Hoje, enquanto escrevo, penso que Luisa já não está entre os vivos, mas que Emma Bovary, com suas contradições vulcânicas, seus arroubos, seu desmesurado bovarismo, continua viva IMAGEM: VÂNIA MIGNONE_2017
Duas mulheres
O bovarismo e um lugarejo nos pampas*
Leila Guerriero | Edição 135, Dezembro 2017
* Alguns nomes citados neste texto foram alterados.
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Vou dizer aqui algo que talvez não devesse dizer. Vou dizer que não li o que autores como Jean-Paul Sartre, Guy de Maupassant, Charles Baudelaire, Marcel Proust, Émile Zola, Julio Ramón Ribeyro, Roland Barthes e Harold Bloom escreveram sobre Gustave Flaubert e suas criaturas literárias. Talvez fosse mais certo dizer que li isso tudo, sim, mas esqueci, e que, em todo caso, não voltei a ler.
Seja como for, não tem importância.
Em A Orgia Perpétua, seu ensaio de 1974, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, falando de Madame Bovary, diz o seguinte: “Um livro passa a fazer parte da vida de uma pessoa por uma soma de razões que têm a ver com o livro, mas também com a pessoa.”
É sobre isso, portanto, que vou falar: sobre a soma de razões – e sobre a vida e a morte de María Luisa Castillo.
Todo o resto não tem a menor importância.
Era abril de 2012, e eu estava na Cidade do México, hospedada num bairro vagamente perigoso, num hotel junto a uma avenida onde, me avisaram, não devia andar sozinha de jeito nenhum. Mas lá estava eu, depois de ter andado na avenida – de todo jeito, sozinha –, sentada na mureta de um posto de gasolina, esperando por uma pessoa que iria entrevistar. Era um daqueles fins de tarde gelados e tropicais da Cidade do México, com as buzinas riscando o concreto e a luz do sol, avermelhada pela poluição, se espraiando pelas paredes dos edifícios, e pensei: “Aqui estou eu, mais uma vez longe de casa, esperando por alguém que não conheço, numa esquina aonde nunca vou voltar. E é exatamente esta a vida que eu quero ter.”
E porque sim, ou porque não penso mais nela, ou porque começava a ruminar isto que estou escrevendo, me lembrei, como num raio, do rosto avermelhado, dos dentes enormes, dos brincos de velha, do cabelo escorrido, do cheiro de pão e de perfume barato de María Luisa Castillo, que era minha amiga e que, por muito tempo, foi três anos mais velha que eu.
Então tirei um papel da bolsa e comecei a fazer estas anotações.
De Flaubert, sei o que todo mundo sabe: o primeiro de quatro filhos a vingar da união de um médico e uma mãe glacial, autor de Madame Bovary, pai do romance moderno, gladiador do estilo indireto livre etc. etc. etc. Não tenho nada a dizer sobre essas coisas todas. Mas, se é verdade que Oscar Wilde, falando do personagem de Balzac, disse que “a morte de Lucien de Rubempré é o grande drama da minha vida”, eu poderia dizer, guardadas as abismais proporções, que a vida e a morte de Emma Bovary fazem parte do que sou. Ou, para não soar tão bombástica, poderia dizer que me marcaram.
Não era nem o melhor nem o pior dos tempos. Não era nem a melhor nem a pior das cidades. Eram os anos 70, era a infância, era Junín, onde nasci, 20 mil habitantes numa região rica, agrícola, de criação de gado, a 250 quilômetros de Buenos Aires. Eu era filha de um engenheiro químico e de uma professora, e María Luisa Castillo era a irmã caçula de um amigo do meu pai, um mecânico de automóveis chamado Carlos. No dia em que a conheci eu tinha 8 anos, ela 11, e me pareceu feia. Tinha o rosto grande, comprido, as bochechas coradas por um rubor que eu associava às pessoas pobres, e uma dentuça medonha. Ela me disse que não se chamava Luisa, e sim María Luisa, e eu pensei que era nome de velha.
