Nos últimos anos, o governo Lula promoveu 240 concursos e 127 mil novos servidores tomaram posse. Um candidato demora cerca de dois anos e meio até conseguir passar. “Concurso público: a dor é temporária, o cargo é para sempre”, sentencia um guru ILUSTRAÇÃO: FILIPE JARDIM_2010
Emprego público: como conseguir o seu
Cursinhos, editoras e bancas de jornal: a indústria dos concursos públicos.
Renato Lemos | Edição 51, Dezembro 2010
Tivesse mais fios de cabelo, o professor Lincoln Moura os arrancaria todos de uma só vez. Há mais ou menos vinte minutos ele tentava, sem sucesso, explicar à turma que assistia à aula “Coordenação sindética e assindética” o que são, afinal, as orações coordenadas explicativas. Moura andava de um lado para o outro, punha as mãos na cintura e usava todas as armas do seu arsenal para conquistar a plateia. O grau de desânimo podia ser aferido pela qualidade decrescente das piadinhas, que a essa altura já atingia níveis francamente alarmantes: “Ninguém gosta de oração, só quem gosta de oração é padre”, arriscava, sem muita convicção. Nada. A turma permanecia dispersa e silenciosa.
Eram três da tarde no Centro do Rio de Janeiro, fazia um calor dos diabos na rua e nem mesmo os cinco aparelhos de ar-condicionado eram capazes de melhorar os ânimos. Moura bufava. Já estava prestes a entregar os pontos quando Michelle, uma secretária loura de calças muito justas, pediu licença, entrou na sala e, com a voz entusiasmada de uma daquelas moças que fazem promoção em supermercado, soltou a bomba capaz de virar o jogo em favor do mestre: “Saiu o edital do INSS!” Moura esfregou as mãos e chegou a esboçar um sorrisinho.
Lincoln Moura é professor e sócio-proprietário do PLA, um curso de português especializado em concursos públicos. É o L no meio do nome. Ele dá aulas andando sobre um tablado de 1 metro por 10 e utiliza um microfone daqueles usados pela cantora Madonna e por atendentes de telemarketing. Moura é um sujeito atarracado e musculoso, com físico semelhante ao do jogador Roberto Carlos. Tem 45 anos, uma tatuagem tribal no ombro direito e costuma entremear tudo o que diz com gracinhas dirigidas aos alunos. “Esqueçam os vícios de linguagem. Qualquer vício é ruim. Dizem que até sexo demais faz mal. Alguém aí sofre desse vício?” O pessoal gosta. Por saber misturar entretenimento com bons resultados, Moura é considerado um mago dos concursos públicos.
Diante dele estavam 107 alunos – 69 mulheres e 38 homens, apenas um deles de gravata. A maior parte dos alunos é de advogados recém-formados sedentos por um lugar no serviço público. Alguns entram na sala com a aula em andamento, ocasião em que fazem uma mesura inclinando o tronco em direção a Moura e, invariavelmente, tratando-o como mestre: “Boa tarde, mestre.”
É uma turma de lotação média, a da tarde. De noite, quando as aulas reúnem pessoas que saem do trabalho, serão 159 alunos na sala. Para cada um deles, a frase “Saiu o edital”, seja lá do que for, tem o poder estimulante de uma droga poderosa.
O edital do INSS promete 2 500 vagas para cargos de técnico de segurança (nível médio) e analista (nível superior). O primeiro paga 2 980 reais, já incluído o auxílio-alimentação; o analista ganha mais: 4 917 reais, também incluído o vale-refeição. O INSS acena ainda com uma gratificação de desempenho que poderá elevar a remuneração para quase 6 mil reais. Na classe do professor Moura, ninguém tem salário parecido.
A corrida dos concursos ficou mais acirrada após a Constituição de 1988, que obriga a realização de prova de seleção para ocupação dos cargos públicos. Sem levar em conta as distorções permitidas pela nomeação para postos de direção, os DAS, nos últimos oito anos, apenas no âmbito do Executivo, o governo Lula promoveu 240 concursos e 127 mil novos servidores tomaram posse.
