Olga Tokarczuk aprecia seu papel como contestadora das ortodoxias; pediu a seus concidadãos que reconhecessem os elementos mais sombrios do passado da Polônia FOTO: GRAŻYNA MAKARA
Estilhaços da história
Prêmio Nobel de Literatura, Olga Tokarczuk enfrenta os dogmas da direita polonesa
Ruth Franklin | Edição 158, Novembro 2019
Tradução de Renato Marques de Oliveira
A Feira do Livro de Varsóvia é realizada todo mês de maio no Estádio Nacional, uma estrutura semelhante a um cesto trançado, salpicada de vermelho e branco, as cores da bandeira polonesa. Numa manhã luminosa de sábado deste ano, centenas de balões alaranjados distribuídos por uma empresa de audiolivros balançavam nas mãos das crianças e multidões de leitores vasculhavam os estandes de editoras de toda a Europa. No espaço reservado ao Instituto Nacional Fryderyk Chopin havia um piano de cauda, no qual uma jovem tocava Bohemian Rhapsody, da banda Queen. Em uma livraria temporária, com toda a solicitude do mundo um atendente de cabelos castanhos compridos e óculos moderninhos mostrava a um cliente um exemplar do livro Forever Butt, antologia da revista LGBT holandesa Butt (“tamanho de bolso, cor-de-rosa e supergay”). Uma longa fila se iniciava defronte ao estande da respeitável editora polonesa Wydawnictwo Literackie e serpeava em torno de vários outros ao redor. As pessoas estavam à espera do autógrafo de Olga Tokarczuk, que nos últimos anos se firmou como a romancista de maior destaque da Polônia – e em outubro passado ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.[1]
Tokarczuk encontrava-se do lado de fora da feira: multidões deixam-na ansiosa, e ela estava se preparando. Na noite anterior, a escritora voltara tarde para casa e tivera problemas para dormir. Com 57 anos, pequena e marcante, Tokarczuk tem a energia concentrada de uma instrutora de ioga. Prefere usar roupas de peça única engenhosamente drapeadas e pulseiras dispostas em camadas. Sua longa cabeleira castanha estava enrolada em dreadlocks entrançados com contas azuis e amontoados no alto da cabeça. Sua boca está quase sempre franzida em um sorrisinho irônico.
Fiquei ao lado de Tokarczuk enquanto ela fumava um cigarro Vogue, fino feito uma vareta, sob a estrutura em formato de cesto do estádio. Inaugurado em 2012, o Estádio Nacional recentemente tornou-se o ponto central da Marcha da Independência, realizada todo ano em novembro, na qual membros de grupos nacionalistas e de extrema direita exibem faixas e cartazes com slogans como “Polônia para os poloneses” e “Parem a islamização”. A obra substituiu um estádio da era comunista, que ficara completamente arruinado em meados dos anos 1990, quando passei a maior parte do ano no país, aprendendo polonês antes de ingressar no mestrado. Quando a Polônia se converteu em uma economia capitalista, o local foi transformado em um mercado ao ar livre de produtos falsificados e de segunda mão, mal-afamado por causa do lixo e da criminalidade. Alertaram-me para nunca pôr os pés lá.
Tokarczuk terminou o cigarro. Bolinhas de cotão cinza de amentilho, sementes de choupos que na primavera florescem por toda Varsóvia, eram sopradas pelo vento. Ela as removeu do vestido preto com a mão e entrou.
Um burburinho percorreu de ponta a ponta a fila de autógrafos quando um assessor de imprensa conduziu Tokarczuk rapidamente até uma sala verde. Os dread-locks fazem com que ela seja instantaneamente reconhecível. A escritora adotou o penteado em um gesto impulsivo há mais de uma década, quando uma greve de funcionários do aeroporto a deixou com algum tempo livre em Bangcoc. Foi então que ela soube que um certo tipo dessas mechas emaranhadas era comum entre as tribos que viviam na Polônia nos tempos pré-cristãos. “Existe uma expressão em latim para isso: plica polonica”, disse-me ela mais tarde. “É uma descrição pejorativa, sugerindo falta de higiene.” E soltou uma gargalhada.
Escavar algo esquecido da história polonesa e reformulá-lo em um contexto contemporâneo tornou-se a marca registrada de Tokarczuk. A escritora é mais conhecida mundialmente por Bieguni, seu sexto romance, publicado na Polônia em 2007 e lançado nos Estados Unidos no ano passado, quando venceu o Prêmio Internacional Man Booker.[2] Tokarczuk chama o livro de “romance-constelação”, pois é composto de relatos em uma multiplicidade de gêneros que se amalgamam: ficção, história, livro de memórias e ensaio. A preocupação geral da obra é com a ideia da viagem, mas suas diferentes partes às vezes são interligadas apenas por uma palavra ou imagem, o que permite aos leitores criarem suas próprias conexões. “Quando o enviei à minha editora, eles me ligaram e perguntaram se porventura eu havia misturado os arquivos no meu computador, porque aquilo não era um romance”, disse ela.
Uma forma baseada em fragmentos é particularmente adequada para o romance de uma autora da Polônia, onde as fronteiras nacionais mudaram inúmeras vezes ao longo dos séculos e múltiplos grupos étnicos – poloneses, ucranianos, lituanos, alemães, rutenos e judeus – viveram lado a lado em uma cacofonia de idiomas e experiências. A literatura da Europa Central em geral, acredita Tokarczuk, “questiona mais a realidade; é mais desconfiada em relação a coisas estáveis e permanentes”. Em Bieguni, uma das personagens diz: “A constelação, não a sequência, carrega a verdade.”