Luisa era discreta, tímida, pacífica. Morava num bairro afastado, numa casa com chão de terra batida, sem água encanada nem esgoto. Dormia, com um irmão mais velho e os pais, num quarto separado por um corte de pano da sala e da cozinha. Não me impressionava que ela fosse pobre, mas sim que seus pais fossem velhos. Eu achava os meus, que nem tinham chegado aos 30, arcaicos, portanto a mãe da Luisa, que devia ter 55 anos e três dentes, e seu pai, um pedreiro ínfimo de mais de 60, deviam me parecer dois seres à beira da morte.
Não sei o que fazíamos quando estávamos juntas, mas sei que éramos inseparáveis. Eu tinha 9 anos quando lhe prometi meu jogo de tabuleiro preferido em troca de ela me explicar como eram feitos os bebês. Ela aceitou, e no banco de trás do carro dos meus pais a crivei de perguntas sobre a dureza, as formas, os buracos, até que ela chorou de vergonha. Quando terminou, não lhe dei nada: nem meu jogo, nem sequer um obrigado, imagino. Não sei por que ela era minha amiga. Não sei o que lhe deixei. O que lhe dei.
Um resumo bem grosseiro – e bem injusto – diria que Madame Bovary conta a história de Emma, uma mulher casada com Charles Bovary e mãe da pequena Berthe, que se envolve em amores com um homem chamado Rodolphe, e depois com outro chamado Léon, até que, atolada em dívidas e prestes a perder tudo, termina por se suicidar tomando arsênico em pó.
Eu li Madame Bovary aos 15 anos e por muito tempo achei que não tinha entendido o livro direito. Porque a tal Emma não me pareceu o grande personagem literário que eu esperava, mas uma mulher tão boba como as garotas da minha cidade, que faziam castelos no ar só para vê-los se espatifar na catástrofe da primeira gravidez ou do segundo emprego miserável. Emma Bovary era uma cabeça-tonta ciclotímica que se dedicava a arruinar a própria vida e a dos outros perseguindo um ideal que, de resto, nem chegava a ficar claro. Pois, afinal, que diabos queria Emma Bovary? Ser freira, ser virgem, ser swinger, ser milionária, ser mãe exemplar? Eu não via nada de errado no fato de ela trair o marido (na verdade, para mim, essa era a melhor parte), mas a pieguice galopante dos seus devaneios me deixava nervosa.
Emma fantasiava com Rodolphe com o mesmo grau de delírio com que minhas colegas e eu fantasiávamos com John Travolta, só que, enquanto minhas colegas e eu sabíamos que John Travolta não passava de um pôster, ela nem sequer era capaz de perceber o óbvio: que Rodolphe não era um homem para se apaixonar, e sim um daqueles patéticos galãs de aldeia que engolem mulheres e depois cospem seus ossinhos (uma figura que, aliás, havia aos montes em Junín). A gana devoradora com que ela se atirava a Léon – pedindo que lhe escrevesse poemas, que se vestisse de preto, que deixasse a barba crescer – não me provocava nenhuma emoção, apenas vergonha alheia, e os arroubos que a faziam oscilar entre mãe amorosa e mãe indiferente, entre esposa amantíssima e mulher despeitada, me cansavam. Transpostos à vida real, todos esses traços somados resultavam numa mulher insuportável.
Mas, assim como me incomodava a humilhante nudez emocional com que Emma Bovary se entregava a seus amantes, achava muito autêntico que Berthe, sua filha, não tivesse amolecido seu coração, e muito razoável que ela fizesse sexo fora do casamento não com um, mas com dois homens. E seu suicídio, coroado com a morte do marido e a total orfandade da filha, era de um egoísmo tão sublime, tão selvagem, que chegava a ser deliciosamente real.
Mas, afinal, Emma Bovary era boa, era má, era covarde, era corajosa, era medíocre? Por que não me dava uma vontade louca de ser ela, assim como tinha me dado uma vontade louca de ser Tom Sawyer, ou Holden Caulfield, ou La Maga?
Agora, passados tantos anos, é fácil entender o que aconteceu: Emma Bovary insuflou em mim enormes doses de confusão, numa época em que eu já acumulava confusão em doses monumentais.
