ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Disk-cadeia
O celular, o presidiário e o Estado
Roberto Kaz | Edição 8, Maio 2007
Em fevereiro de 2001, 30 mil presidiários em 29 presídios de São Paulo se rebelaram com dia e hora marcados. A ordem partiu da Casa de Detenção do Carandiru, por obra do chamado Primeiro Comando da Capital. Em maio de 2006, outra rebelião atingiu mais de cinqüenta alvos civis no estado, como ônibus, mercados e lojas. Os dois levantes foram orquestrados por meio de telefones celulares. Segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, são descobertos, em média, 200 aparelhos por mês nas suas dependências carcerárias.
São Paulo tem 144 estabelecimentos penais. Oito contam com bloqueadores; o último foi instalado em 2003 e está tecnologicamente defasado. No Rio de Janeiro, são 44 estabelecimentos, dos quais cinco são capazes de bloquear chamadas. A lei determina, no entanto, que “os estabelecimentos penitenciários, especialmente os destinados ao regime disciplinar diferenciado, disporão, dentre outros equipamentos de segurança, de bloqueadores de telecomunicação para telefones celulares, radiotransmissores e outros meios”.
O órgão que supervisiona os 11 mil presídios brasileiros é o Departamento Penitenciário Nacional. Ali, sabe-se que em dezembro de 2006, mês do último censo, havia 401 236 pessoas encarceradas no Brasil. Mas o Depen não tem idéia do número de penitenciárias que dispõem de bloqueadores. As secretarias estaduais, responsáveis pela compra dos aparelhos, não são obrigadas a repassar a informação.
O Congresso instaurou no ano passado uma CPI para investigar o tráfico de armas. Entre os documentos examinados pelos parlamentares, havia um sub-relatório intitulado “Comunicações em Presídios”, referente ao uso de bloqueadores, que dizia o seguinte: “As primeiras tentativas de instalação desse tipo de equipamento no Brasil são paradigmáticas. As experiências foram, sem exceção, malsucedidas”. Noves fora o “paradigmáticas”, o diagnóstico é preciso. O fracasso foi retumbante. O relatório propôs que o Fundo de Fiscalização das Telecomunicações, que arrecadou 4,5 bilhões de reais nos últimos dois anos, deveria financiar a compra dos bloqueadores. Nada aconteceu. Segundo a Anatel, o custo por equipamento de bloqueio é estimado hoje em 1,1 milhão de reais por penitenciária, um gasto de 330 milhões de reais para controlar as comunicações de 300 dos maiores presídios.
Telefones móveis funcionam em faixas de freqüência específicas, chamadas bandas. Em 2002, quando os primeiros bloqueadores foram instalados em presídios do Rio e de São Paulo, havia no país 28 milhões de telefones celulares, que operavam em duas bandas. Em fevereiro de 2007, o número de aparelhos ultrapassou a casa dos 100 milhões. Para dar conta da demanda, a Anatel leiloou novas freqüências, imunes ao efeito dos antigos bloqueadores.
Existem, hoje, cinco bandas de telefonia móvel no Brasil. Todas as companhias comerciais se espalham pelas bandas A, B, D e E. Só a banda C permanece inexplorada. Quando a maior parte dos bloqueadores foi instalada nos presídios, ainda não estavam abertas as bandas D e E, que só começaram a ser usadas em junho de 2003 e representam, hoje, um terço do mercado. Mas o surgimento delas não foi motivo de surpresa. O edital de licitação havia sido publicado pela Anatel em novembro de 2000.
O Centro de Readaptação Penitenciária de Presidente Bernardes é o mais importante presídio de segurança máxima de São Paulo. Depois de uma reforma que custou 7,7 milhões de reais, foi reinaugurado em 2002, com capacidade para 160 detentos. A empresa responsável pelo fornecimento dos bloqueadores foi a Telsate, gerenciada por Pedro Varteresian. Ele revela que os bloqueadores instalados ali cobrem apenas as bandas A e B, o que vale para todos os presídios paulistas que contam com o aparelho. Ou seja, para se comunicar dali, basta que o detento adquira um aparelho de qualquer operadora, menos de uma. Já na Penitenciária Nelson Hungria, em Minas Gerais, a comodidade também está facilmente ao alcance, mas o bloqueador, comprado em 2002 e atualizado em 2005, só cobre as bandas D e E.
