Esta Londres livre e trigueira
Eu também já fui turista como vocês e sei como é
Ivan Lessa | Edição 2, Novembro 2006
Dizem que são 500 mil brasileiros no Reino Unido, entre legais e ilegais. Dos quais, uns 350 mil desfraldam lábaros estrelados em Londres. São todos ilegais, se aplicarmos critérios rígidos. Em que país do mundo se desfralda lábaro estrelado com essa naturalidade? Agitar bandeira, já é um negócio meio cabuloso, mas é o que se faz em jogo de futebol, noitada afro-reggae, parada e dia de orgulho gay. Em Londres, todas essas coisas acontecem simultaneamente todos os dias com a participação de todos os brasileiros. Legais e ilegais. Agora, desfraldar, e ainda por cima lábaro? Só mesmo nós.
Minha vida é pacata. Vou para o escritório, volto do escritório. Faço as compras para a casa no indiano da esquina (invariavelmente paquistaneses, já que me meti com as etnias), subo dolorosamente os dois lances de escada, bufo, boto a roupa de ficar em casa, que é igual a de sair à rua, só que ainda mais esculhambada, bufo, leio a metade que faltava do jornal, dou uma capotada, acordo, vou até o computador e jogo um poquerzinho com dinheirinho de mentirinha por um tempinho. Tudo muito diminutivo, muito pouco brasileiro. São dessas coisas que o tempo e a distância fazem com a gente. Não tenho vida social.
Um dia, há muito tempo, quando os bichos ainda falavam, fui a um almoço na casa de um conhecido. Foi uma tensão tremenda.
O que eu quero dizer é o seguinte: a minha vida aqui não é de forma alguma a vida de um brasileiro em Londres, legal ou ilegal. Os brasileiros, com suas bandeiras (os mais sóbrios) e seus lábaros (os mais irrequietos) vivem de um evento social para outro, em geral, para confirmar o chavão, ou clavão, de que somos muito musicais, festas de afro-reggae e rap, dois gêneros em que, literalmente, damos verdadeiros shows, asseguram-me os entendidos e as revistas em bom papel e impressão, coalhadas de anúncios, que circulam nos meios auriverdes destas terras de John Bull. O lugar-comum acaba aflorando como planta exótica aos lábios dos brasileiros solitários, sem bandeira ou lábaro que os agasalhe e proteja.
A vida dos brasileiros em Londres, com a graça de Deus, não é noticiário em jornal ou televisão britânicos. À exceção de quando a polícia londrina vai e executa um rapaz mineiro e depois, como se estivesse no Carandiru, ou por aí, ou não dá satisfações ou sai-se com esfarrapadas explicações. É uma vida sossegada. Não pegamos manchete em jornais, não fazemos parte de tráfico de drogas, não cultivamos o porte ilegal de armas. Sabemos apenas ser ilegais. Em geral, esvaziando cinzeiro de restaurante fuleiro. Fosse sempre sossegada assim. Vez por outra, numa página par de jornal, o despacho de um correspondente sobre um crime ligeiramente mais hediondo que os outros. Ou o eterno bezerro — mas também pode ser galinha — de duas cabeças que nasce invariavelmente em Minas Gerais. No Financial Times, no entanto, estamos sempre batendo ponto. Nosso dinheiro vira coisa de gente grande. Tal como deve ser. Criança que brinca com isso fica com a mão cabeluda e amarela.
Acontece que os brasileiros de Londres são, como direi, hedonistas, não é assim que a gente se chama a si próprio aí, no Brasil? Na minha época, há muito tempo, quando se amarrava cachorro com lingüiça, dizíamos que o negócio era cair na gandaia, viver na farra, partir ou estar numa boa, pintar o sete, mandar brasa, tacar ficha e assim por diante. Era um hedonismo mais terra a terra, mais… mais “gente”!