Quando Luisa fez 14 anos, seus pais – que contrariando minhas previsões ainda não tinham morrido – lhe deram permissão para sair à noite, maquiar o rosto e usar salto alto. Apesar da minha desilusão ao descobrir que ela se maquiava pouco e usava saltos discretos, sua incursão na vida noturna me permitiu entender o mundo das discotecas, saber quando era prudente responder com entusiasmo a um beijo de língua ou a partir de que ponto era “embaixo demais” para a mão de um rapaz. Quando íamos passear pelo Centro, eu enrolava a saia na cintura para que parecesse uma míni, e a Luisa me emprestava seu batom sabor morango. De tudo aquilo que a evoca, nada me empurra com tanta violência até ela como a lembrança daquela substância pegajosa com que eu lambuzava os lábios e que me fazia sentir a mais temível, a mais indomável de todas as potrancas. Apesar disso, não podíamos ser mais diferentes. Eu gostava de ler, e ela não; eu gostava de escrever, e ela não; eu gostava de cinema, e ela não; eu era vulgar, e ela não; eu era esquiva, ladina, sombria, difícil, matreira, arisca, bruta, brutal, furiosa, feroz, arbitrária, e ela não.
Há uma foto em que aparecemos juntas: eu de cabelo curto, short vermelho e uma camiseta de mendiga com manchas de chocolate; Luisa de meias pelo joelho, saia florida e uma camisa branca abotoada até o pescoço. Ela era uma menina certinha; eu, um demônio unissex. Sem que ela nunca me fizesse mal algum, eu era capaz de repetir por horas a fio a palavra “punheta”, só para vê-la corar.
Não sei por que ela era minha amiga. Não sei o que eu lhe deixei. O que eu lhe dava.
É a primeira vez que estou contando essa história. Quando me falha a memória ou sinto que escorrego em lembranças falsas, telefono para meu pai e pergunto, mesmo sabendo que as coisas ligadas à morte lhe fazem mal. Em julho de 2012, meu pai e seu amigo Carlos, o irmão mais velho da minha amiga Luisa, passaram um domingo pescando. Dali a uma semana, Carlos morreu de câncer. Mas, mesmo sabendo que as coisas ligadas à morte lhe fazem mal, quando me falha a memória ou sinto que escorrego em falsas lembranças, eu telefono para meu pai e lhe pergunto pela irmã morta do seu amigo que havia acabado de morrer. E faço assim porque vivo disso – de perguntar para contar histórias – e porque essa é a vida que eu quero ter. Com todos e cada um dos seus muitos, seus muitíssimos danos colaterais.
Eu sempre escrevi, desde muito pequena. Em cadernos, no verso dos rótulos, em blocos, em folhas soltas, no meu quarto, no carro, no escritório, na cozinha, no sítio, no quintal, no jardim. Minha vocação, imagino, estava clara: eu era alguém que queria escrever. Mas, enquanto a escrita avançava à vontade nos espaços domésticos – jardim, quintal, quarto, escritório, cozinha etc. –, eu não tinha a menor ideia do que fazer para tirá-la dali: o que fazer para, literalmente, ganhar a vida com isso. Estudar letras? Oferecer meu trabalho nas editoras? Trabalhar numa lanchonete e escrever nas horas vagas? Por muito tempo essa incerteza permaneceu oculta, mas, quando fiz 15 anos e tive que pensar no futuro, os diques se romperam e aconteceu o que tinha que acontecer: angústia e confusão inundaram tudo. E em meio ao desastre eu me agarrei a duas abstrações perigosas: meu obscuro otimismo e a certeza de que, entre a espada e a parede, eu sempre poderia escolher a espada.
Foi nesses anos confusos que cheguei a Madame Bovary. E já sabem o que aconteceu.
Luisa, enquanto isso, terminou o colégio, começou a trabalhar como secretária do meu pai e, paralelamente, entrou numa licenciatura em biologia. Isso lhe permitiria poupar algum dinheiro, ter uma profissão para depois ir embora e estudar, mais e melhor, num importante instituto biológico de Buenos Aires.
