A verdade mais profunda de Rosa e Azul talvez esteja no compromisso malsucedido entre a soberba da família e a ambição do artista com aspirações burguesas ROSA E AZUL (AS MENINAS CAHEN D’ANVERS)_PIERRE-AUGUSTE RENOIR_1881_CHRISTOPHEL FINE ART_UIG VIA GETTY IMAGES
Duas meninas
Renoir, Proust e os nazistas
Lorenzo Mammì | Edição 150, Março 2019
É um dos quadros mais célebres da coleção do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Foi pintado por Pierre-Auguste Renoir em 1881 e retrata duas meninas, Alice e Elisabeth, filhas de um riquíssimo banqueiro judeu de origem alemã, Louis Cahen d’Anvers, e de Louise de Morpurgo, mas o título pelo qual é mais conhecido não faz referência às retratadas: Rosa e Azul. Não está entre os trabalhos do artista que prefiro, nem, a despeito de sua popularidade, entre aqueles que a crítica mais rigorosa costuma elogiar. Remonta a um período em que Renoir, desiludido com o insucesso das primeiras exposições impressionistas, tenta se afirmar como retratista da alta burguesia parisiense. É comum ouvir, em relação a essa fase, adjetivos como “açucarado” ou “amaneirado”, e a pecha de certa vulgarização do impressionismo. De fato, em fins da década de 1870, Renoir parece recuar tanto da investigação aguda da “vida moderna”, de que foram mestres impiedosos Manet e Degas, quanto da aspiração (indissociável da poética de impressionistas mais rigorosos, como Monet ou Pissarro, mas afinal irrealizável) de reproduzir a sensação imediata, anterior a qualquer estilização. Nessa fase da arte de Renoir, a técnica impressionista se dobra a um tratamento mais tradicional dos volumes e a uma reprodução das texturas (veludos, cetins, cabelos, pele) emprestada de convenções antigas, que ele dominava perfeitamente. São traços mais conservadores que podiam passar despercebidos devido à falta de contornos definidos, ao leque cromático extremado e à luminosidade esfuziante, que é o que resta, então, do impressionismo.
Mas, à medida que esses traços impressionistas viraram linguagem comum, as dívidas de Renoir para com as convenções acadêmicas ficaram mais evidentes e hoje justificam o olhar desconfiado com que abordamos essas obras. O mesmo vale quanto à “vida moderna”: o extraordinário cronista de O Baile no Moulin de la Galette parece ter cultivado, a longo prazo, uma atitude demasiado condescendente em relação a seus objetos, se comparada à postura crítica que hoje é comum se preferir. Suas telas, como observou o artista e crítico americano Walter Pach, proporcionam a sensação de “saúde robusta e situação confortável” – e isso, pelo gosto atual, não é exatamente uma virtude. A sociedade exuberante e informal que ele retrata, as mulheres espirituosas e disponíveis, as danças e os piqueniques, por transgressores e liberadores que possam ter sido quando foram pintados, transformaram-se, talvez com docilidade excessiva, em chavões nostálgicos de certo charme parisiense fossilizado e repetido à exaustão.
Por tudo isso, eu nunca teria pensado em escrever sobre Rosa e Azul, não fosse uma informação lida por acaso num catálogo do Masp: a menina à direita, a maior, a loira, Elisabeth, morreu em 1944, aos 69 anos, no comboio que a levava a Auschwitz.
A notícia não é apenas chocante: de certa forma é absurda. Qualquer um que a leia, imagino, terá a mesma reação que eu tive: olhar de volta para a imagem que acompanha o texto, para verificar se ela ainda está lá, se não foi substituída por alguma outra coisa. Obviamente está lá, e não pode nos fornecer nenhum esclarecimento. Qualquer premonição estava fora do alcance tanto do pintor quanto das meninas. A própria ideia de Holocausto parece incompatível com Renoir: se havia algo que ele não sabia pintar era a tristeza, quem diria a tragédia. À primeira vista, nada da história diz respeito ao quadro, nada do quadro enriquece a história. O que muda somos nós, nossa percepção da tela: entre os veludos e as rendas, Auschwitz se instalou e não há como tirá-lo de lá. Porque houve o Holocausto e porque o Holocausto atingiu esse Renoir tão de perto, porque se sabe disso e justamente porque a obra não contempla essa possibilidade, de repente falar de uma sem falar do outro parece fútil, senão moralmente duvidoso. Agora há uma tarefa a cumprir, que pode e deve, acho, ser conduzida de duas formas: por um lado, entre esse quadro e o extermínio há uma série de relações objetivas a tecer, encobrimentos, atos falhos, reticências que ligam uma elite econômica mal tolerada a uma pintura moderna que também custa a encontrar seu lugar; por outro, há o dado bruto do impacto com que a história atinge nossa percepção estética, a consciência de que o quadro, agora que sabemos disso, nunca mais será o mesmo. Rosa e Azul é um caso extremado de como a apreciação de uma obra de arte depende do percurso histórico que dela chega até nós.
Já se foi a ilusão (se é que alguma vez alguém a cultivou) de que seja possível julgar uma obra exclusivamente a partir de suas características formais. Não apenas as circunstâncias de sua feitura, mas também as circunstâncias em que nos aproximamos dela, e a distância que decorre entre as duas, determinam sua apreciação. A obra é atravessada por tudo, como as releituras que Picasso fez em 1957 de As Meninas de Velázquez (58 aulas magistrais sobre como ver um quadro) são atravessadas pela luz do ateliê do mestre cubista e pelo gato que o frequentava, simplesmente porque eles estavam lá enquanto ele pintava. No caso de Rosa e Azul, porém, as características da tela e as informações que temos sobre o destino de Elisabeth são tão dissonantes que não parecem compatíveis. Tanto umas quanto as outras estão presentes ao mesmo tempo no ato de percepção, mas nenhuma articulação discursiva parece possível entre elas.
Talvez seja justamente esse o ponto do qual devemos partir: se algo se instalou no quadro, é da ordem da incongruência. Quem sabe, então, Rosa e Azul não diga alguma coisa sobre a relação entre arte e história, não como simples oposição, como se a arte fosse um éden de onde o anjo da história nos expulsou, e sim como uma fratura interna, uma impossibilidade do pensamento. A história em que a obra continua vivendo a penetra, expõe contradições que nem sequer estavam ou pareciam estar ali à época. A pintura, por sua vez, reescreve a história, julga o futuro pelo passado, de maneira que tudo o que aconteceu após sua feitura se integra à sua constituição e adquire ali um sentido mais evidente. Auschwitz racha a superfície esfuziante de Rosa e Azul, e Rosa e Azul condena Auschwitz de forma bem mais intensa e premente do que o repúdio que já nos acostumamos, quase automaticamente, a proferir. A incongruência – essa incongruência – se torna a razão de ser do quadro, lhe proporciona um sentido que não pretendia ter, mas que parece emergir dele como de um ato falho. A incongruência, quase outro nome da tragédia, nos obriga a recontar histórias.
A história de Elisabeth, então. Minha segunda reação também foi bastante banal: procurar na internet. No site Les Déportés Juifs de la Sarthe (Os Deportados Judeus de Sarthe), encontro uma foto de Elisabeth em 1942. Veste roupas modestas: casaco de tricô, xale claro, saia escura, chinelos. Apoia-se num andador. Está no vão de uma porta, também muito simples, provavelmente uma entrada de serviço que se abre numa parede de tijolos aparentes. Manchas claras nas bordas da foto, que parecem folhas desfocadas, sugerem um jardim diante da entrada. O fotógrafo está numa posição mais elevada e Elisabeth volta o rosto para ele, se esforçando para lhe mostrar um vestígio do sorriso que ofereceu a Renoir em 1881. Parece ter ido até a porta justamente para ser fotografada. Não é tão velha (67 anos), mas o andador indica que está doente. De fato, um atestado médico disponibilizado no mesmo site declara que ela sofria de artrite reumatoide.
Pelo site fico sabendo que Elisabeth se converteu ao catolicismo aos 20 anos, em 1895, antes de casar, no ano seguinte, com o conde e diplomata Marie Joseph Antoine Jean de Forceville. Que teve com ele dois filhos e se divorciou em 1901. Que em 1904 casou com Marie Alfred Emile Louis Denfert-Rochereau, do qual também se divorciou em algum momento entre as duas guerras. Que nos primeiros tempos da ocupação foi várias vezes interrogada por policiais franceses e oficiais alemães, mas que o carimbo que atestaria sua procedência judaica não foi aposto a seu passaporte. A outra menina do quadro, Alice, casara-se com um oficial inglês e morava em Londres, a salvo do perigo. Irène, a irmã mais velha, conseguiu em 1941 o atestado de “não judia”, declarando que os avós maternos eram católicos (o que, como veremos, não era verdade) e que se convertera ainda jovem. Elisabeth não teve a mesma precaução: foi presa por oficiais alemães em 27 de janeiro de 1944 e levada para o campo de Drancy, aonde desembarcou no dia 30. Deportada em 27 de março, morreu em 15 de abril, provavelmente antes de chegar a Auschwitz.