Uma coisa eu garanto, esse hedonismo deve dar um dinheirão. A segunda maior ocupação dos brasileiros em Londres é mandar dinheiro para o exterior (o torrão natal, entenda-se). Chego a essa conclusão lendo as revistas Leros e Jungle Drums. É. Drums. Tambores. Depois dizem que é má vontade minha quando implico com batuque. Lá estão páginas e mais páginas anunciando a remessa garantida e segura de seu dinheiro para qualquer parte do Brasil, talvez, e principalmente, para o Oiapoque e o Chuí. Lado a lado com “Seu” Jorge, concerto de ministro da Cultura, recital de nova e sensacional descoberta em matéria de cantor ou cantora baiana. A remessa e as festanças ganham, talvez, e por um tico apenas, das mercearias especializadas em coisas nossas e nossas coisas. Tá tudo lá: paçoca, guaraná, suco, feijoada em lata, goiabada, sonhos de valsas, pão de queijo que não acaba mais, revistas e como assiná-las. Logo atrás, desabalados, estão aqueles que um amigo meu chama de “gunga dins informáticos”, ou seja, umas patentes a mais na profissão, os gurus cibernéticos. Prometem pronto e bom serviço. Não tenho porque discordar. Minha experiência com um deles foi boa. Até agora.
Gozado. Difícil perder essa mania de não confiar por completo em nossos compatriotas. Deve ser aquele jeito que eles têm de batucar em tudo que passar perto. No lendário a meu respeito, corre que um dos motivos porque deixei o Brasil foi devido à mania deles (depois de vinte anos, vocês passam a ser “eles”) batucarem em tudo que passar na frente. Era e é mais ou menos verdade. Embora de lá para cá tenhamos acrescentado outros ritmos a nosso repertório, o rap e o afro-reggae, supracitados (e supracitemo-los, caso contrário dá azar) são apenas dois deles. Deu sopa, a gente vai e batuca em cima. Por exemplo: eu gosto de curtir brasileiro à distância aqui em Londres. Amo ver essas senhoras aflitas no metrô implicando com o marido e berrando, “Eu não disse que a gente tinha de pegar a linha azul, Olegário?”. Imagino o que o casal de namorados estará dizendo no banco logo atrás de mim:
Ele: Tu me amas, Eudócia?
Ela: Amo, Rosimar.
Eu deveria imaginar mais, eu deveria tomar mais notas. Londres pode ser um pifão de tédio.
Gosto, principalmente, quando estou sentado de frente para um — como é o substantivo coletivo para brasileiro? Camburão? — bando deles, no sentido longitudinal do metrô, e imagino que estejam cantando, já que não sei, nunca soube, ler lábios, mesmo os mais fingidos e mentirosos do mundo, ó suas ingratas! Dada à sua expressão beirando a sofrida, parecem todos estar cantando um estribilho, um refrão de um velho samba ou marcha bem triste, bem naquele pedaço que diz, “ai, ai, meu Deus tenha pena de mim…” etc.
Mas eu falava em batucar. Que nada escapa ao nosso batuque. Se desse jeito, batucaríamos em cima de um batuque, sem perder uma batida. Juro que, outro dia mesmo, começo de outono, tinha dois brasileiros sentados à minha frente, ambos armados até os ouvidos de iPods, conforme é a moda, entretidos em animada troca de estribilhos e refrães (“..ai, ai, meu Deus…”), conseguindo a proeza, digna de um penta ou tetra, de trocar inanidades e batucar na engenhoca da moda.
Engenhoca? É conosco. Danados de novidadeiros que somos. Paremos um instante e vejamos o turista brasileiro. O turista brasileiro é antes de tudo um ser digital. Digital seu pé direito, digital seu pé esquerdo, digitais suas mãos, digital seu cônjuge. Só ficam em hotéis digitalizados. Lá estão, diante do analógico palácio de Buckingham, com suas câmeras digitais, digitalizando os analógicos guardas cobertos com seus analógicos chapelaços de pêlo artificial (tudo cada vez mais politicamente correto por aqui). No musical americano, logo mais à noite, estarão espoucando digitalmente suas câmeras, apesar de ser proibido, ou, pelo menos, contra as regras do jogo. Pior: a uma certa altura, o celular turístico brasileiro tocará, altíssimo, as primeiras notas do “Virundum”. Alguém precisa falar urgentemente com eles e eles com alguém. Trata-se da solidão, que é analógica por natureza e ninguém conseguiu uma solução digital para o problema, se problema é.
Eu também já fui turista como vocês e sei como é. Só que na minha época resolvíamos a coisa na base da — impossível não fazer o jogo de palavras inda que sem cintura — analogia.