Em média, um candidato demora cerca de dois anos e meio até conseguir passar no concurso – isso quando passa. A maior parte deles continua pelas salas de aula. Quando o professor Lincoln Moura pergunta quem fez a prova do BNDES, realizada uma semana antes, mais da metade de sua turma levanta a mão. Moura então pergunta se alguém acha que passou – e aí só oito braços ficam erguidos.
Uma pesquisa do IBGE realizada em 2008 mostrou que o emprego público era o sonho profissional de 43% dos brasileiros de classe média, passando de longe antigas carreiras de prestígio como médico, advogado ou engenheiro. Os salários no setor público, especialmente no nível médio, são quase o dobro dos pagos no privado. Segundo números do Ipea, em 2007 havia 10 168 mil servidores públicos em todo o país – ou 11,3% da população empregada. Está longe de ser o maior percentual do mundo. Na Dinamarca, com uma renda per capita de 56 mil dólares por ano (contra 10 mil do brasileiro), 39,2% dos empregados são servidores públicos.
“Na Europa, a iniciativa privada está esfacelada e sobra para o Estado a tarefa de resguardar o trabalhador, mas a situação está difícil. A Inglaterra está demitindo 25% dos seus servidores. Aqui, a explosão dos concursos públicos reforça ainda mais a ascensão da classe média nos últimos anos”, analisa Sylvio Motta, 47 anos, professor de direito constitucional e um dos donos da Campus, a maior editora do país na linha dos concursos. Um título de interesse geral editado por ele – como Português para Redação, por exemplo, que pode ser utilizado em qualquer concurso – vende 3 mil exemplares em um mês.
Motta também é dono de um curso preparatório, a Companhia dos Módulos. Segundo ele, a profissionalização do seu ramo de negócios cresceu na mesma medida em que diminuiu a inteligência dos candidatos. “O português é especialmente ruim. Vem da base.” Motta faz um paralelo entre a performance do candidato nos concursos e sua eficiência depois de aprovado: “Ser aprovado num concurso não tem a ver com capacidade intelectual, mas com disciplina e treino. O primeiro colocado nem sempre será um bom servidor. A inteligência emocional, que é fundamental para o exercício do cargo, não se ensina nos cursinhos”, diz, com o vocabulário da sociolinguística tinindo de novo.
A intimidade com o idioma motivacional – que utiliza obrigatoriamente expressões como inteligência emocional, foco, comprometimento e conquista pessoal – é, atualmente, indispensável a um professor. Motta é experiente no assunto, já foi aprovado em três concursos, mas sempre deu um jeito de largar o emprego. “Prefiro o sobressalto da iniciativa privada, a corda bamba. Isso aguça a criatividade.” Ele mantém um blog de concurseiros, escreve uma coluna de jornal, dá aulas a distância, faz palestras motivacionais, participa de debates sobre administração pública, além de, diariamente, entrar em sala de aula para ensinar os macetes de como se dar bem nas provas. Motta – como muitos de seus alunos – vive dos concursos.
Há concurso para tudo, mesmo para perfis que, aparentemente, não se enquadram na atividade específica do órgão público. No mesmo período em que contratava especialistas em microbiologia (nível superior, com salário que pode chegar a 13 mil reais), a Fundação Oswaldo Cruz promoveu uma seleção para vagas de técnico em edificações e técnico em enfermagem. O salário inicial de quem exercerá a função de técnico em criação e manejo de animais de laboratório é de 2 800 reais. É o mesmo que ganhará quem levar a vaga para manutenção de insetário, função que exige desprendimento no trato íntimo com aranhas e percevejos.