Quero dizer que Luisa tinha um plano. E que eu, ao contrário, não tinha nada.
Enquanto escrevo me deparo com um texto chamado “Contra Flaubert”, do escritor chileno Rafael Gumucio, que diz que, para Flaubert, Madame Bovary é “uma vingança contra o pai, contra os tios, contra toda a cidade de Rouen e arredores, e mais amplamente, é um romance contra as pessoas que trabalham e têm filhos, contra as mulheres infiéis, mas também contra os homens fiéis, contra os livros, contra as freiras, contra os republicanos, contra os carros de boi, os juízes, os boticários e contra a lei da gravidade”. E, enquanto leio, penso que é preciso metade de uma vida para entender certas coisas que acontecem em minutos.
Eu tinha 17 anos quando troquei Junín por Buenos Aires para fazer um curso que pouco me importava, mas que me permitiria morar sozinha, virar gente grande, ter algo semelhante a um plano.
Luisa ficou em Junín, fazendo sua licenciatura, trabalhando com meu pai, e começou a namorar um rapaz que, assim como ela, tinha nome de velho: Rogelio. Pouco depois, ficou grávida e se casou.
Não me lembro de ter ido ao seu casamento, mas lembro, sim, que dois anos depois, durante uma visita a Junín, nós nos encontramos, e ela me contou que ia largar o emprego, interromper os estudos e se mudar para um vilarejo de 900 habitantes chamado Germania, onde seu marido tinha comprado uma farmácia. Recebi a notícia como se algo terrível fosse acontecer comigo, mas Luisa estava sorridente, parecia feliz, e eu pensei que talvez nunca a tivesse conhecido de fato.
Penso agora que Madame Bovary talvez seja um romance contra os filhos, contra o futuro, contra as ilusões, contra a intensidade, contra o passado, contra o amanhã, contra as feiras, contra as carruagens e contra os buquês de violetas: um romance contra si mesmo, cujo maior milagre reside na eficácia com que inocula em seus leitores a incondicionalidade fulminante que só personagens como Emma ou, digamos, Hannibal Lecter, são capazes de produzir: uma incondicionalidade incômoda, criada por todos os motivos errados, mas absolutamente radical. Trocando em miúdos: por mais que eu não possa gostar dela, seguiria seus passos até o mais miserável limite.
Luisa se mudou para Germania no final dos anos 80. O vilarejo, que ficava a uns 100 quilômetros de Junín, na época estava ligado ao mundo apenas por uma estradinha de terra que com a chuva ficava intransitável. Ela era mãe e cuidava da farmácia do marido, enquanto eu, em Buenos Aires, continuava desorientada, mas explodindo de euforia, rodeada de novos amigos com hábitos dignos de cavaleiros do apocalipse.
Até que, em algum momento, acho que simplesmente me esqueci dela.
Não sei onde nem como ouvi pela primeira vez a palavra bovarismo. Uma definição em muito sumária diria, ecoando a Wikipédia, que bovarismo é “o estado de insatisfação de uma pessoa produzido pelo contraste entre suas ilusões e a realidade frustrante”. Hoje, enquanto escrevo, penso que Luisa já não está entre os vivos, mas que Emma Bovary, com suas contradições vulcânicas, com seus arroubos, com seu desmesurado bovarismo, continua viva. Para meu infinito deleite, para minha profunda indignação.
De vez em quando eu recebia notícias tristes de Germania: a estrada de terra ficava intransitável muitas vezes; a farmácia não ia bem e as dívidas se acumulavam; Luisa, de novo grávida, tinha abandonado os estudos.
Em Buenos Aires, eu tinha me formado numa profissão que nunca exerci e, fiel ao meu obscuro otimismo e à minha teoria da espada e da parede, deixei um texto no Página/12. O diretor do jornal o publicou e, sem saber nada de mim, me ofereceu um emprego. Assim, da noite para o dia, em 1991, virei jornalista e entendi que era isso o que eu queria ser desde sempre e nunca mais quis ser outra coisa na vida.