Entre essa história e o quadro, a única ligação que consigo enxergar de imediato é a tentativa desbotada, na foto de 1942, de repetir o sorriso de Rosa e Azul, num rosto de resto irreconhecível. Certos traços de expressão nunca se perdem de todo.
A história de Paris. Incongruência é um termo muito explorado por T. J. Clark, em seu já clássico A Pintura da Vida Moderna. Aproveito algumas de suas teses como ponto de partida, ainda que de maneira simplificada e um tanto imprecisa. Clark argumenta que, a partir de 1860, mudanças importantes no sistema de circulação das mercadorias começam a alterar as configurações sociais na França, especialmente em Paris. Os artesãos passam a trabalhar para grandes lojas de departamentos, que lhe emprestam material e máquinas. A relação deles com colaboradores e aprendizes, até então familiar, se torna semelhante à de um pequeno empresário com seus operários. À medida que seus produtos são absorvidos pelo sistema de vendas em grande escala, se enfraquece a relação com a clientela do bairro e a rede de solidariedade que garantia sua segurança (fidelidade da freguesia, comprar fiado, negociações olho no olho).
De imediato, no entanto, nada disso é evidente: o artesão continua trabalhando em seu ateliê e, ao contrário do que em geral se imagina, o êxodo das classes humildes ainda é pequeno, mesmo depois da grande reforma urbana do barão Georges-Eugène Haussmann. O novo sistema não estabelece relações totalmente novas, nem oferece uma imagem evidente de si. Talvez nem precise: vive de reconfigurações e deslocamentos contínuos das relações antigas, que mudam de posição e de sentido sem perder de todo a forma tradicional. À primeira vista, tudo ainda está aí; nada, porém, ficou no lugar.
A reestruturação de Haussmann é certamente, no momento que nos interessa, uma tentativa poderosa de criar uma nova imagem da cidade. A abertura de grandes avenidas retilíneas corta os velhos bairros com o intuito de proporcionar condições ideais de visibilidade e circulação e, com isso, ser instrumento de uma racionalização das relações sociais. Mas a tentativa não alcança seu objetivo: nessa visibilidade retilínea e potencialmente ilimitada, muitos comentadores contemporâneos não veem nada, a não ser a desolação de um vazio sem identidade. Ao invés de uma sociedade claramente organizada, o que se enxerga é uma terra de ninguém invadida por flâneurs, prostitutas, artistas de rua, toda uma população gerada pelo desmantelamento da antiga economia de bairro. A convivência entre diferentes camadas e tipos sociais – que, nos recém-inaugurados boulevards, encontra seu lugar privilegiado na nova moda dos cafés-concertos – é vista não como conciliação e fusão, mas apenas como promiscuidade. Não uma sociedade mais organizada, e sim mais confusa, fragmentária e caótica – que perdeu o chão sobre o qual se assentava, sem que a modernidade lhe tenha oferecido um novo. A imagem mais perfeita disso talvez seja o cisne que fugiu da gaiola e vaga capenga entre canteiros de obras, no poema de Baudelaire “O Cisne”, de As Flores do Mal.[1]
Se à reforma Haussmann se atribuiu a perda de identidade e o esgarçamento do tecido social urbano (dos quais ela não foi o agente principal, mas o símbolo mais evidente), a mesma hostilidade foi dirigida contra a nova elite financeira, em grande parte judia, que se instalara na cidade nesse período: além dos Rothschild, que já residiam em Paris havia tempo, os Péreire (além de banqueiros, os maiores empreendedores imobiliários da reforma Haussmann), os Cattaui, os Ephrussi, os Camondo, os Cahen d’Anvers. Dominando a economia e a vida social, representativos como ninguém da nova França e da nova Paris, cultivavam laços de solidariedade e tradições próprias, vistos com suspeita tanto pela antiga aristocracia quanto pela pequena burguesia emergente. Hábeis e muitas vezes impiedosos nas transações comerciais, são ao mesmo tempo temidos e reverenciados, badalados e hostilizados. São, eles também, como os flâneurs das avenidas, desenraizados – pelo menos geograficamente –, portanto modernos. A tempestade antissemita que varreria a França durante o caso Dreyfus (1894-1906) começa a se esboçar.
O desafio declarado da nova geração de artistas era pintar as novas formas de vida: o campo moderno, mais turístico que rural, meta dos parisienses no fim de semana graças ao desenvolvimento das estradas de ferro; os espetáculos, as pistas de turfe, as avenidas, os cafés-concertos. Mas essa nova paisagem era ambígua e desconjuntada. De certa forma, argumenta Clark, os impressionistas fracassaram em suas tentativas, pois não foi possível estabelecer para a vida moderna códigos de representação análogos aos da pintura tradicional. Por outro lado, esse fracasso foi também seu triunfo, na medida em que a incompletude e a fragmentação estrutural da nova realidade são transpostas para a tela sem disfarces, até se converterem em seu problema central e sua própria razão de ser. Se, na pintura moderna, o tema vira um motivo que vale, não pelo referente, mas como pretexto para uma reflexão formal, não é por desinteresse pelo real, mas porque houve um descolamento entre signos e significados que tornou a transição de uns para outros um problema a ser compensado por maior coerência formal dentro da obra. É só na obra que o mundo adquire uma imagem, se não plena, pelo menos capaz de um grau razoável de coerência. Mas essa imagem já não coincide completamente com o que vemos pela janela. Numa linha de raciocínio que me parece compatível com a de Clark, o filósofo Jacques Rancière defende, em O Destino das Imagens, que na raiz da representação moderna não está o mergulho do artista em seus próprios meios, como quer a tradição hegeliana, mas as novas exigências de autenticidade impostas pelo realismo. Seria o realismo que, ao abolir as mediações linguísticas tradicionais entre o mundo e suas representações, obrigaria o artista a uma luta constante com seus objetos. E, afinal, o próprio embate entre pintura e realidade, seus êxitos e fracassos, passa a ser o movente principal da obra.
A história de Renoir. Em paralelo ao ensaio de Clark, vale ler a biografia do pintor escrita por seu filho, o cineasta Jean Renoir. De fato, a família Renoir ilustra quase à perfeição as mudanças sociais descritas pelo crítico americano. Os Renoir pertenciam à classe de artesãos mais diretamente atingida pelas mudanças econômicas: provenientes de Limoges, moraram de início no bairro popular do Louvre – na antiga corte do palácio –, desmantelado no Segundo Império para criar o novo complexo Louvre-Tulherias; mudaram-se então para o Marais e, mais tarde, para o subúrbio de Louveciennes. O pai, Léonard, era alfaiate, e dos sete filhos que teve, cinco sobreviveram. O mais velho, Pierre-Henri, começou a trabalhar como ourives numa oficina do bairro, mas logo foi contratado pelo célebre Jean-Baptiste-Claude Odiot, fornecedor da casa imperial, instalado na praça Madeleine. Henri levou uma vida abastada e bem adaptada aos novos tempos – ele, apaixonado pelos cafés-concertos; a mulher, pelos saldos das lojas de departamentos. Sua irmã Marie-Elisa, militante socialista, casou com um gravurista que fornecia ilustrações para as revistas de moda. Léonard-Victor, o terceiro, seguiu a profissão do pai, porém trabalhando como costureiro numa loja dos grandes boulevards. Elegante e namorador, parece, na descrição do sobrinho, um exemplo perfeito dos galantes calicots (empregados de lojas de moda) que povoam os romances e as crônicas da época. Mais tarde, emigraria para São Petersburgo e abriria uma firma própria, que chegou a obter bastante sucesso. O caçula, Edmond-Victor, será escritor e jornalista, por um tempo diretor de La Vie Moderne, revista que se notabilizou pelo apoio à jovem pintura e literatura.
Pierre-Auguste era o sexto dos sete filhos. Começa como pintor de porcelanas – trabalho promissor, do ponto de vista financeiro, mas logo interrompido pela moda das louças industriais de fabricação inglesa. Depois, vive um período de indeterminação profissional, em que trabalha como pintor de cortinas em tela impermeável (cujos maiores consumidores eram os missionários no Extremo Oriente, que as utilizavam como substitutos dos vitrais de igreja) e decorador de duas dezenas de cafés em torno dos novos mercados dos Halles. Finalmente decide investir na carreira de pintor e entra no ateliê de Charles Gleyre. Ali encontra Bazille, Monet e Sisley, que o levam às reuniões dos “intransigentes”, mais tarde apelidados “impressionistas”. Nos anos de velhice, repetia ao filho Jean, como singela filosofia de vida, a metáfora do bouchon – a rolha de cortiça que segue a corrente desviando apenas um pouco à esquerda ou à direita, sem nunca se opor ao fluxo.