Nas semanas que antecederam a prova da Fiocruz, as aulas do intensivo do PLA iam das nove da manhã às sete da noite, inclusive aos sábados. Domingo a jornada terminava às duas da tarde. As salas estiveram sempre lotadas. Lincoln Moura chegou a dar catorze horas seguidas de aula de português. Em vão. Nenhum de seus alunos foi aprovado. “Concurso bom é concurso com muita vaga, por isso esse do INSS é bom”, explica para a turma. “Não adianta iludir vocês com concurso que tem uma única vaga, aí só papai do céu ajudando. Tem chance, mas é muito difícil passar.”
O professor aproveitou a última frase – dita logo após a secretária Michelle circular entre as carteiras e distribuir fôlders anunciando o lançamento de turmas exclusivas para o INSS – para fixar na cabeça dos alunos a noção de conjunção. Ele escreveu no quadro-negro com uma letra redonda: “Tem chance, mas é muito difícil passar.” Moura explica que mas é uma conjunção adversativa. Enumera outras: porém, no entanto, contudo, todavia. Virando-se para a plateia, ensina que as conjunções adversativas são importantes para mostrar ao candidato os reveses que podem lhes atravessar o caminho até a aprovação. “As derrotas não são fáceis de engolir”, disse antes de dar uma pausa e acrescentar, “mas aumentam o prazer das vitórias”.
As conjunções adversativas são ótimas para dar exemplos de superação durante as aulas, mas não são as preferidas do professor. Moura adora as conclusivas. Voltou para o quadro-negro e escreveu: “Eu estudo no PLA, logo tenho grandes chances de passar no BNDES e viver uma vida melhor.” Os alunos começaram a se animar. Listou então outras conjunções conclusivas: assim, portanto, por isso, então. Enquanto falava, uma faxineira de uniforme azul entrou na sala trazendo balde e esponja, e pôs-se a limpar o quadro-negro com zelo extremado.
O terreno estava preparado. Moura pegou o giz e escreveu uma nova frase na lousa imaculada. “Joãozinho frequenta as aulas regularmente, portanto está apto a passar no concurso do INSS.” Os alunos riram. Com o público no bolso, Moura completou: “E frequenta sem trema, hein! Prestem atenção na nova ortografia! Não tremam jamais!”
Cinco minutos depois de terminada a aula, Moura ainda não conseguira chegar até sua sala. Uma fila de alunos pedia análises sobre bancas examinadoras, buscava elucidações acerca de questões de provas antigas e, principalmente, solicitava descontos nos preços das apostilas e das mensalidades. Lincoln é gentil com todos. Ele pega um dos folhetos que anunciam o curso, escreve 10%, assina embaixo e o devolve ao aluno. É o vale-desconto. No PLA, o aluno paga 70 reais por mês. A aula avulsa custa 25 reais, pagos obrigatoriamente antes de seu início.
A sala de Lincoln Moura fica permanentemente fechada e, para quem tem dúvidas, há uma placa de “Proibida a entrada” pendurada na porta. É um lugar pequeno, com dois ambientes separados por uma divisória de compensado. Há uma mesa de madeira, uma estante repleta de apostilas, uma cadeira estofada, várias garrafas de água mineral espalhadas e uma janela de onde se pode espiar o verde do Aterro do Flamengo.
No chão da sala, ao lado da mesa, está deitado o professor Alexandre Soares. Alexandre é o A do PLA. Deitado sem camisa no chão frio, ele aproveita o intervalo entre as aulas para dar um drible na enxaqueca que não lhe dá trégua desde a noite anterior. Culpa da aula “Colocação de pronomes oblíquos átonos”, que se estendeu até muito tarde, obrigando-o a chegar de madrugada em Niterói, onde mora.
Soares é o protótipo de pessoa que boa parte dos alunos gostaria de ser: 38 anos, feições do Paulo Ricardo na época do RPM, a palavra “Deus” tatuada no braço direito, um próspero negócio no ramo da educação e, principalmente, um contracheque de fiscal da Receita Federal no bolso. O professor soube tirar proveito de sua intimidade com os labirintos pedagógicos dos concursos para também passar no seu. É um servidor público. O salário inicial de um fiscal de renda está em torno de 8 mil reais.
