.”

j) Existe, no Museu de Arte de Helsinki, um estranho quadro do pintor finlandês Robert Ekman (1808-73). Um jovem pastor está sentado sobre uma rocha à beira de um lago. Segura um livro grosso, que devora de olhos bem abertos. Deitadas ao redor, suas ovelhas estão perfeitamente em paz. Contudo, um lobo acaba de se precipitar sobre uma delas. Subjugado como está pela leitura, o pastor não vê nem ouve nada. As outras ovelhas também estão na mais completa paz.

Esse quadro de 1858 é de difícil interpretação. O que está lendo o jovem pastor? Um livro profano, que o distancia de Deus e deixa o campo aberto ao diabo? Mas como é possível que as ovelhas não tenham notado o lobo que se aproximava? O pintor terá querido sugerir toda a gama de consequências da distração do leitor?

Para a escritora finlandesa Leena Rantanen, é difícil imaginar um pintor que, à época e em seu país, ousasse entregar a uma criança outro livro que não a Bíblia. Assim sendo, não bastaria ler a Bíblia para estar quites com Deus. Vale notar que a própria vítima não viu nada se aproximar e não teve tempo de se erguer sobre suas quatro patas. Porém, observando de perto uma reprodução do quadro, descobrem-se duas exceções: o cão do pastor observa a cena, mas de longe, e sem reagir. Uma ovelha mais ao longe também levanta a cabeça, assustada, mas igualmente passiva.

k) Curioso diante de tudo que vê em Paris durante a ocupação, o escritor Ernst Jünger, então oficial da Wehrmacht, o Exército alemão, anota em seu diário o seguinte pormenor contado por um amigo: em Atenas, onde grassa a fome, os trombones da orquestra falham no auge de um concerto dedicado a Wagner – debilitados pelas privações, os músicos já não tinham como soprar em seus instrumentos com o vigor necessário.

l) Quando, em 16 de agosto de 2008, nos Jogos Olímpicos de Pequim, Usain Bolt conquista seus históricos 100 metros, batendo o recorde mundial com 9,69 segundos (em 41 passadas de 2 metros e 44 centímetros, em média), o cadarço de sua sapatilha esquerda estava desatado. Usain Bolt podia, portanto, tanto bater o recorde quanto realizar uma corrida pífia, por causa do desequilíbrio. Tinha até boas chances de cair sem completar o percurso.

m) No começo da carreira, a atriz Katharine Hepburn atuava numa comédia da Broadway. No meio da peça, cantava uma canção de ninar. Do outro lado da rua, estavam construindo um prédio de sessenta andares e o canteiro de obras não parava nunca. Katharine perguntou ao diretor do teatro se ele não poderia pedir que os trabalhos fossem interrompidos ao menos enquanto ela cantava sua canção. Responderam ao diretor com uma gargalhada. “Pois bem”, anunciou Katharine, “vou eu mesma ver o mestre de obra.” Ninguém sabe o teor do diálogo que tiveram, mas chegaram a um acordo: dali em diante, bastaria que o diretor fosse até a calçada e assobiasse na hora em que a atriz estivesse prestes a entoar a canção para que os trabalhos cessassem imediatamente.

A canção de ninar não durava mais que alguns minutos, mas a comédia ficou em cartaz por seis meses. Ninguém chegou a calcular quanto custaram ao empreiteiro as interrupções dos trabalhos de várias dezenas de peões. Katharine Hepburn agradecia todo dia, levando-lhes biscoitos que eles degustavam enquanto ela cantava.

n) Em outubro de 2008, o New York Times dedicava um artigo ao segundo botão da camisa masculina. Segundo o autor, o chique dessa peça de vestuário depende inteiramente da distância que separa o segundo botão do pé de gola. Se o botão ficar alto demais, a camisa dará a seu proprietário um aspecto guindado, mesmo sem gravata e com o colarinho aberto. Se, ao contrário, o botão ficar baixo demais, o colarinho aberto revelará a camiseta por baixo, bem como os primeiros pelos do peito, detalhe interdito para quem quiser dispensar a gravata sem com isso parecer desleixado. Supondo que seja necessário usar uma gravata para remediar um defeito da camisa, o excesso de espaço entre o primeiro e o segundo botão há de se traduzir – tão logo o proprietário se incline para a frente – por uma fresta que porá a descoberto a camiseta ou o peito nu. O New York Times fixava em 9 centímetros o espaço ideal entre o pé de gola e o segundo botão. O prestígio das marcas não importa: basta um pouco mais ou um pouco menos, pensava o jornalista, para que uma soberba camisa não fosse mais que uma coisa bizarra.

o) O jurista Josef Bor, prisioneiro no campo de Theresienstadt (Terezín, em tcheco) de 1942 a 1944, antes de ser transferido para Auschwitz:

“Por decreto específico, as autoridades do Reich haviam ordenado que se expedissem para Terezín os bens confiscados aos judeus e com os quais não se soubesse o que fazer. Foi assim que se empilharam no gueto os objetos mais heteróclitos: carros fúnebres, livros de oração, manequins de costura, redes para bigodes e outras tantas coisas inverossímeis.” Um dia, chega um trem com um vagão repleto de cartolas. Josef Bor anota:

“Todos os judeus que se encontravam ali foram obrigados a metê-las na cabeça, sob pena de morte.” Chegou-se mesmo a organizar, por ordem dos SS e para sua grande diversão, uma partida de futebol com cartolas em vez de bolas. Noutra ocasião, os SS exigiram que os prisioneiros cantassem em coro, de cartola na cabeça.

Prisioneiro em Auschwitz de fevereiro de 1944 a janeiro de 1945, Primo Levi também relata uma partida de futebol. De um lado, os SS responsáveis pelas câmaras de gás; de outro, os deportados pertencentes a um Sonderkommando – grupo de judeus que auxiliava nas tarefas dos campos – encarregado do suprimento e do bom funcionamento dos crematórios. Levi anota que, ao pontapé inicial, houve aplausos como se a partida “se desenrolasse não diante das portas do inferno, mas num campo de aldeia”. Levi atribui a essa partida, inimaginável em qualquer outro lugar, o seguinte sentido: nós, nazistas, renunciamos a toda humanidade – e conseguimos fazer com que vocês perdessem a sua. “Como nós e como Caim, vocês também mataram seus irmãos. Venham, agora podemos jogar juntos.”

p) Deve-se a Beate Klarsfeld, que teve, entre outras coisas, a coragem de esbofetear em público o chanceler alemão Kurt Georg Kiesinger por seu passado nazista, a história seguinte.

Em 1933, um sujeito de Bordeaux, então professor-assistente de francês na Universidade de Göttingen, encontra-se na Praça do Teatro (rebatizada Praça Adolph Hitler) quando vê um esquadrão da SA empilhando livros doravante indesejáveis e ateando uma fogueira. Os SA são comandados por um certo Helmut, que por coincidência é um dos melhores alunos do professor. O professor pede e obtém autorização para retirar da pira um volume qualquer, ao acaso, “a título de recordação”. Talvez o chefe dos SA tenha encarado o pedido como uma homenagem ao novo regime e seus autos de fé. O livro retirado às chamas in extremis vem a ser um exemplar de Amok, de Stefan Zweig.

Em 1940, o antigo professor está de volta a Bordeaux. Como é bilíngue, convocam-no a servir de intérprete para Adrien Marquet, prefeito da cidade e ministro do Interior sob o marechal Pétain. O ministro deve se encontrar em Paris com o chefe da polícia alemã, o SS Helmut Knochen. Tão logo os dois homens são conduzidos ao escritório do alemão, o antigo professor reconhece seu aluno de Göttingen.

Stefan Zweig se suicida no Brasil em 22 de fevereiro de 1942, após ter redigido uma carta em que explicava: “Minha pátria espiritual – a Europa – destruiu a si própria.” O exemplar de Amok está hoje num museu em Paris.

q) Dora Diamant (grafa-se igualmente Dyamant), que viveu com Franz Kafka de setembro de 1923 até a morte do escritor, em 3 de junho de 1924, tratou de não omitir nenhum detalhe quando contou à filha a história da menina que tinha perdido sua boneca.

Uma menina estava chorando, sozinha num banco do parque Steglitz, em Berlim. Franz e Dora aproximam-se e lhe perguntam o que está acontecendo. Franz explica que a boneca não se perdeu, ao contrário do que pensa a menina. A prova? Ele acaba de receber uma carta da boneca. Mas é claro que não tem a carta consigo, pois não sabia que encontraria a menina.

Mal volta para casa, Franz redige a carta que supostamente recebera e que lerá para a menina no dia seguinte. Na carta, a boneca explica que estava cansada de viver sempre com a mesma família. É bem verdade que amava a menina, mas queria respirar um pouco os ares do mundo. De todo modo, prometia escrever todos os dias.

A cada nova noite, e durante três semanas, Kafka redige a carta que lê no dia seguinte no parque Steglitz – a menina ainda não sabe ler. Ao longo das cartas, a boneca cresce, vai à escola, encontra uma porção de pessoas. É bem verdade que continua a amar a menina – explica a boneca –, mas agora está ocupada demais para pensar em retomar sua vida com ela.