De fato, para os Renoir, e principalmente para Pierre-Auguste, a enchente da revolução econômica, entre o Segundo Império (1852-70) e a Terceira República (1870-1940), propiciou uma nova identidade, mais próspera: entre artesanato e indústria, alfaiataria e loja de departamento, atividade intelectual e habilidade manual, havia um espaço a preencher, e Pierre-Auguste sempre se orgulhou de saber aproveitar as ocasiões, não por submissão passiva (se fosse assim, não seria um “intransigente”), mas por curiosidade atenta, apreço pela habilidade artesanal e desconfiança de qualquer teoria e ideologia. Em conversas com o filho ou com o galerista Ambroise Vollard, fica evidente que para ele o impressionismo era, sobretudo, uma mudança de gosto – pintura clara e de toques no lugar da escura e de contornos nítidos da geração anterior. Julgava que as telas pintadas ao ar livre devessem ser corrigidas no ateliê, em condições de iluminação mais próximas dos interiores onde seriam penduradas. Não considerava seu estilo uma novidade absoluta, e sim a retomada de uma tradição francesa de pinceladas sensíveis e difusas (Watteau, Fragonard), interrompida pelo neoclassicismo. Enfim, não se sentia um revolucionário, mas isso não o impedia de perceber, talvez antes e mais do que seus companheiros, a força inovadora de Cézanne e de tentar, a seu modo, incorporar seu estilo.
As dificuldades iniciais pelas quais passaram os impressionistas são notórias e foram muitas vezes narradas e romanceadas. O leilão do Hôtel Drouot, promovido pelos próprios artistas em 1875, foi um desastre do ponto de vista econômico. Em 1877, quando da terceira exposição impressionista (a primeira a assumir oficialmente esse nome), com tantas obras que se tornariam canônicas – O Baile no Moulin de la Galette e O Balanço, de Renoir; A Aula de Dança, de Degas; a série A Estação Saint-Lazare, de Monet; Os Telhados Vermelhos, de Pissarro, além de um conjunto consistente de Cézanne –, a maioria das críticas continua negativa. Um galerista revolucionário tanto no gosto quanto na estratégia de vendas, Paul Durand-Ruel, já começara a adquirir grande parte da produção dos jovens pintores. Mas ainda se tratava de uma aposta. Renoir, mais dotado como pintor de figuras do que muitos de seus companheiros (com exceção de Degas), tinha circulação um pouco melhor como retratista, mas seus clientes pertenciam a uma classe burguesa de parcos recursos. Por ocasião da terceira mostra, considerava-se satisfeito ao vender uma tela por 200 ou 300 francos, enquanto pintores da moda podiam obter dezenas ou (se Zola não exagerou em A Obra) até centenas de milhares de francos por quadro.
Já nessa época, porém, um punhado de intelectuais e escritores influentes se empenhava em introduzir seus amigos pintores em ambientes sociais e intelectuais mais prestigiados. Um deles era o salão de Marguérite Charpentier, mulher de Georges Charpentier, editor dos autores da nova escola naturalista e fundador da revista La Vie Moderne, que Edmond Renoir virá a dirigir. Além dos escritores que ele publicava, como Flaubert, Zola, Maupassant, Goncourt e Turguêniev, frequentavam o salão jornalistas e políticos liberais, críticos, colecionadores e, naturalmente, artistas. Renoir decerto conhecia Charpentier já havia algum tempo, porque em 1869 pintara um retrato, ainda convencional, da mãe do editor. A exposição de 1877 incluía um pequeno e belo retrato da mulher dele, Marguérite, hoje no Museu d’Orsay. Logo em seguida, Marguérite Charpentier encomendou outro, de grandes dimensões, onde aparece em sua casa com dois filhos e um cachorro. Por este, Renoir recebeu a cifra, não extraordinária, porém mais consistente, de 1 500 francos. Mas madame Charpentier fez mais: convenceu a amiga Jeanne Samary, atriz no ápice da fama, a encomendar um retrato de figura inteira. Finalmente, conseguiu que as duas telas fossem aceitas no Salon de 1879. Para Renoir, após as reiteradas recusas dos anos anteriores, foi uma chancela importante: sinalizava, para uma nova burguesia ainda em busca de estilo, que comprar ou encomendar um quadro dele já não era um ato temerário. Estava pronto para voos mais altos.
Segundo Théodore Duret, crítico de arte e amigo de Renoir desde a década de 1870, foi graças a Charles Ephrussi que o pintor conseguiu ascender do salão burguês e liberal dos Charpentier até as altas cortes da elite financeira, à qual pertenciam os Cahen d’Anvers. Nascido em Odessa, Ephrussi chegou a Paris em 1871 aos 21 anos, vindo de Viena, onde passara a adolescência. Ainda mais ricos do que os Cahen d’Anvers, os Ephrussi, cujos ramos se espalhavam pela Europa entre Odessa, Viena e Paris, eram chamados “reis do trigo”, por, entre outras coisas, deterem o controle do mercado dos cereais na Europa, graças a um acesso quase monopolista às riquíssimas plantações do Leste Europeu.
Ephrussi nunca se ocupou dos negócios da família; preferiu a carreira de intelectual, historiador da arte e colecionador. Escreveu uma monografia sobre os desenhos de Albrecht Dürer, à qual Erwin Panofsky, na bibliografia anexa a seu célebre The Life and Art of Albrecht Dürer (1943), atribuiu o asterisco reservado às obras especialmente relevantes. Foi redator, depois diretor, finalmente proprietário da prestigiosa Gazette des Beaux-Arts, a mais importante revista de arte na França. Durante as décadas de 1870 e 80, foi um dos principais colecionadores de obras impressionistas (em seguida, passou a se interessar pelos simbolistas). Protegeu e incentivou jovens escritores e críticos em início de carreira, como Jules Laforgue, que foi seu secretário, e Marcel Proust. Foi, aliás, uma das fontes de Proust para construir a personagem de Charles Swann de Em Busca do Tempo Perdido, cujo modelo principal, como se sabe, é Charles Haas, o “judeu do Jóquei Clube”. Renoir retratou Charles Ephrussi em um de seus quadros mais famosos, Le Déjeuner des Canotiers (O Almoço dos Remadores), pintado no mesmo ano de Rosa e Azul. Sua presença naquela pintura, e o modo como ela se dá, me parece crucial para as relações que estou investigando.
O Almoço dos Remadores poderia ser definido como retrato de grupo disfarçado de cena de gênero. Na varanda de um restaurante à beira-rio, homens em trajes informais (alguns de regata, muitos de chapéu de palha) e mulheres com roupas coloridas se entretêm entre mesas com restos de comida e garrafas meio vazias. A garota que brinca com um cachorrinho no primeiro plano é a modelo Aline Charigot, futura mulher de Pierre-Auguste e mãe de Jean Renoir; Jeanne Samary está à direita, mais discreta em sua veste escura (parece ter acabado de chegar, e é a única a usar luvas). Alguém lhe passa a mão na cintura, provavelmente o mesmo homem (de camiseta listrada e chapéu de palha) que aproxima seu rosto ao dela (é o jornalista Paul Lhôte, que além de erotômano compulsivo era extremamente míope, conforme as lembranças de Pierre-Auguste recolhidas pelo filho). Ephrussi é a figura ao fundo à esquerda, de costas, de casaca preta e cartola, conversando com Jules Laforgue.