Alexandre e Lincoln se conheceram dando aulas em cursos de pré-vestibular. Com a Constituição de 1988 eles farejaram uma oportunidade. Dez anos depois nasceu o PLA – o P significa simplesmente português. O curso agora tem filiais em Niterói, Duque de Caxias e Barra da Tijuca. Ao todo são cerca de 7 mil alunos atrás de todo tipo de aula de português que possa levá-los ao êxito. Nas segundas-feiras, por exemplo, eles podem ter uma aula muito simples de “Regência verbal”. Terça é o dia de “O emprego da vírgula”. Às quartas, as complexas lições de “Anáforas, catáforas e dêixis”. E, às sextas-feiras, “Funções morfossintáticas da palavra que I e II”. As aulas sobre o uso correto da palavra que são o xodó dos professores. E costumam botar gente pelo ladrão.
“A princípio, quem está aqui é para aprender português e passar no concurso, mas a gente sabe que muitos não fazem nem questão de aprender”, diz Moura que, ao contrário de seu sócio, não quis acrescentar o funcionalismo público às suas atividades de professor e empresário. “Ensinar é minha cachaça”, diz. Ele começou a se interessar pelo português lendo gibi do Recruta Zero e atualmente fala com intimidade sobre os parênteses subjetivos de Machado de Assis.
Nada o anima tanto quanto estar diante de alunos, especialmente quando as turmas estão cheias. “É o meu Maracanã”, não se cansa de repetir. Moura, como o presidente Lula, gosta tanto das metáforas quanto de futebol. “Candidato tem que estar preparado como um artilheiro na área. A bola bate uma vez na trave, bate outra, mas um dia ela entra”, ensina.
Há doze anos, os dois sócios perceberam que o português é a única matéria universalmente exigida em todos os concursos nacionais. Decidiram então montar uma bem-sucedida grade de ensino composta de módulos circulares: orações, vícios de linguagem, ortografia, técnicas de redação e assim por diante. O aluno pode começar as aulas em qualquer fase do ciclo. Moura diz que dá certo. “Nossos alunos têm 90% de acerto em português, é a nossa especialidade. Já o resto não é muito com o PLA.”
O resto, dependendo da área pretendida, pode ser direito administrativo, matemática financeira, informática, lógica ou ética do servidor na administração pública. As provas, elaboradas por bancas como Cesgranrio, Cespe/UnB ou FGV, exploram os conhecimentos específicos do candidato. Tem de tudo. Quem concorreu a uma vaga de operador de triagem dos Correios, de nível médio, teve que responder, na prova de informática, qual a função da tecla ESC no programa Microsoft Internet Explorer. (A resposta certa era a letra e: “Parar o carregamento de uma página.”)
Ingrid dos Santos é negra, tem 21 anos, dentes muito brancos e diz que entender de informática hoje em dia é quase tão importante quanto saber regras de acentuação. Ingrid não é boa em português. Ela pagou 35 reais para se inscrever no concurso para auxiliar administrativo da Secretaria de Saúde do município do Rio de Janeiro. Fará provas de português, matemática e noções de informática. Ela está atrás de um salário de 810 reais por mês – fora os 9 reais diários de auxílio-alimentação. É quase o mesmo que recebe o pai, que trabalha com transporte de crianças em uma escola particular na Zona Norte.