Enquanto vai redigindo as cartas, Kafka medita sobre o final que, um dia, forçosamente, terá de inventar. E então ele acha a saída: a boneca encontra um rapaz. Franz descreve o pretendente, o noivado e a casa que escolheram para morar depois do casamento. Segundo Dora (as cartas de Franz se perderam), a boneca conclui assim a última carta: “Você logo entenderá que não temos como nos ver no futuro.”

E conclui: “Franz resolvera o pequeno conflito no coração da criança graças à arte, graças ao meio mais eficaz de que dispunha para restabelecer alguma ordem no mundo.”

r) Ainda no liceu, Stendhal se bate em duelo nos fossos de Grenoble, entre os portões de Bonne e Très-Cloîtres. Enquanto seu adversário, que será o primeiro a disparar, trata de fazer a mira, o estudante repete com seus botões: “Chegou a hora de ter coragem.” Na verdade, a estupefação supera todo outro sentimento, a tal ponto que ele não tira os olhos de um pequeno rochedo em forma de trapézio no cume de uma montanha. Anos mais tarde, em Vida de Henry Brulard, e de memória, Stendhal fará nada menos que três desenhos do pequeno trapézio a que se resumia o mundo.

Por sua vez, Púchkin descreve nas Histórias de Ivan Pietróvitch Bélkin um oficial que se bate em duelo e que, enquanto o adversário faz a mira, continua a comer cerejas. Tinha se dado ao trabalho de encher o quepe com as frutas; agora escolhia as mais maduras e cuspia os caroços na direção do adversário. Cospe com tanta força que quase atinge o homem que lhe aponta a arma.

Por fim, Michel Leiris relata a história de um espanhol condenado à morte. Numa prisão de Barcelona, o sujeito teria passado a noite inteira cantando saetas, enquanto não vinham levá-lo para o patíbulo em que seria executado. Leiris: “Invejo a têmpera desse prisioneiro que, apesar da iminência da hora, teve forças para dominar seu sofrimento.”

s) Prêmio Nobel de Literatura de 2006, Orhan Pamuk observa que os cães errantes de Istambul sempre intrigaram historiadores e observadores ocidentais. Segundo o escritor, esses animais representam a última resistência da grande metrópole à ocidentalização. Foi no século XVI que os cães começaram a invadir os bairros em plena expansão. Mais bem aceitos que agora, os cães de Istambul “fazem as vezes de lixeiros e vigias noturnos”, observa Pamuk.

De fato, um cartão postal do começo do século XX mostra um homem vertendo um recipiente cheio de comida na rua principal do bairro de Pera. Vinte cães, mais ou menos, se apinham ao seu redor. Os passantes trajam o fez otomano, o chapéu de palha ou o chapéu-coco, e parecem todos à vontade.

Nem sempre os cães de Istambul tiveram a vida assim tão fácil. Sob o sultão Abdulaziz (1861-76) e mesmo mais tarde, em 1908, eles foram perseguidos, agrupados e deportados, em nome da higiene e da modernidade, para a ilhota de Sivriada (Okseia, em grego), que integra o arquipélago das ilhas dos Príncipes. Uma vez ali, viam-se condenados a devorar uns aos outros e a morrer de fome. Benoist-Méchin, o grande historiador do mundo muçulmano, publica em seu livro sobre a Turquia moderna uma foto em que se veem os cães de Sivriada. Podem-se contar mais de 100 numa única praia. À lupa, distinguem-se bastante bem os estágios da agonia: o animal ainda saudável que acaba de desembarcar, o caquético de costelas à mostra, o cadáver. Orhan Pamuk: “A modernidade serve sempre de pretexto para o massacre.”

t) Deve-se ao capitão Cook, que descobre a Geórgia do Sul em 1775, a proliferação de ratos nesse arquipélago do Atlântico, situado a 2 mil quilômetros da costa da América do Sul. Os navios baleeiros que utilizaram as ilhas como bases durante dois séculos só ampliaram a catástrofe. “Quando se vai a uma ilha em que os ratos ainda não chegaram, o barulho dos pássaros é ensurdecedor”, explica o zoólogo Tony Martin. “Numa ilha com ratos, reina o silêncio. Não resta mais que a sombra do que o capitão Cook descobriu.”

Os ratos se multiplicaram tanto que chegaram a dezenas de milhões; alimentavam-se sobretudo de passarinhos recém-nascidos e de ovos antes da eclosão. Noventa e cinco por cento das espécies de pássaros desapareceram. Armou-se então uma grande operação, de 2011 a 2015, na qual helicópteros especialmente fretados espalharam quase 280 toneladas de raticida na ilha principal, a maior campanha de desratização jamais empreendida em todo o mundo. Mas todos sabem que será preciso recomeçar, e, admitindo-se que não tenha sobrado nenhuma fêmea grávida nessa ilha de 170 quilômetros de extensão por 40 quilômetros de largura, será necessário pelo menos um século para que todas as espécies de pássaros voltem a se instalar.

u) Uma foto anônima, tirada em Londres em 22 de outubro de 1940, mostra a biblioteca Holland House gravemente danificada depois de um bombardeio alemão. O teto desabou, as vigas foram calcinadas e o chão está juncado de destroços, mas as prateleiras foram poupadas. Três senhores de chapéu estão diante dos livros. Um deles estuda os títulos, a cabeça ligeiramente levantada, o segundo extrai um volume, o terceiro está entregue à leitura. Há quem pense que esses três leitores não seriam três passantes ao acaso: teriam sido convocados pelos serviços de propaganda britânicos, como símbolo da resistência moral e intelectual de todo um povo.