Então, certo dia de certo mês de certo ano que não consigo precisar, enquanto eu voltava do jornal, ou me apressava para chegar ao cinema, ou preparava um arroz, ou fazia sei lá o quê, minha melhor amiga de infância foi até os fundos da farmácia do marido, enfiou a mão num pote de arsênico e comeu, comeu, comeu.
Foi meu pai quem me ligou para avisar.
Do velório, que foi feito em Junín, não me lembro de quase nada. Sei que a toquei, porque achei que tocá-la era um sinal de respeito, um jeito de lhe dizer: “Não tenho nojo de você.” Luisa estava com os lábios fechados com cola e em volta do pescoço tinha uma faixa branca bordada, que me revoltou, porque fazia com que ela parecesse uma idiota. Depois alguém me explicou que era para cobrir as manchas. A certa altura ouvi um grito vindo da rua: “Assassino filho da puta!” Quando espiei pela porta, vi que os parentes, os amigos, os vizinhos, se apinhavam em volta de Rogelio, o marido de Luisa, que tentava descer de um carro. Comentava-se que ele era infiel, e a conclusão geral era óbvia: Luisa tinha se matado por culpa dele, porque, sem isso, as moças como Luisa não se matam.
Mas fazia muito tempo que eu sabia que sim. Que basta um passo em falso e uma encruzilhada.
Não me lembro de ter ido ao cemitério, mas meu pai diz que eu fui, sim, e que até ajudei a carregar o caixão.
Depois fiquei sabendo que, antes de morrer, Luisa havia implorado desesperadamente que a salvassem, mas não conseguiram levá-la até um hospital porque as estradas estavam alagadas.
E foi esse, bem assim, o final de tudo.
Não há conclusão, não há fogos de artifício. Não há epifania.
Não se sabe, enfim, o que pensar.
Eu, a menina obscura com a cabeça intoxicada de fantasias descomunais, tive a vida que queria ter. Luisa, a menina boa e simples, que só queria se casar e ter filhos, está morta. Fim da história.
Conclusões? De tão óbvias, chegam a dar nojo: que a mais potencialmente bovarista das duas acabou sendo a menos bovariana da história. E que a menos bovariana das duas se revelou uma bovarista literal.
Preciso ainda dizer o evidente?
Luisa morreu num mundo em que não havia internet nem “doutor Google”, e foi pela divina graça de Emma Bovary que eu soube, na época, que, depois de se empanturrar de arsênico, por um bom tempo minha amiga não teve nenhum sintoma além de um desagradável gosto de tinta na boca, e que só mais tarde vieram, nesta ordem, as náuseas, os vômitos, o frio glacial, a dor no abdômen, os vômitos de sangue, as cãibras, a asfixia.
Passaram-se os anos e, em algum momento, Madame Bovary deixou de ser para mim um livro sobre gente medíocre que se julga especial e começou a ser um comentário implacável sobre a humilhação e o amor, uma feroz advertência sobre a importância das nossas decisões e sobre o perigo de estarmos vivos.
Quase não penso na Luisa. Não vejo seus filhos. Não voltei a ver seu marido. Mas Madame Bovary faz parte do que eu sou. Ou, para não soar tão bombástica, digamos que me marcou. Ou, para soar ainda menos bombástica, digamos que é provável que meu lema anarcoburguês – fazer o que me dá na telha sem foder com a vida de nenhum próximo – seja uma reação àquelas primeiras leituras em que Emma Bovary me parecia um mecanismo, desnorteado e canibal, que tudo devorava em busca de um sonho confuso, sem parar para pensar nos danos, nos temíveis danos, nos inevitáveis danos colaterais.
Passaram-se muitos meses desde a tarde em que comecei a fazer estas anotações, e anos desde que eu era uma adolescente com angústia e sem planos. E, de novo, não há conclusão, não há fogos de artifícios. Não há epifanias. Há evidências: Luisa está morta, e Madame Bovary, como uma máquina de atravessar séculos, continua a me sussurrar sua mensagem fulminante, sua terrível canção: cuidado, cuidado. Cuidado.
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