“O que eu quero mesmo é um lugar seguro, saber que no final do mês meu salário vai estar lá me esperando. Quer melhor que isso?”, pergunta. Ela se formou no ensino médio há dois anos e, desde então, “estuda pra concurso”. Segundo ela, é a melhor forma de uma garota negra entrar no mercado de trabalho. “As entrevistas nunca são boas. As pessoas ainda têm preconceito, pode escrever.” Ingrid costuma utilizar o tempo que gasta no trajeto de casa, no Engenho Novo, até o Centro da cidade para repassar as aulas. Ela grava tudo que o professor diz e vai escutando no ônibus. Diz que o fone enfiado no ouvido ajuda a encaminhar as lições diretamente para o cérebro. Às vezes, ela admite, deixa as aulas de lado e passa para suas músicas preferidas. Ingrid é louca pela Beyoncé.
Até se interessar por um emprego público, Ingrid queria ser médica. Tentou dois vestibulares e não conseguiu. Diz que, se entrar na Secretaria de Saúde, vai separar uma parte do salário para pagar uma faculdade de enfermagem. Na família dela não tem ninguém com diploma universitário. Ela conta que já fez duas promessas para passar nas provas. A primeira foi para são Judas Tadeu e a segunda para santo Expedito, dois santos conhecidos por cuidarem de causas impossíveis. “Não aguento gramática, mas tenho que encarar, né? Quem sabe com uma ajudinha?” Enquanto a graça não chega, ela aguarda, sentada num degrau de escada, a sua vez de conversar com o professor Lincoln Moura. Ingrid quer um desconto na mensalidade.
O PLA do Centro funciona em um prédio art déco, com chão de ladrilhos bicolores e escadaria de mármore, na avenida Presidente Wilson, miolo da região conhecida como Concursolândia, no Rio. Entre a Cinelândia e a praça Ana Nery, estão concentrados 60% dos cursos preparatórios do Centro. Num domingo de outubro, no meio do feriado enforcado de Nossa Senhora Aparecida, o estacionamento que liga a rua México à Rio Branco está lotado de carros. Os flanelinhas cobram 10 reais pela vaga na área.
O comércio na Concursolândia tem seu principal ponto de encontro na Total, uma banca de jornal especializada em material para provas. Ali, o interessado tem acesso a todo tipo de apostila que essa terra já criou. A Total é uma daquelas bancas confortáveis, em que o freguês tem espaço para circular como se estivesse numa loja de conveniências. Junto ao caixa, há uma cestinha com cigarros, chocolate, jujuba e barrinhas de cereal. No mundo dos concursos públicos, levar uma barrinha na bolsa é quase tão importante quanto ter a matéria decorada na ponta da língua.
Pelas paredes da banca estão disponíveis livros com material para a seleção da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, para o Tribunal de Justiça e para a Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro, a Comlurb, todos por 45 reais. Também é possível encontrar uma coleção de cadernos de desafio de lógica, cujo título soa como um grito de guerra de torcida organizada – “Passar ou passar”. Junto à porta, uma estrutura de arame exibe a coleção de literatura de bolso da L&PM. A Arte da Guerra, livro multiuso empregado como ferramenta motivacional por CEOs de multinacional, técnicos de futebol e demais profissionais que acreditam na possibilidade de encapsular toda a sabedoria do universo em poucas frases, sai por 9,50 reais. Sobretudo, na Total não falta o campeão de vendas do mundo dos concursos: a Folha Dirigida.
A publicação foi criada em 1985, com periodicidade quinzenal. Funcionava numa sala de 24 metros quadrados no edifício do cinema Odeon, na Cinelândia. O primeiro número foi distribuído para 117 bancas do Rio de Janeiro. Eram oito páginas, a maior parte delas ocupada por classificados de empregos. Havia ainda pequenas matérias comentando concursos, um ou outro edital de provas e editoriais sobre educação. Não agradou muito. Dos 3 mil exemplares da primeira edição, 2 680 encalharam.