Edmund de Waal, que escreveu A Lebre com Olhos de Âmbar, um livro sensível sobre a família Ephrussi (da qual ele descende), estranha esse traje formal em ocasião tão descontraída. Não é o primeiro: em O Caminho de Guermantes, terceiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, há uma cena em que Marcel, antes de sentar pela primeira vez à mesa dos duques, é deixado a sós, a seu pedido, para contemplar uma coleção de quadros de Elstir. Costuma-se identificar Elstir com Monet, mas é um personagem que resume aspectos de vários impressionistas, e até (em sua fictícia fase juvenil) do simbolista Gustave Moreau. Entre as obras da coleção Guermantes, uma figura retratada em dois quadros chama a atenção de Marcel. Na primeira tela, o homem aparece de fraque e cartola em um salão; na segunda, de casaca e cartola, “numa festa popular à beira d’água”. Kazuyoshi Yoshikawa, estudioso das obras de arte no romance de Proust, ainda que com argumentos que não me parecem conclusivos, reconhece no primeiro quadro um retrato de Charles Ephrussi pintado em 1895 por Léon Bonnat, um retratista da moda. Quanto ao segundo, é opinião unânime que Proust tenha se baseado livremente no Almoço dos Remadores. A descrição que o escritor faz desse quadro – ou melhor, da variante que ele próprio elabora a partir dele – é uma das leituras mais sensíveis das cenas populares de Renoir, capaz de dissolver toda pátina de banalidade com que o tempo possa ter recoberto sua obra, mas é também, como quase sempre acontece quando Proust descreve um quadro, uma declaração pessoal de poética. Cito o trecho na tradução de Mário Quintana:
Aquela festa à beira-rio tinha qualquer coisa de encantador. O rio, os vestidos das mulheres, as velas dos barcos, os reflexos inumeráveis de uns e outras achavam-se em vizinhança naquele quadrado de pintura que Elstir havia recortado de uma tarde maravilhosa. O que encantava no vestido de uma mulher que deixara um momento de dançar por causa do calor e da sufocação era igualmente cambiante, e da mesma maneira, no pano de uma vela parada, na água do pequeno porto, no pontão de madeira, nas folhagens e no céu. Da mesma forma, num dos quadros que eu tinha visto em Balbec, o hospital, tão belo sob o céu de lápis-lazúli como a própria catedral, parecia, mais atrevido que o Elstir teórico, que Elstir homem de gosto e enamorado da Idade Média, clamar: “Não há gótico, não há obra-prima, o hospital sem estilo vale o glorioso portal.” Da mesma forma, eu ouvia: “A dama um tanto vulgar que um diletante em passeio evitaria olhar, excluiria do quadro poético que a natureza compõe diante dele, essa mulher é bela também, seu vestido recebe a mesma luz que a vela do barco, e não há coisas mais ou menos preciosas, o vestido comum e a vela por si mesma linda são espelhos do mesmo reflexo; todo o valor está no olhar do pintor.” Pois bem, este soubera imortalmente deter o movimento das horas naquele instante luminoso em que a dama sentira calor e deixara de dançar, em que a árvore estava cercada de um contorno de sombra, em que as velas pareciam deslizar sobre um verniz de ouro. Mas justamente porque o instante pesava sobre nós com tamanha força, aquela tela tão fixa dava a impressão mais fugitiva, sentia-se que a dama ia em breve voltar-se, os barcos desaparecerem, a sombra mudar de lugar, a noite descer, que o prazer acaba, que a vida passa e que os instantes, mostrados ao mesmo tempo por tantas luzes que se lhes avizinham, não tornamos a encontrá-los.
No quadro de Elstir/Renoir, como na prosa de Proust, é na anedota à primeira vista irrelevante que se encontra o significado universal, o gesto pequeno é que se eterniza. E a operação que extrai de detalhes banais seu sentido profundo consiste justamente em suspender o tempo em que tudo transcorre, numa representação imóvel (ou pelo menos, na prosa de Proust, em câmara lentíssima) daquilo que é efêmero. Mas, mesmo nesse encantamento ecumênico, em que as pessoas e as coisas, não importa se sublimes ou vulgares, são irmanadas pelo pertencimento a um mesmo instante que a tela transforma numa totalidade fora do tempo, mesmo aí o homem de casaca e cartola destoa. Marcel se interroga sobre quem poderia ser: um amigo, talvez um protetor, como antigamente os contemporâneos notáveis que os pintores renascentistas costumavam incluir em suas histórias sagradas. À mesa, pergunta ao duque a identidade daquela figura. A resposta é reticente:
[…] “sei que é um homem que não é um desconhecido nem um imbecil na sua especialidade, mas confundo os nomes. Tenho-o na ponta da língua, senhor… senhor… enfim, pouco importa, não sei mais. Swann lhe diria isso, foi ele quem fez com que a senhora de Guermantes comprasse essas coisas, ela que é sempre muito amável e tem muito medo de contrariar se recusa o que quer que seja; entre nós, creio que ele nos impingiu umas porcarias. O que posso dizer é que esse cavalheiro é para o senhor Elstir uma espécie de Mecenas que o lançou, e muita vez o tirou de dificuldades, encomendando-lhe quadros. Por gratidão, se chama a isso gratidão, depende dos gostos, ele o pintou naquele lugar onde, com o seu olhar endomingado, ele causa um efeito bastante cômico. Pode ser um medalhão muito importante, mas ignora evidentemente em que condições se usa uma cartola.”
O nome do célebre Charles Ephrussi emperra na língua do duque de Guermantes para dar lugar ao de Swann, a quem Ephrussi serviu de modelo. É Swann quem convence a duquesa a adquirir os quadros de Elstir e até a lhe encomendar um retrato – tal como Ephrussi convenceu os Cahen d’Anvers. Reticências sempre dão o que pensar. É possível que Renoir quisesse prestar homenagem a seu poderoso mecenas, como Proust sugere, sem envolvê-lo numa promiscuidade excessiva. E o pudor de Renoir se desdobra no pudor de Em Busca do Tempo Perdido, desta vez por meio do desdém do senhor de Guermantes. Ephrussi permanece entre os quadros de Elstir, a salvo da feira de vaidades a que se reduz o jantar da duquesa, na sala afastada onde Marcel o contemplou em duas obras. Ele não tem nome no romance, assim como, retratado de costas, não tem rosto no quadro de Renoir.
Mas o respeito é também uma forma de distanciamento: Charles Ephrussi é bem recebido no círculo boêmio, que afinal conta com ele. Mas não é um deles. Charles Swann também circula com desenvoltura em todos os ambientes (a família burguesa de Marcel, o salão dos novos ricos Verdurin, as recepções principescas), mas não pertence a nenhum deles. Qualquer deslize (como será seu mau casamento) pode levar não a um afastamento declarado, mas a uma tomada de distância, que o próprio Swann, com sua atenção costumeira às convenções, aceita e cultiva. Parece fazer parte do destino trágico das grandes dinastias judias do fin de siècle a adesão, amiúde levada até o entusiasmo, às mesmas convenções que acabam por excluí-las. A cartola no balneário talvez seja o primeiro rastro, o primeiro ato falho da incongruência ainda encoberta que procuro desvendar.
A casaca e a cartola de Ephrussi, porém, não são apenas indícios de uma integração social mal resolvida. Há outra costura, esta estética, que está sendo difícil de realizar: entre fidelidade mimética e técnicas de representação, realismo e equilíbrio formal, algo definitivamente se rompeu. Lembremos como Zola, em seu romance A Obra, descreve a pintura Plein Air (Ao Ar Livre), do protagonista Claude Lantier, paráfrase com variações de Le Déjeuner sur L’Herbe (O Almoço na Relva), de Manet: no fundo de uma clareira, duas mulheres (e não uma, como em Manet) brincam num espelho d’água; à meia distância repousa uma mulher nua, deitada e de olhos fechados; em primeiro plano, um homem de casaco marrom (e não dois, como em Manet). Assim Zola explica a presença desta personagem: “Como, no primeiro plano, o pintor precisava de um contraste preto, considerou-se satisfeito ao colocar aí um senhor vestindo um simples casaco de veludo. Esse senhor estava de costas, e dele só se via a mão esquerda, sobre a qual se apoiava na grama.” Utilizara o mesmo argumento em 1867, no artigo dedicado a Manet para a Revue du XIXe Siècle: o público se equivocara ao atribuir uma intenção obscena à combinação de uma mulher nua e dois homens vestidos, no grupo principal de O Almoço na Relva, uma vez que “o artista procurou apenas oposições vivas e massas generosas”. Com certeza, justificativas desse tipo eram compartilhadas pelos artistas próximos a Zola. Fazem parte da transformação do tema em motivo, já referida – transformação, aliás, defendida repetida e explicitamente nos depoimentos tardios de Renoir ao filho e a Vollard. O que conta, para um pintor moderno, é a coerência do quadro enquanto unidade formal, não a da cena que ele descreve.
Mas por que deveriam divergir? Questões de equilíbrio cromático são corriqueiras na pintura desde, pelo menos, o tonalismo veneziano do século XVI; até Manet, porém, elas nunca obrigaram os artistas a renunciar às convenções narrativas. Agora, ao contrário, os diferentes códigos da representação (o equilíbrio formal, a legibilidade da história, a expressão imediatamente compreensível dos afetos) deixaram de coincidir entre eles, de convergir para um resultado único. O que está em jogo em O Almoço na Relva, de Manet, não é apenas um equilíbrio de cores, e sim a impossibilidade de compromisso entre a nova aspiração ao realismo e os gêneros tradicionais, que só podem ser recuperados por justaposição e contaminação, como numa colagem – alusão mitológica no grupo central, inspirado em Rafael; quadro de gênero para as personagens modernas; natureza-morta embaixo, à esquerda. Acredito que Manet tivesse consciência de quanto tal contaminação erodia barreiras de segurança, convencionalmente estabelecidas: entre nu clássico e pornografia, por exemplo; entre presença quase tátil dos objetos e platitude do tratamento pictórico (talvez já mediada pela experiência da fotografia); entre vida moderna e tradição figurativa. Não foi buscando apenas contrastes de cores e de massas que o artista enfrentou o escândalo de O Almoço na Relva, e ainda mais o de Olympia.