Seja como for, o que a foto diz não tem nenhuma ambiguidade. Alberto Manguel: “Os três homens reivindicam o direito de fazer perguntas; eles se esforçam por chegar – em meio aos escombros, por obra da luz que a leitura por vezes proporciona – a algum entendimento das coisas.”

v) Dos 20 milhões de habitantes de Mumbai, a cidade mais populosa da Índia, 7,5 milhões tomam diariamente o trem para ir trabalhar. Impossível se deslocar a pé (do norte ao sul, Mumbai estende-se por 120 quilômetros) ou de carro (a velocidade média nas ruas apinhadas é de 8 quilômetros por hora). Ora, os trens vão tão lotados que é impossível fechar as portas. Milhares de passageiros viajam sobre o teto, agarram-se às ferragens no espaço entre os vagões ou nas escadinhas de acesso. Contam-se em média nove mortes por dia.

A. J. More, da polícia ferroviária de Mumbai e encarregado de lidar com os acidentes: “Amanhã de manhã, um jovem funcionário vai dar um beijo na esposa e nos filhos antes de sair para o trabalho e eu vou retirá-lo em pedaços dos trilhos, tudo porque ele tentou a todo preço embarcar num trem lotado, com medo de perder meio dia de salário.”

w) Sviatoslav Richter (1915-97) explicava que sempre se recusara a escolher o piano em que tocaria, como muitas vezes lhe propunham antes dos concertos. “Toco com o que tem, e foi com péssimos pianos que apresentei meus melhores concertos”, observa o grande intérprete, num filme que lhe foi consagrado. Uma única vez, em Nova York, ele aceitou escolher entre doze instrumentos. Julgava ter tocado especialmente mal naquela noite. Durante todo o concerto, só pensava que não havia escolhido o piano certo.

A cravista Huguette Dreyfus, por sua vez, possuía um dos melhores cravos antigos, um instrumento do fabricante Jean-Henri Hemsch, do século XVIII. Não há, contudo, nenhuma gravação de Huguette Dreyfus tocando esse instrumento: não era possível gravar em sua casa, dado o barulho da rua, e ela não permitia que transportassem o cravo, temendo que o danificassem.

x) Desde 2002, uma lei americana exige que todo contêiner destinado aos Estados Unidos seja escaneado no porto de embarque. Antes disso, o contêiner deve passar por um pórtico que detecta batimentos cardíacos. A razão oficial é evitar que eventuais passageiros clandestinos sejam expostos às doses maciças de radiação necessárias para escanear uma caixa metálica de 30 toneladas.

y) Durante a Segunda Guerra Mundial, os estatísticos americanos calculavam que nenhum soldado de infantaria podia suportar mais de 240 dias de combate sem enlouquecer. Na verdade, muito poucos chegavam a esse limiar. Eram feridos ou morriam antes.

O escritor Roger Grenier, cujos pais eram donos de uma ótica em Pau, nos Pirineus, durante a guerra, observa por sua vez que numerosos soldados da Wehrmacht compravam óculos de sol durante a ocupação. Tentavam sinalizar a seus superiores a ideia de que não suportariam os reflexos do sol na neve, caso fossem enviados ao front russo.

z) “Como justificar inovações tão estúpidas como meias antiodor com nanopartículas de prata?”, pergunta-se Philippe Bihouix. Engenheiro, ele observa que, das 27 mil toneladas de prata extraídas anualmente em todo o mundo, pelo menos 500 toneladas se destinam a fins discutíveis. No caso das meias, a prata acaba nas estações de tratamento ao cabo de dez lavagens. Diversas utilizações de titânio, ouro ou zinco são igualmente impensadas. Sob pretexto de que os nanomateriais permitem utilizar muito menos matéria-prima, multiplica-se sem hesitação o uso desses metais raros. Eles são dispersos na natureza em maior quantidade, e em nome de um progresso o mais das vezes tão discutível quanto as tais meias com prata.

O texto é a versão traduzida do capítulo X do livro DÉTAILS. Faits, de Marcel Cohen. ©​ Éditions Gallimard, 2017.”