Mais ou menos como todos os negócios ancorados no mundo dos concursos públicos, o pulo do gato aconteceu com a Constituição. Virou uma referência. Já em 1987, o jornal transformara-se em semanal e passara a circular com doze páginas. A primeira página, impressa em azul e branco, serviu de modelo para várias outras publicações voltadas para concursos. Em 1993, mudou para um prédio de quatro andares na rua do Senado. Em 1997, a Folha passou para um novo prédio, na rua do Riachuelo, no mesmo lugar onde havia funcionado o Diário de Notícias. Pertinho das redações dos grandes jornais cariocas.
A sede da Folha Dirigida é um prédio de 6 500 metros quadrados, sete andares, acabamento luxuoso, portaria de granito e fachada neoclássica. O nome do edifício, Barbosa Lima Sobrinho, é uma homenagem àquele que foi por três vezes presidente da Associação Brasileira de Imprensa. Há três anos, passou a circular duas vezes por semana. Em época de editais disputados – como os que envolvem cargos na Polícia Federal, por exemplo –, vai às ruas com uma tiragem de 180 mil exemplares. Num bom mês, vende quase 1,5 milhão de jornais.
As edições continuam trazendo matérias sobre educação, mas quem compra a Folha Dirigida está atrás de editais de concursos, provas comentadas e notícias sobre novas seleções. Cerca de 30% das páginas são ocupadas por anúncios. O jornal também tem um site para que o candidato identifique o seu perfil – e, de quebra, a vaga que o espera do outro lado do concurso. Em novembro passado, por exemplo, a pessoa que preenchesse o formulário dizendo ser formada em direito e estar à procura de um emprego público na Região Sudeste, receberia, numa única semana, 51 dicas de inscrições. O concurso do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro estaria entre as sugestões.
Flávia Oliveira tem 34 anos e sabe pouco de português, informática ou matemática financeira – ela é professora de educação física. Tentou, sem sucesso, entrar no TJ, no Inmetro e no BNDES. Já foi aluna de Lincoln Moura e de Alexandre Soares no PLA. Acabou percebendo que poderia faturar um dinheiro extra trabalhando do outro lado da trincheira. Há três meses, ela cortou um pedaço de cartolina, plastificou e tratou de colá-lo no corredor principal do curso com a seguinte frase escrita em corpo 72: “Preparação física para concursos.” Embaixo, vinha o número do seu telefone.
Duas vezes por semana, Flávia reúne sua turma na quadra principal do clube River, em Piedade, subúrbio da Central do Brasil. É um clube modesto e familiar, que já contou com um bom time de futebol de salão nos anos 80 e que na década de 90 promovia os concorridos “Bailes do Shortinho Atrevido”. Os alunos de Flávia pagam 40 reais por aulas específicas de flexão de braço, abdominal, barra e corrida. A professora diz que, ao longo de sua experiência nos bancos dos cursinhos, percebeu que o aluno que tentava vaga em carreiras militares ou policiais (Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Rodoviária etc.) dedicava pouco tempo ao trabalho físico. Quando chegava a hora das provas específicas, era fracasso na certa.
As provas para a Polícia Militar costumam cobrar conhecimentos rudimentares de língua portuguesa, mas exigem que o candidato masculino tenha pelo menos 1,65 metro de altura, corra no mínimo 2 400 metros em doze minutos e faça quarenta abdominais completas. O edital do concurso também traz uma complicada equação para cálculo da massa muscular e o peso corporal que o candidato deve ter. Os homens são classificados numa tabela que vai do macérrimo ao obeso mórbido. Só quem é “normal”, “normal magro” e “normal pesado” passa. O salário é de 2 100 reais por mês.
O candidato a soldado da PM será automaticamente reprovado se for constatado qualquer tipo de tatuagem – mesmo as caveiras do Bope – em regiões visíveis de seu corpo. Há, por fim, os exames médicos e psicológicos. Os testes psicológicos avaliam as funções mentais para desenvolvimento do pensamento lógico e a capacidade de reação a situações de perigo. O edital indica também, em ordem alfabética, uma relação de oito características que, se detectadas de maneira acentuada, levam à reprovação. Agressividade, angústia, ansiedade, apatia, inconformidade social e descontrole emocional estão entre elas. “Parece simples, mas tem o físico, o emocional e o psicológico envolvidos. Por isso é importante estar confiante e preparado”, diz a professora Flávia.