No entanto, as questões formais que Zola levantava faziam sentido, preenchiam os vazios que o abalo das convenções deixava a descoberto. As novas poéticas brotavam nas frestas de relações sociais rachadas, mas ainda em vigor. A casaca preta de Ephrussi, em O Almoço dos Remadores, pode ser justificada por razões tonais: em contraste com a regata branca do homem sentado em primeiríssimo plano, no canto inferior direito do quadro, marca o limite último do grupo (a mancha marrom de Laforgue, atrás dele, já quase se confunde com as árvores). Quatro personagens intermediárias (duas mulheres e dois homens) graduam cromaticamente a transição e formam uma diagonal que, junto com a diagonal oposta do parapeito, estabelece os eixos composicionais do quadro. Dessas quatro figuras, uma é apenas o perfil de um rosto masculino, espremido entre o casaco de Ephrussi e um outro, creme, do homem em pé atrás da primeira mesa (o jornalista Adrien Maggiolo). Narra a lenda que seria um autorretrato, e que Renoir o teria acrescentado já em fase avançada, quando percebeu que sem ele os comensais seriam treze, número de azar. Sem esse perfil, o contraste de claros e escuros seria ainda mais acentuado, e Ephrussi estaria jogado ainda mais para o fundo. Mas não deixa de instigar essa aparição tão tímida do artista (se é que o retratado é ele), apenas esboçado, espremido entre a presença espalhafatosa de jornalistas e modelos e seu presente/ausente mecenas.
A rede de relações, porém, é mais densa. Se Em Busca do Tempo Perdido Ephrussi serviu de modelo para Swann, é corrente entre os pesquisadores que sua amante, Louise Cahen, contribuiu para definir a figura de Odette de Crécy, amante e depois mulher de Swann. Não pelo status social – Louise sempre foi riquíssima, enquanto Odette tem um passado de demi-mondaine –, mas por certos traços físicos e posturas. A respeito de Louise, Edmond de Goncourt escreve, numa entrada de seu diário, em fevereiro de 1880:
Os judeus conservam, de sua origem oriental, uma especial displicência. Hoje eu acompanhava encantado os movimentos de gata preguiçosa com os quais Mme. Louise Cahen pescava do fundo de uma vitrine suas porcelanas e lacas, para colocá-las em minhas mãos. Quando as judias são loiras, em seu loiro há um fundo como o ouro da pintura da amante de Ticiano. Concluído o exame, a judia se largou sobre uma espreguiçadeira; e, deixando cair a cabeça de lado e mostrando, em cima dela, um emaranhado de cabelos semelhante a um ninho de serpentes, queixou-se indolente, com toda sorte de interrogação divertida no rosto e na ponta do nariz, dessa pretensão dos homens e dos romancistas que exige que as mulheres não sejam criaturas humanas e não tenham no amor as mesmas fraquezas e os mesmos desgostos dos homens.
E assim Proust descreve o surgimento da paixão de Swann por Odette:
Estava um pouco adoentada; recebeu-o com um peignoir de crepe da China de cor malva e tinha no colo, à guisa de abrigo, um estofo ricamente bordado. De pé ao lado de Swann, deixando pender ao longo das faces os cabelos soltos, dobrando uma perna em leve atitude de dança para poder curvar-se sem fadiga sobre a gravura que estava mirando, de cabeça inclinada, com os seus grandes olhos tão cansados e inexpressivos quando nada a excitava, ela impressionou a Swann por sua presença com aquela figura de Céfora, a filha de Jetro, que se vê num afresco da Capela Sistina. […] Não mais apreciou o rosto de Odette segundo a melhor ou pior qualidade de suas faces ou a suavidade puramente carnal que lhes supunha encontrar nos lábios, se jamais ousasse beijá-la, mas sim como uma meada de linhas sutis e belas que seus olhares dobravam, seguindo a curva de seu enrolamento, ligando a cadência da nuca à efusão dos cabelos e à flexão das pálpebras, como num retrato dela em que seu tipo se tornava inteligível e claro.
Há coincidências suficientes para pensar num empréstimo, por parte de Proust, ou pelo menos numa memória involuntária: os objetos orientais (o peignoir chinês de Odette, as porcelanas e lacas de Louise); a mulher que se debruça (sobre a gravura, sobre as porcelanas); o movimento sedutor da cabeleira; finalmente, a analogia com uma pintura: Louise lembra a Goncourt uma modelo que aparece em vários quadros atribuídos a Ticiano (Flora, Salomé, Violante) e que se supunha amante do pintor; Odette lembra a Swann a Céfora do afresco As Provações de Moisés, de Botticelli. Descontadas as diferenças de estilo, a semelhança entre Violante e Céfora é suficiente para que possam ser comparadas a uma mesma pessoa: lineamentos delicados, pele diáfana, cabelos amarelo-palha. Traços análogos se encontram no retrato que Carolus-Duran, um pintor bastante prestigiado na época, realizou de Louise em meados da década de 1870.
Antissemita extremado, Goncourt não consegue disfarçar, sob um tom de aparente superioridade, o medo de ser paralisado pela ticianesca Louise, judia-medusa, cabeça de serpente. Proust domina melhor os códigos da sedução, com todas as suas mediações artísticas e literárias. Mas tudo indica que a mulher seja a mesma.
Louise começa a namorar Charles Ephrussi já casada, com quatro filhos. Contava-se que, terminado o affaire, ela teria sido amante, em 1902, de Afonso XIII, rei da Espanha, embora a união pareça improvável: à época, Louise tinha 57 anos, e Afonso apenas 16. Essa intensa vida amorosa não a impediu de se manter firme no casamento, do qual teve mais um filho durante o caso com Ephrussi. Ela descendia da família Morpurgo, riquíssimos judeus sefarditas de Trieste, fundadores da maior companhia de seguros da Itália, a Assicurazioni Generali. Seu marido era Louis Cahen d’Anvers. Era a mãe das duas meninas de Rosa e Azul.
Os Cahen tinham fama de arrogantes. A alta sociedade francesa não lhes perdoava a ostentação de um título de nobreza estrangeiro (o patriarca da família, Meyer-Joseph Cahen, foi feito conde pelo rei do Piemonte-Sardenha em retribuição ao apoio financeiro à primeira guerra italiana de independência); tampouco perdoava o uso do topônimo d’Anvers, prerrogativa proibida aos judeus por uma antiga lei; e ainda menos perdoará a aquisição, em 1895, do Château de Champs-sur-Marne, que pertencera a uma filha de Luís XIV e fora moradia de veraneio de Madame de Pompadour – um sinal explícito, para muitos, da ambição judaica de se substituir à aristocracia castiça. Floresciam trocadilhos sobre as pretensões aristocráticas dos Cahen: comtes à l’envers (condes ao contrário), comtes courants (trocadilho entre condes e contas-correntes).
Nem a comunidade judaica apreciava essa húbris incontida. Conta-se que o velho Meyer Joseph teria desistido de assinar “C. d’Anvers” quando o banqueiro Oppenheim, estabelecido em Colônia, respondeu ironicamente com um “O. de Cologne” (que em francês soa como “água de colônia”). Em 1881, na versão impressa do discurso pronunciado nas exéquias do patriarca, o grão-rabino de Paris fez questão de colocar o “d’Anvers” entre parênteses. As grandiosas recepções dos Cahen, às quais se dignavam comparecer membros das famílias reais da Europa inteira (Espanha, Sérvia, Grã-Bretanha), além da imperatriz Eugênia, viúva de Napoleão III e amiga pessoal de Louise, também eram criticadas pelo excesso de luxo: muita ostra, muita orquídea, muito ouro. Isso não impedia, naturalmente, que todos fizessem questão do convite, e que o jornal mundano Le Gaulois as comentasse extensivamente.
Quanto dessas festas entrou na descrição proustiana da ceia na casa Guermantes, onde Marcel contempla os quadros de Elstir? Não descobri nenhum indício de que alguma vez Proust tenha sido convidado para aqueles banquetes, nem que Louise possa ter servido de modelo para Oriane, a duquesa de Guermantes, como o foi para Odette. É verdade que, na opinião comum, outra grande dama judia – Geneviève Halévy, filha do compositor de La Juive e mulher de Émile Straus, advogado dos Rothschild – serviu de inspiração para a duquesa, mas isso não relaciona necessariamente Oriane a Louise. Mesmo assim, me parece razoável supor que a relação que liga Elstir, Swann e Oriane seja calcada na que ligou Renoir, Ephrussi e Louise, ainda mais pela alusão indireta ao Almoço dos Remadores.
Nos escritos de Proust, encontrei apenas uma referência explícita a Ephrussi, numa crônica mundana de 25 de fevereiro de 1903, depois incluída nos Salões de Paris:
Bonnat observa-o com esse olhar bondoso que brilha diante da bela pintura [um retrato da princesa Matilde por Ernest Hébert] e troca reflexões de especialista com Charles Ephrussi, diretor da Gazette des Beaux-Arts, autor do belo livro sobre Albrecht Dürer, mas em tom tão baixo que as pessoas mal os ouvem.