Antonio Eduardo Ripari Neger é presidente da Associação Brasileira de Telecomunicações Rurais. Segundo ele, são três as razões para o fracasso dos bloqueadores. Em primeiro lugar, a Anatel, responsável por aprovar e certificar os aparelhos, foi burocrática: “A agência fez uma lista com as freqüências oficiais que deviam ser bloqueadas, mas qualquer camelô vende radiocomunicadores que funcionam em inúmeras freqüências, menos nas oficiais”. O segundo problema está nas licitações para a compra dos aparelhos, que não previam a consultoria de um especialista em telecomunicações: “As secretarias adquiriram um bloqueador como se estivessem comprando um colchão ou uma vassoura”. Por fim, existe o problema do monitoramento. À medida que cresce o número de usuários de telefonia celular, novas antenas precisam ser instaladas para responder à demanda. Resultado: o sinal se torna mais potente. “O poder público tem de enxergar o bloqueador como um serviço que precisa de atualização constante, ou então ele vira um guarda-chuva cheio de furos.”
Nagashi Furukawa foi o secretário de Administração Penitenciária de São Paulo entre 1999 e 2006. Segundo afirma, em 2001, quando surgiu a idéia de instalar bloqueadores nos presídios, a secretaria entrou em contato com a Anatel. Como na época havia apenas as bandas A e B em operação, a agência federal decidiu que os testes do equipamento a ser instalado se restringiriam a essas freqüências. “Nós fomos induzidos ao erro”, lamenta Furukawa. Com aquela decisão, a secretaria concluiu que não adiantaria investir em tecnologia de bloqueio até que todas as bandas fossem licitadas. Acontece que esse processo é gradual. A Anatel pretende leiloar uma nova freqüência ainda este ano e não faz outras previsões futuras.
Um bloqueador de celular não abafa o sinal do aparelho. O que ele faz é emitir um sinal contrário, na mesma freqüência porém mais potente, o que embaralha o som e deixa as palavras incompreensíveis. O funcionamento se dá por módulos. Cada um inibe uma banda específica. Se o intuito fosse inibir as cinco bandas licitadas, seria necessário empregar cinco módulos. Mas nem isso é suficiente. A Nextel, que oferece seu serviço a pessoas jurídicas, tem autorização para operar numa freqüência abaixo de todas as bandas licitadas. Radiotransmissores e walkie-talkies funcionam em freqüências ainda mais baixas e passam incógnitos pelo bloqueador. Como se não bastasse, a Global Star oferece um sistema de telefonia via satélite cujo objetivo, explicado no sítio da empresa, é atender “às necessidades de quem precisa de comunicação onde não há cobertura da telefonia fixa ou celular”.
No Congresso, tramitam diversos projetos de lei para regular a instalação de bloqueadores nos presídios. A questão é quem arca com o custo. Alguns querem que a responsabilidade recaia sobre as operadoras. Ércio Zilli, presidente da Associação Nacional das Operadoras Celulares, diz que “as empresas se dispõem a fornecer as informações técnicas necessárias, mas prover a segurança e a incomunicabilidade dos presos é função do Estado”. Já o governador de São Paulo, José Serra, afirma que atribuir a responsabilidade ao Estado “é uma maneira de não resolver o problema. A idéia de que tudo deve ficar por conta da vigilância é comodista. O governo federal levaria anos para instalar o equipamento necessário”. Serra concorda que, de acordo com a legislação atual, a responsabilidade não é das operadoras, mas frisa: “Se a lei for alterada, passa a ser”.
No ano passado, o então senador Rodolpho Tourinho apresentou no Senado um projeto de lei que responsabilizava as operadoras pela instalação de bloqueadores nos presídios. Agora, em 2007, após uma reavaliação, um substitutivo foi apresentado pelo senador tucano Flexa Ribeiro. Determina, em primeiro lugar, que os bloqueadores “deverão impedir o funcionamento de todos os serviços de comunicação interpessoal sem fio disponíveis em sua região”, o que inclui walkie-talkies e telefones Nextel. Em segundo lugar, determina que o financiamento deve vir do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações. O problema é que, devido às metas de superávit, o fundo tem sido “contingenciado”, politiquês para dinheiro que o Tesouro não permite gastar. Em 2006, dos 2,4 bilhões arrecadados, 1,8 bilhão de reais pararam no caixa. Para 2007, a meta é reter 2,04 bilhões. Caso a lei seja aprovada, diz Flexa Ribeiro, o governo terá de assumir a responsabilidade por não instalar os bloqueadores: “Vai mostrar que prioriza o superávit em detrimento da segurança pública”. Até lá, o celular marginal continuará soberano nos presídios brasileiros.