Em Como Passar em Provas e Concursos, o manual do guru dos concursos, William Douglas promete fazer com o cérebro do candidato o que Flávia faz com seus músculos. Douglas é juiz federal e, antes de chegar ao cargo, passou em primeiro lugar no vestibular de direito da Universidade Federal Fluminense e nas provas de defensor público e delegado de polícia, no Rio de Janeiro. É considerado o Einstein dos concursos. Seu manual de autoajuda para candidatos, lançado pela Editora Impetus, é um resumo de regras e conselhos que devem ser seguidos até que se alcance o sucesso. Já vendeu 170 mil exemplares.
O produto vem com um DVD encartado e custa 14,90 reais na banca. Na apresentação, o juiz – um homem de 43 anos, traços nórdicos e voz firme – ensina que, antes de aprender a matéria propriamente dita, o candidato deve aprender a aprender. E dá suas dicas.
William Douglas gosta de ensinar por meio de parábolas. Para incutir na cabeça do leitor a ideia de persistência, ele conta a história do bambu chinês que, depois de plantado, passa cinco anos sem dar sinal de crescimento. No sexto ano, o bambu chega de uma só vez à impressionante altura de 24 metros. “Pela lógica humana, ele deveria crescer quatro metros por ano, mas a natureza tem a sua lógica própria”, escreve o guru. Há também o exemplo do homem que dá vinte marteladas numa pedra sem que ela sofra qualquer modificação até que, na vigésima primeira, ela se esmigalha. “Foi a vigésima primeira martelada que funcionou? Não! Foi o conjunto das 21”, completa o professor.
O candidato que leva o DVD para casa leva também um calendário para estudos e dois checklists a serem seguidos com zelo para garantir que tudo corra bem na hora H. Na véspera da prova, Douglas recomenda, entre outras coisas, conferir o número de inscrição, separar o dinheiro para o transporte e comer comidas comportadas em lugares conhecidos.
Para o Dia D, a listinha de Douglas sugere um café da manhã reforçado, checar se o remédio para dor de cabeça está na mochila, ter atitude de águia (e não de galinha) e, se possível, distribuir beijos para a família. Douglas diz que os laços familiares são fundamentais para o sucesso.
O encarte traz também mantras para encarar com tranquilidade a tensão da preparação para as provas. Há até a foto de uma mulher em posição de ioga diante do pôr do sol. Douglas recomenda ter sempre na cabeça pensamentos como “Não há felicidade delivery, você precisa ir buscá-la dentro de si mesmo e nas escolhas que faz” e “Se você tem um plano, vai acabar executando-o; mas se você não tem um plano, o executado será você”. Há também frases de incentivo, como “Concurso não se faz para passar, mas até passar”.
Para quem pensa em desistir, Douglas oferece a máxima definitiva, capaz de embalar o sonho de qualquer candidato atrás de estabilidade na repartição mais próxima de casa: “Concurso público: a dor é temporária; o cargo é para sempre.”
A secretaria da 38ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro fica num prédio de vidro espelhado ocupado pelo TRT, na rua do Lavradio, na Lapa. É um lugar calmo. De onde Danielle Mondaini senta, dá para ver a Catedral Metropolitana e, ao fundo, os Arcos da Lapa, com o bondinho de Santa Teresa indo de lá para cá. Há um rádio permanentemente ligado, tocando sucessos da MPB. Há também processos sobre as mesas, uma geladeira, uma mesinha com café, biscoitos e um constante entra e sai de advogados. Uma vara de trabalho recebe, em média, 1 600 processos novos por ano – e a função de Danielle é ajudar o juiz a dar cabo deles.