Parece que o diretor da Gazette só pode aparecer apagado: de costas no quadro de Renoir, com o nome esquecido em O Caminho de Guermantes, quase inaudível aqui. De resto, é um traço que combina com a extrema discrição característica de Swann, pelo menos até o casamento com Odette. Como vimos, Bonnat pintou um retrato de Ephrussi, talvez modelo de um quadro que Marcel vê na casa dos Guermantes. É também autor de um delicado desenho da cabeça de Louise Cahen, realizado a pedido de Ephrussi.
Sobre Louise, salvo uma alusão fugidia nos Salões de Paris, pela qual apenas ficamos sabendo que a exquise (deliciosa? refinada?) madame Cahen era amiga da condessa Potocka, há uma anotação que destaca sua atitude altiva no assim chamado Carnet I de 1908, um conjunto de anotações para Em Busca do Tempo Perdido: “Mulheres idosas (Cahen) que não mandam cartões de visitas às jovens, enquanto Mme. Émile Halphen…”
E só. Mas podemos levar mais adiante o jogo de alusões, apenas a título de experimento: se Ephrussi foi um dos modelos de Swann, e Louise Cahen d’Anvers, de Odette, a menina loira do quadro, Elisabeth, não poderia ser uma fonte para Gilberte? Elisabeth certamente não era filha de Ephrussi, e a intimidade de Proust com a família Cahen devia ser escassa. Mas a idade bate: se o Marcel de Em Busca do Tempo Perdido tinha a mesma idade de Proust, que é de 1871, Elisabeth, nascida em 1874, seria quase sua coetânea. E, ao ler o trecho que descreve Gilberte ou, melhor, a lembrança de Gilberte por Marcel apaixonado, quase no fim de O Caminho de Swann – “se desde a véspera trazia eu na memória dois olhos vivos em faces cheias e brilhantes, o rosto de Gilberte me oferecia agora com insistência alguma coisa de que precisamente não havia me lembrado, certo afilamento do nariz que, associando-se instantaneamente a outros traços, tomava a importância desses caracteres que em história natural definem uma espécie, e transmutava-a numa menina do gênero das de focinho pontudo” –, não posso evitar associá-lo à expressão viva e espirituosa e à junção de faces rechonchudas e focinho pontudo, que agora me parece estrutural no rosto da menina de Rosa e Azul.
Se Gilberte casou com Saint-Loup, Elisabeth passou por dois casamentos igualmente infelizes com membros da aristocracia, casamentos que muito provavelmente deveriam garantir a plena integração dos Cahen na alta sociedade francesa, como o de Gilberte garantiria a dos Swann, enquanto, poucos anos antes, o casamento da irmã mais velha, Irène, como logo veremos, selava a aliança com outra importante família judia, os Camondo. E é irônico pensar que, ao fugir do casamento e se converter ao catolicismo por amor a um obscuro aventureiro, Irène, a que deveria garantir a continuidade da família na tradição judaica, tenha escapado da perseguição, enquanto foi justamente Elisabeth, a destinada a integrar a nobreza gói, que se tornou vítima dela. Por inconsistente que seja o paralelo, ele traz consigo a constatação de que se Gilberte, como qualquer personagem de ficção, não tivesse desaparecido junto com seu autor, ela poderia ter morrido em Auschwitz. É outra variante da relação complexa que as obras de arte entretêm com a história, dessa vez por mediação de outra obra: pintado quando Proust tinha 10 anos, Rosa e Azul, graças a uma identificação talvez improvável, mas possível, prolonga Em Busca do Tempo Perdido para a tragédia que seu autor não chegou a presenciar, mas que de certa maneira pressentira na viagem ao fim da noite da primeira parte de O Tempo Redescoberto.
Vamos então à história de Irène. Em um curto período, Renoir pintou três retratos de membros da família Cahen d’Anvers. Um dele, hoje no Paul Getty Museum, em Los Angeles*, foi feito em 1881 e representa Albert Cahen d’Anvers, compositor de algum renome e tio paterno de Elisabeth. Um ano antes, porém, Renoir já realizara o retrato da filha mais velha de Louise e Louis Cahen. Conhecido também como A Menina da Fita Azul (Portrait de Mademoiselle Irène Cahen d’Anvers), é um quadro famoso, não apenas pela qualidade pictórica, como pelo charme da garota de então 8 anos, enormes olhos azuis e uma cascata de cabelos castanho-arruivados que lhe recobre inteiramente os ombros e permite a Renoir um tour de force de delicadas transições cromáticas. Os cinéfilos devem se lembrar dele: está no pôster que Jean Seberg cola na parede do banheiro, quase um alter ego de seu charme delicado, no quarto de hotel onde se encontra com Jean-Paul Belmondo, em Acossado, de Jean-Luc Godard (“Gosta deste pôster?”; “Acha que ela é mais bonita do que eu?”).
Aos 19 anos, em 1891, a linda Irène casa com o banqueiro Moïse de Camondo, doze anos mais velho e caolho por um acidente de caça. Leva o quadro consigo. Com Moïse tem dois filhos, Nissim e Béatrice, mas o casamento entra em crise quando ela se apaixona por Charles Sampieri, um conde italiano com fama de aventureiro que cuidava dos estábulos dos Camondo. Casos extraconjugais nunca tinham sido um problema em ambas as famílias, mas Irène faz questão de se divorciar. Em 1902, converte-se ao catolicismo e se torna a condessa Sampieri.
O quadro fica com Moïse até 1918, ano do casamento da filha Béatrice com León Reinach, descendente de outra grande família judia e filho do famoso helenista Théodore Reinach. Béatrice leva o quadro consigo. O irmão Nissim já morrera heroicamente na Primeira Guerra Mundial. O pai lhe dedicará um museu, que ainda hoje abriga sua coleção de obras e peças de antiquário francesas do século XVIII.
Béatrice e Léon tiveram dois filhos, Fanny e Bertrand. Na época da ocupação alemã, já estavam divorciados. O retrato de Irène foi confiscado pelas tropas alemãs junto com outras obras de colecionadores judeus que tinham sido confiadas aos museus nacionais da França. Léon Reinach chegou a reclamar junto ao diretor da Réunion des Musées Nationaux, na França, lembrando as muitas doações feitas pelas famílias Cahen e Camondo e, inoportunamente, o papel heroico de Nissim na Primeira Guerra contra os alemães. Béatrice, Léon, Fanny e Bertrand foram deportados para Auschwitz entre 1943 e 1944 e morreram logo depois.
Irène, como já disse, foi poupada. Ao fim da guerra era, pelo primeiro casamento, a única remanescente dos Camondo e uma das poucas Cahen d’Anvers ainda vivas. No verão de 1946, por ocasião da mostra Obras-Primas das Coleções Francesas Recuperadas na Alemanha e na Suíça, organizada pelos Aliados no Museu da Orangerie, ela reconheceu seu retrato e reivindicou a restituição. Poucos anos depois, porém, assoberbada por dívidas de jogo, vendeu-o ao industrial e colecionador alemão, naturalizado suíço, Emil Georg Bührle. Depois da morte do industrial, em 1956, a viúva e os filhos criaram em 1960 a Fundação Bührle, em Zurique, onde está depositada grande parte de sua coleção, incluindo o retrato de Irène.
Mas a história é mais complicada e mais obscura: Bührle fabricava armas, principalmente para a Wehrmacht, o Exército alemão. Sua coleção foi formada durante a guerra, sobretudo graças à amizade com Goering – que, como se sabe, foi o principal beneficiário do comércio das obras saqueadas nos países ocupados. Depois da guerra, o colecionador foi obrigado a devolver treze telas. O retrato de Irène estaria entre elas? Ou ele teria apenas recomprado o que já lhe pertencera? É o que defende Pierre Assouline em seu livro Le Dernier des Camondo [O Último dos Camondo], e encontro a mesma afirmação em muitos sites.
Um deles, porém, apresenta uma reconstrução alternativa: o quadro teria ficado com Goering, que o teria obtido de Gustav Rochlitz – galerista alemão residente em Paris –, dando em troca um tondo florentino não identificado. Em 1975, o governo americano tornou pública toda a documentação relativa à famosa Art Looting Intelligence Unit (Aliu), unidade de investigação sobre arte saqueada (que inspirou o filme Caçadores de Obras-Primas, de George Clooney). Hoje, ela está disponível na internet. No relatório “Activity of the Einsatzstab Reichsleiter Rosenberg in France”, de agosto de 1945, existe de fato uma referência à troca realizada em 10 de março de 1942 entre Rochlitz e as autoridades alemãs, na qual o galerista teria recebido quatro telas (dois Matisses, um Modigliani e o Renoir que o documento cita como Portrait of a Girl) contra a cessão do tondo. Segundo o interrogatório a que foi submetido em 1945, Rochlitz teria vendido um Matisse e ficado com os demais até o fim da guerra. O retrato de Renoir ainda estaria, na época, em sua residência em Hohenschwangau, na Alemanha.
