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Donas de si

    Clementina de Jesus (1971). A cantora e compositora fluminense era uma das principais musas do fotógrafo. A altivez que impera no retrato expressa o modo como Firmo enxerga as idosas negras

portfólio

Donas de si

Uma coleção de retratos de mulheres altivas

Walter Firmo e Janaina Damaceno Gomes | Edição 194, Novembro 2022

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Em outubro, durante os últimos minutos da mostra No Verbo do Silêncio a Síntese do Grito, Walter Firmo percorreu lentamente as salas do Instituto Moreira Salles,[1] na Avenida Paulista. A exposição reunia 266 fotos que ele tirou entre a década de 1950, quando iniciou a carreira, e 2021. Enquanto caminhava, o carioca de 85 anos, mangueirense, filho único de pai negro e mãe branca, admirava os personagens que garimpou dentro e fora do Brasil. Às vezes, conversava baixinho com um ou outro. Agradecia por estarem na mostra e se despedia, comovido. Gastava um tempo maior diante dos que mais lhe marcaram a trajetória e alegraram o coração. A caminhada deve ter passado despercebida por boa parte do público, mas desnudava a íntima relação que Firmo sempre estabeleceu com seus retratados, aos quais se refere como “meus ancestrais”, mesmo se são muito jovens. Uma cumplicidade plenamente visível nos olhares e sorrisos deles.

O trabalho do fotógrafo caracteriza-se pelas cores fortes, cenas bem construídas e grande presença de mulheres pretas e pardas, observadas tanto em ocasiões festivas quanto no cotidiano. A socióloga norte-americana Patricia Hill Collins diz que, para combater os estereótipos sobre os corpos negros, convém prestar atenção no dia a dia das pessoas negras, já que ali se encontra a vida em estado bruto. A obra de Firmo restitui, portanto, a dignidade de um grupo que teve sua imagem historicamente definida por um sistema racista de representação. No contrafluxo desse regime, o fotógrafo pavimentou uma linha de fuga visual, em que os afrodescendentes se reconhecem e se sentem acolhidos.

Geralmente, as imagens de mulheres negras estão atreladas ao trabalho braçal ou à hipersexualização. Até mesmo as ilustrações mais comuns da guerreira Dandara, companheira de Zumbi dos Palmares, teimam em mostrá-la como uma adolescente de seios nus. Firmo ajuda a desfazer essa iconografia preconceituosa com fotos que evitam qualquer tentação de rebaixar ou desumanizar o feminino. Ótimos exemplos são os retratos de figuras importantes da cultura brasileira, como a mãe de santo Olga do Alaketu, a cozinheira Alaíde do Feijão e a cantora Clementina de Jesus, que aparece neste portfólio.

Tais retratos evidenciam outra característica fundamental do fotógrafo: o tratamento que destina à velhice. Ainda hoje, o estereótipo mais associado às idosas negras é o de Tia Nastácia, a personagem de Monteiro Lobato – uma criada robusta, bondosa e inocente, que cumpre as tarefas domésticas com esmero, sobretudo as da cozinha, e orbita em torno de uma família branca. Negando-se a rezar nessa cartilha, o fotógrafo prefere enxergar as senhoras negras como seres altivos, que passeiam, fazem amigos, batem papo, usam roupas coloridas e exibem com orgulho a pele reluzente. Mesmo que sirvam, nunca são servis.

O autor também reserva um olhar delicado e respeitoso à infância. Quando fotografa meninas, procura realçar as marcas do cuidado daqueles que as amam: os vestidos bonitos, os cabelos minuciosamente trançados, os adereços graciosos. Na obra do fotógrafo, mulheres negras das mais diferentes gerações não se resumem a meros objetos da perversidade ou do desejo alheios. Elas têm vida própria e orgulham-se disso.

Nascido em Irajá, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, Walter Firmo incorpora o típico malandro carioca para as lentes do amigo Egberto Nogueira. CRÉDITO: EGBERTO NOGUEIRA_2022

 

Procissão no município de Ouro Preto (2015). Firmo sempre gostou de retratar as ladeiras e as festas populares da cidade histórica mineira, como a congada e o reisado

 

Reunião no Jongo da Serrinha, movimento de mulheres negras com sede em Madureira, tradicional bairro do Rio (2016)

 

Cena cotidiana numa praça de Ouro Preto (2012)

 

Clementina de Jesus (1971). A cantora e compositora fluminense era uma das principais musas do fotógrafo. A altivez que impera no retrato expressa o modo como Firmo enxerga as idosas negras

 

 

Firmo documentou a negritude em várias partes do mundo, como Cabo Verde (primeira imagem), Cuba (segunda imagem) e Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo (terceira imagem)

 

Rio de Janeiro (1981)

 

Juazeiro do Norte, no Ceará (1994)

 

Cuba (2004)

 

Carnaval no Rio (1972)

 

Silhueta de uma jovem no Rio (2012). O fotógrafo busca retratar a beleza das mulheres negras sem hipersexualizá-las

 


[1] O conselho do Instituto Moreira Salles é presidido pelo fundador da piauí, João Moreira Salles. Desde 2018, o acervo de Walter Firmo, com 155 mil fotografias, está sob guarda do IMS em regime de comodato.