Apesar de ser formada em direito, Danielle é técnica judiciária, cargo que exige apenas o 2º grau. Ela diz que fez a opção porque, na época, era mais fácil de passar. Um emprego no Judiciário Federal, que possui plano de carreira próprio e recebe salários pelo menos 50% maiores do que boa parte do Executivo, é a meta da maioria dos que fazem concurso. Siglas como TRT, TRE e TRF exercem fascínio nos candidatos. O salário de um técnico é de cerca de 4 mil reais, que pode chegar até 6 mil se a pessoa conseguir alguma gratificação pelo desempenho da função. Somando o que o pai e a mãe de Danielle recebem no fim de cada mês, não chega a 3 mil.
Danielle é de Juiz de Fora, tem 28 anos, 1,55 metro de altura, olhos muito pretos e um sotaque carregado. Nas suas últimas férias, em julho passado, foi com duas amigas de trabalho passar uma semana em um resort na Bahia. A viagem foi decidida num rompante, após receber o adiantamento do décimo terceiro salário. Pagou tudo de uma vez, sem parcelar. O pacote dava direito a aulas de hidroginástica, acesso liberado às boates, três refeições ao dia (em restaurantes de comida baiana, japonesa e mediterrânea), além de bebida alcoólica liberada, incluindo aqueles drinques com guarda-chuva na borda do copo, os preferidos de Danielle.
Antes de chegar ao Rio, ela fez outros seis concursos e foi aprovada em três deles. Não parou aí: agora está tentando passar para o Ministério Público da União. É uma seleção disputada, com 1 413 candidatos por vaga. Danielle admite que a busca de um salário sempre mais alto é a maior motivação para um candidato continuar fazendo concursos – por isso ela não sabe bem quando irá parar. “Sou feliz aqui, mas posso sonhar com alguma coisa que pague melhor, né?” Danielle é o que a turma do professor Lincoln Moura chama de candidato ponto e vírgula.
Desde que ouviu o escritor Luis Fernando Verissimo declarar numa entrevista de tevê que jamais usava o ponto e vírgula, Moura ficou com aquilo na cabeça. Ele adora o ponto e vírgula, mas gosta ainda mais do Verissimo. O professor acompanha tudo que o escritor gaúcho publica e é comum levar recortes de suas crônicas para comentar com os alunos em sala de aula: “Ele realmente nunca usa o ponto e vírgula. Com o Verissimo, ou é ponto ou é vírgula.”
Moura ensina que a vírgula é para quando se quer emendar as ideias, o ponto as finaliza, e o ponto e vírgula é usado quando o sujeito parece que vai encerrar a ideia, toma um fôlego e continua.
As aulas sobre pontuação ministradas por Moura ficaram tão famosas que serviram de base para que alguns alunos criassem uma classificação para definir o perfil de concurseiros. Segundo essa taxonomia, Danielle, a candidata que parece tomar fôlego num cargo antes de tentar outro, é a típica ponto e vírgula. Por estar sempre passando nas provas que faz, ela é invejada por gente como Murilo Lopes. Murilo, ele mesmo reconhece, é um candidato vírgula.
Murilo tem 27 anos, é formado em administração, mas sonha mesmo é com um cargo no Banco Central. Já tentou duas vezes. Tentou também o Metrô, a Caixa Econômica e, por último, o Ministério Público. Só levou bomba. Continua tentando. Ele adora as aulas de Lincoln Moura, especialmente as de pontuação. “Sou um típico vírgula, eu sei, mas no dia em que passar eu viro um ponto final.”
No final de setembro, Murilo fez a prova objetiva para Fiscal de Renda da Secretaria Municipal de Fazenda. Na noite anterior ao teste, ele se dedicou a decorar as regras para o uso correto do hífen. Murilo diz que as lições de decoreba se fixam melhor na cabeça durante o sono. Era uma prova difícil, com 4 774 candidatos inscritos. Só 200 passaram para a segunda fase. Murilo não estava entre eles.