A Einsatzstab Reichsleiter Rosenberg (Força-tarefa do Reichsleiter Rosenberg, cuja sigla é ERR) foi uma organização liderada pelo ideólogo do partido nazista Alfred Rosenberg, principal responsável pelas teorias raciais do regime, com o intuito de “coletar” bens culturais nos países ocupados. Inicialmente, esses bens se destinariam a um centro de estudos do Partido Nazista e a instituições alemãs, como o planejado, mas nunca realizado, Museu do Führer, em Linz. O projeto, no entanto, foi desvirtuado pela ingerência de Goering, que dele se aproveitou para criar uma enorme coleção pessoal (1 375 pinturas, 250 esculturas, 108 tapeçarias, 200 peças de mobiliário, 60 tapetes persas e franceses, 75 vitrais e 175 objetos de arte, segundo o relatório da Aliu) e enriquecer a si e a seus colaboradores comerciando o restante.
As obras impressionistas e em geral toda a arte moderna constituíam um problema à parte: enquanto “arte degenerada”, elas não podiam ser incluídas nas coleções alemãs, nem comercializadas diretamente pelos agentes de Goering. Por outro lado, eram obras que se valorizaram enormemente durante a guerra. Criou-se então um sistema de intermediários pró-forma – marchands coniventes que recebiam um número expressivo de obras modernas valiosas em troca de uma quantidade muito menor de obras antigas, anônimas ou de pequenos mestres, muitas vezes enobrecidas por atribuições extravagantes. Em seguida, esses marchands vendiam as obras modernas no mercado privado, dividindo o lucro com os oficiais e funcionários alemães que intermediaram a troca. Rochlitz era um desses marchands: seu primeiro grande negócio foi receber da ERR onze obras modernas (um Braque, um Corot, um Cézanne, um Degas, três Matisses, dois Picassos, um Renoir e um Sisley) em troca de um retrato atribuído a Ticiano e uma cena de caça de Jan Weenix, pintor holandês do fim do século XVII.
No relatório da Aliu estão anexadas duas cartas de funcionários da ERR recomendando encarecidamente a realização imediata da troca, que seria de extrema valia para os museus alemães. Em suas considerações finais, o oficial dos Aliados que interrogou Rochlitz não foi da mesma opinião e recomendou sua prisão por crimes de guerra.
Ao que tudo indica, portanto, A Menina da Fita Azul ficou com Rochlitz até o fim da guerra. Bührle não teria sido seu proprietário antes de adquiri-la de Irène Sampieri, como defende Assouline. Mas tanto faz. Ele era um dos receptadores que compravam quadros impressionistas de marchands como Rochlitz, e continuou comprando, após a guerra, dos herdeiros falidos da antiga elite judaica. É o que diz um relatório da Aliu: “BÜHRLE, Emil: Alemão residente na Suíça há vinte anos e nacionalizado suíço. Proprietário da fábrica de armas Oerlikon e na lista negra desde o início da guerra. HOFER entrou em contato com ele através de WENDLAND, que o visitou para adquirir pinturas para a coleção dele. Em 1942 visitou Paris e adquiriu pinturas de DEQUOY, duas das quais foram enviadas à Suíça por Goering via mala diplomática. HOFER diz que Bührle comprou pinturas francesas confiscadas só após ter a garantia de que isso seria perfeitamente legal.”
A exigência de “legalidade” talvez seja o detalhe mais sinistro desse resumo. Walter Andreas Hofer era o principal agente de Goering nesse sistema de trocas de obras modernas. Hans Wendland o assessorava para o mercado suíço. Roger Dequoy era um marchand francês ligado ao esquema. O relatório final do Aliu repete mais ou menos as mesmas informações, acrescentando: “Importante receptor de obras saqueadas.” A polêmica sobre a origem da coleção Bührle ressurge ciclicamente – a última vez foi em 2015, quando se decidiu que parte dela seria hospedada num museu público, o Museu de Belas-Artes de Zurique, numa nova ala a ser inaugurada em 2020. O grosso da coleção permanecerá na casa do magnata, transformada, como vimos, em fundação. Não sei onde ficará Irène.
A história de Rosa e Azul. Inicialmente, Renoir deveria pintar três quadros, um para cada menina Cahen d’Anvers. Mas os pais não devem ter gostado muito do retrato de Irène, pois decidiram reduzir o resto da encomenda a um retrato duplo. Tampouco gostaram deste, e as duas telas ficaram relegadas aos quartos dos criados: A Menina da Fita Azul até o casamento de Irène, como vimos; o retrato de Alice e Elisabeth até 1900, quando foi exposto pela primeira vez na Galerie Bernheim-Jeune, em Paris. O texto do catálogo do Masp, escrito por Eugênia Gorini Esmeraldo, nos informa que os galeristas, seguindo indicação do próprio Renoir, encontraram o quadro “aparentemente esquecido, no 6° andar de uma casa da avenida Foch” (que então se chamava avenida do Bois de Boulogne). Com efeito, nos edifícios de luxo, o 6° andar era reservado aos aposentos dos criados. O texto não menciona o proprietário da casa (o único endereço dos Cahen d’Anvers que achei é da época em que o retrato foi realizado: avenida Montaigne, 66). Porém, há na internet uma lista de obras – redigida por ocasião de um empréstimo do Masp à Fundação Pierre Gianadda, na Suíça, em 2014 – na qual se encontra uma informação mais precisa: o quadro foi adquirido da própria senhora Cahen d’Anvers, em 14 de janeiro de 1909, por um dos proprietários da galeria, Gaston Bernheim de Villiers. Exposto de novo em 1913, passou a fazer parte da coleção particular de Villiers, até ser vendido para um colecionador americano, Sam Salz Daber. Em seguida foi posto em leilão na galeria Wildenstein, em Nova York, onde o Masp o adquiriu, em 7 de julho de 1952. Dessa vez, o percurso é limpo.
Foi na exposição da Bernheim-Jeune em 1900 que a obra recebeu pela primeira vez o nome Rosa e Azul. Na ocasião, tanto Elisabeth quanto Alice já tinham se casado (Elisabeth em 1896, Alice em 1898) e evidentemente nenhuma das duas manifestou interesse em levar o quadro consigo. Talvez o título tenha sido ditado por certa reserva em expor numa galeria comercial – e quem sabe colocar à venda – um retrato de família de uma dinastia tão poderosa. Mas, com isso, a identidade das meninas desaparece: o tema se torna motivo, e o título da obra sugere que Elisabeth e Alice sejam lidas como estudo de cor, do mesmo gênero das “massas generosas” de O Almoço na Relva, conforme a leitura de Zola. A história, no entanto, parece ter sido outra.
Renoir não deve ter gostado do corte na encomenda. Muito menos do atraso de mais de um ano no pagamento (1 500 francos, como o retrato de madame Charpentier, mas dos Cahen d’Anvers talvez Renoir esperasse mais). Com o insucesso do segundo retrato, que no entanto foi exposto no Salon de 1881, sua tentativa de se firmar como retratista da elite judaica fracassara definitivamente. Mesmo na velhice, ele não escondia o ressentimento por esse malogro, inclusive com tiradas antissemitas, como aquela em que, em conversas com Ambroise Vollard, afirma que Gustave Moreau pintava com cores de ouro “para atrair os judeus” – seguida por uma alusão ácida a Ephrussi, que no final da vida (morrera prematuramente em 1905) deixara de lado os impressionistas para colecionar simbolistas. Mas na época em que pintou Rosa e Azul, bem que ele havia se esforçado em se adequar ao que imaginava ser a expectativa de seus clientes. O retrato de Irène já concede algo à tradição, mas em linhas gerais ainda responde ao gosto impressionista, nem que seja pela ambientação simples, ao ar livre. Em Rosa e Azul o quadro de referências muda, remetendo à pintura do Ancien Régime.
A valorização da pintura francesa pré-revolucionária, em especial do século XVIII, foi crescente a partir mais ou menos de 1860, quando Philippe Burty, um crítico que mais tarde apoiará os impressionistas, organizou uma exposição sobre o tema na Galerie Martinet, em Paris. Edmond de Goncourt e Renoir também foram defensores apaixonados por esses estilos. É por volta desse momento que Watteau se transforma numa estrela de primeira grandeza, não apenas entre os pintores, mas em toda a cultura francesa – “Uma viagem à Citera”, de Baudelaire (1857), e Festas Galantes, de Verlaine (1869), por exemplo, são títulos inspirados em quadros do pintor. Tratava-se, fundamentalmente, de uma reação ao neoclassicismo e à sua maneira “industrial” de proceder por etapas: primeiro o desenho, depois o claro-escuro, enfim a cor aplicada separadamente, área por área, dentro dos contornos. A isso se opunha a leveza e delicadeza refinada dos mestres do século XVIII, que resolviam a obra diretamente no toque do pincel. Em Renoir, orgulhoso de seu pertencimento a uma classe de trabalhadores manuais, esse interesse renovado era acompanhado de um grande apreço pelo artesanato francês de outrora, o mobiliário e a manufatura de objetos, em contraste com a produção industrial de matriz inglesa. Algo parecido ocorria ao mesmo tempo (ou até um pouco antes) na Grã-Bretanha, com o revival neogótico liderado por John Ruskin, em oposição à arquitetura neoclássica baseada em módulos repetíveis ao infinito (coluna, capitel, frontão etc.) e, portanto, associada ao industrialismo.
O gosto pela arte do Ancien Régime também recebia boa acolhida entre a nova elite econômica, que nela via ocasião de se identificar com a antiga aristocracia e reafirmar sua adesão aos valores nacionais franceses. Já citei a aquisição, por parte dos Cahen d’Anvers, da vila onde Madame de Pompadour passava os veraneios; e a grande coleção de arte e artesanato do século XVIII de Moïse Camondo, hoje no museu dedicado ao filho Nissim. Mas Rosa e Azul não remete aos estilos, afinal já burgueses, do século XVIII, como ocorre no retrato pintado por Renoir, em 1879, de Marthe Bérard, filha de um amigo abastado, mas não milionário, que também está no Masp, e cujas cores delicadas e ambientação simples lembram a pintura de Jean-Baptiste Chardin ou Lyotard. Rosa e Azul alude à retratística suntuosa do século XVII, de Rigaud e Van Dyck. Na aproximação tão explícita entre grande burguesia do século xix e realeza do século XVII está, me parece, um passo em falso: em Rosa e Azul, Renoir exagera.
Mais uma vez Marcel Proust nos fornece uma pista, nas páginas iniciais de O Tempo Redescoberto:
No despertar do amor pela beleza no artista que tudo pode pintar, pela elegância na qual poderá descobrir motivos tão belos, seu modelo lhe será proporcionado por gente um pouco mais rica do que ele, junto à qual encontrará aquilo a que não está acostumado em seu ateliê de homem de gênio desconhecido que vende suas telas por 50 francos, um salão com móveis forrados de seda antiga, muitas luminárias, belas flores e belos frutos, belas roupas – gente relativamente modesta ou que assim pareceria a gente realmente de posse (que nem sequer sabe de sua existência), mas que por causa disso está mais à altura de conhecer o artista obscuro, apreciá-lo, convidá-lo, adquirir suas telas, do que pessoas da aristocracia que se fazem retratar como o papa ou chefes de Estado por pintores acadêmicos. A posteridade não encontrará a poesia de um lar elegante e de belas toaletes de nosso tempo no salão do editor Charpentier pintado por Renoir, mais do que no retrato da princesa de Sagan ou da condessa de La Rochefoucauld, por Cotte ou Chaplin? [tradução minha]
Conhecesse ou não os retratos das meninas Cahen d’Anvers, que poderia muito bem ter visto nas exposições da Galerie Bernheim-Jeune, a referência ao retrato de madame Charpentier com os dois filhos (porque, evidentemente, é disso que se trata) nos permite arriscar uma linha interpretativa. Com efeito, examinados pela perspectiva de Rosa e Azul, tanto esse quadro (que atualmente está no Museu Metropolitan de Arte, em Nova York) quanto o retrato de Jeanne Samary (hoje no Hermitage, em São Petersburgo) parecem marcar uma progressão. O retrato da família Charpentier é, por muitos aspectos, encantador, apesar de as crianças já serem aquelas loirinhas edulcoradas a que Renoir nos acostumou em seguida. A representação do interior é marcada por uma atenção ao valor cromático e decorativo de cada detalhe – o tapete, a tapeçaria com motivos japoneses, a mesinha e a cadeira no fundo – que antecipa Bonnard e até Matisse (talvez via Bonnard), pelo gosto da justaposição de padrões decorativos. O retrato de Jeanne Samary de corpo inteiro retoma o jogo de padrões decorativos, ainda que mais homogêneos. Se comparadas à atmosfera pacata e burguesa do quadro anterior, as tintas são mais encorpadas, dramáticas. O contraste entre o branco acetinado do vestido e o vermelho escuro do fundo, denso e aveludado, antecipa algo das relações cromáticas fundamentais de Rosa e Azul. Mas aqui tudo funciona melhor, porque Samary é uma atriz, e a teatralidade do conjunto lhe é congenial. A sensualidade quente do fundo a projeta para o primeiro plano, oferecida e aparentemente ingênua como uma Marilyn Monroe do século XIX, o busto inclinado numa postura meio enrijecida que lembra a garçonete (bem mais misteriosa) de Um Bar no Folies Bergère, de Manet, mas que provavelmente depende apenas do uso então corrente de espartilhos. Rigidez, de resto, que a atriz compensa pela postura estudada dos braços e das mãos, e pela leve inclinação do pescoço. A atriz veste perfeitamente o quadro, e o quadro a reveste sem esforço. É certamente um Renoir de aparato, longe tanto da descontração e do experimentalismo das primeiras aventuras impressionistas quanto da elegância declaradamente burguesa de madame Charpentier, mas, pelo que posso julgar a partir de reproduções, ainda é um quadro bem-sucedido.
Rosa e Azul passa do ponto. O domínio da vibração luminosa, que percorre a tela inteira sem nunca estancar, numa sucessão constante de transições cromáticas, é algo que poucos pintores, de qualquer época, poderiam produzir. A sutileza na elaboração dos diferentes tecidos, dos veludos quentes no fundo ao brilho das sedas e das rendas no primeiro plano, atesta um conhecimento aprofundado dos mestres antigos e uma capacidade incomum de traduzi-los para a nova linguagem. Mas o resultado, até, talvez, por excesso de virtuosismo, soa falso. Não há convicção nas posturas – a menina mais velha imita um contraposto estilo Luís xiv; a outra traz o polegar na cintura como um burguês de Frans Hals –, nem credibilidade na descrição do ambiente. As variações cromáticas que envolvem as meninas, embora extraordinárias, se tornam, por isso mesmo, gastronômicas: não parecem emanar das retratadas, como expressões de sua personalidade ou condição, mas encobrem-nas quase apesar delas, como um creme recobre um bolo. O que se vê, afinal, são duas meninas fantasiadas de pequenas Madame de Pompadour (a menor, Alice, lembraria muito mais tarde que o tédio das sessões de pose era compensado pelo prazer de vestir roupas tão bonitas), num lugar que, até pela convenção barroca da cortina levantada para mostrar outro ambiente, custamos a acreditar que seja a casa delas.
E, no entanto, talvez esteja justamente aí a verdade mais profunda da obra, nesse compromisso malsucedido entre a soberba de uma família no ápice da potência, em busca de uma integração definitiva no país que a hospeda, e a ambição de um artista de origem humilde com aspirações burguesas – extremos de uma escala social que se pretende harmoniosa, ou ao menos permeável, mas que na verdade está prestes a se romper. Alice e Elisabeth estão no meio disso, aprisionadas entre o brilho excessivo das roupas e o fundo quente e sombrio, levemente inquietante, com seus veludos antigos e objetos que mal se distinguem, como entre uma adulação excessiva e uma hostilidade surda e encoberta. Mal conseguem perfurar esse bloqueio: Elisabeth pelo sorriso levemente irônico que ainda persiste na fotografia de 1942; Alice, pelo olhar choroso.
Em 1882, um ano após Renoir pintar O Almoço dos Remadores e Rosa e Azul, a Union Générale, um banco católico, declarou falência. Embora o processo demonstrasse a conduta fraudulenta dos administradores, parte da imprensa acusou grandes famílias judias, em particular os Rothschild e os Ephrussi, de estarem por trás da bancarrota. Quatro anos mais tarde, o jornalista Édouard Drumont publica o libelo antissemita La France Juive, imediato sucesso de vendas. E um jornal sugere que os Ephrussi estão levando a economia russa à falência, em retaliação aos pogroms de 1881. É o ensaio geral do caso Dreyfus.
O salto para trás do gosto burguês do século XVIII para a onipotência aristocrática do XVII, a mudança do ar livre e os cabelos soltos de Irène para a cortina de veludo e as toaletes elaboradas de Alice e Elisabeth são os atos falhos que, depois de Auschwitz, talvez tenham se tornado o principal motivo de interesse do quadro. As obras de arte emitem sinais que eram incompreensíveis quando foram feitas, mesmo para seus autores. Talvez o Fausto de Goethe já prefigurasse os desastres ambientais dos séculos XIX, XX e XXI; talvez Anna Kariênina já encenasse a morte de Tolstói numa estação de trem. Mas só entendemos depois.
[1] Paris muda! Mas nada em minha melancolia/mexeu! Palácios novos, andaimes, blocos/Antigos bairros, tudo para mim se torna alegoria/E as queridas lembranças pesam mais que pedra.//Assim, diante do Louvre, uma imagem me oprime/Penso nos gestos loucos do grande cisne/Como os exilados, ridículo e sublime,/Roído sem repouso de desejo! E então em vós... [tradução minha].
*Na versão impressa, o museu J. Paul Getty Museum foi localizado erroneamente em Paris.