Na Polônia, uma narrativa da história que adota a fragmentação, a diversidade e a mescla é inevitavelmente política, fazendo ruir uma longeva visão mitológica do país como nação católica homogênea. Essa mitologia nacional tem se expandido nos últimos anos, especialmente desde 2015, quando o partido conservador Lei e Justiça (PiS, Prawo i Sprawiedliwość) chegou ao poder com uma plataforma anti-imigração e calcada na “unidade nacional”. Desde então, o governo se recusou a aceitar refugiados do Oriente Médio e Norte da África, resistiu à ideia de instituir direitos iguais para casais do mesmo sexo e aprovou uma lei proibindo que se discuta sobre a colaboração de poloneses com os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Em um recente artigo de opinião publicado no New York Times, Tokarczuk deplorou o clima político do país: “A televisão estatal, por meio da qual um número significativo de poloneses recebe as notícias, constantemente enxovalha, em linguagem agressiva e difamatória, a oposição política e qualquer pessoa que pense de forma diferente do partido no poder.” A obra de Tokarczuk costuma tratar de questões sobre as quais ela tem opiniões fortes. Vegetariana de longa data que afirma perder o sono por causa do sofrimento de animais em matadouros e fazendas industriais, ela chegou a publicar, em 2009, um suspense não convencional com inclinação ambientalista e em prol dos direitos dos animais, chamado Sobre os Ossos dos Mortos.[3]
A Polônia, não muito diferentemente dos Estados Unidos, é um país rachado ao meio em termos políticos. Os partidários do Lei e Justiça são contrabalançados pelos progressistas – em geral pessoas mais jovens, residentes nas áreas urbanas da metade ocidental do país –, que buscam a tolerância, o multiculturalismo e um verdadeiro acerto de contas com o passado polonês. São esses os leitores de Tokarczuk. “Até mesmo meus amigos que não são muito afeitos à leitura, que não acompanham os poetas e prosadores mais jovens, estão lendo Olga Tokarczuk”, disse-me Zofia Król, editora da revista literária online Dwutygodnik (Quinzenal).
Quando Tokarczuk saiu para cumprimentar seus leitores, todos os vestígios de ansiedade haviam desaparecido de seu rosto, e ela conversou animadamente e posou para selfies na mesa de autógrafos. Um fã trouxe para ela um livro de desenhos de “arquitetura fantasma” – projetos que jamais foram construídos –, na esperança de que pudesse servir como fonte de inspiração. Uma bibliotecária de Pruszków, nos arredores de Varsóvia, presenteou Tokarczuk com uma recém-publicada tradução para o polonês de um livro de memórias narrando a vida da comunidade judaica da cidade, erradicada em 1941, durante a ocupação nazista.
A sessão de autógrafos durou quase duas horas. Depois, afastando-se da mesa, Tokarczuk deu um gemido e fingiu desmaiar. Mas seus olhos estavam alertas. “Saber que as pessoas estão esperando pelo próximo livro – isso me dá energia”, disse ela.
Olga Tokarczuk vive em Wrocław, no sudoeste da Polônia. Ela foi a Varsóvia para participar não apenas da feira do livro, mas também de um festival literário chamado Apostrof (Apóstrofo), que aconteceu no Teatro Universal, espécie de quartel-general de intelectuais e artistas. Este ano, Tokarczuk foi curadora-convidada do evento, organizando uma série de simpósios de uma semana com os principais escritores e intelectuais poloneses. Assistiu a quase todas as palestras e mesas de discussões, anotando coisas em uma caderneta preta e, vez por outra, dando sugestões em voz alta quando os palestrantes pareciam estar sem ideias e sem saber o que dizer. O tema que escolheu foi: “Este não é o único mundo possível.” Um dos debates girou em torno de como poderia ser uma Polônia pós-religiosa. Outra mesa-redonda tratou de mudanças climáticas e questões ecológicas em geral. Em vez do tradicional buquê de flores, cada participante recebeu um broto de faia como agradecimento.
Numa das noites do festival literário, um grupo de educadores debateu o futuro do sistema escolar polonês. Piotr Laskowski, um professor de 40 e poucos anos, manifestou repugnância pela maneira como os negócios haviam cooptado palavras como “criatividade” e “inovação”. Até recentemente, ele fora diretor de uma escola na qual a maioria das decisões é tomada em conjunto por alunos e corpo docente, por meio de votação. As escolas, disse ele, deveriam ter como objetivo libertar os estudantes da necessidade de pensar no mercado de trabalho e, no lugar disso, prepará-los para moldar o mundo. Vestindo um moletom azul-marinho com capuz, Laskowski balançava o corpo para a frente e para trás enquanto falava, com uma energia mal contida. Sentada em seu lugar habitual no meio da primeira fila, Tokarczuk sorria para ele.
Após o evento, em uma reunião festiva no jardim do teatro, Tokarczuk apresentou-me Laskowski como o homem que dirigia “a escola mais anarquista do sistema”.
“Não é tão anarquista assim”, disse ele.
Tokarczuk bebericou um gole de uma Fritz-Kola dietética, marca alemã com intensa dose de cafeína. “Até que ponto você é livre para determinar o que dizer a seus alunos?”, perguntou ela.
O Lei e Justiça introduziu uma grade curricular imposta de cima para baixo pelo Estado: as aulas de história limitam-se à história da Polônia, narrada a partir de uma perspectiva inequivocamente nacionalista; as aulas de literatura enfatizam clássicos poloneses, como os romances históricos de Henryk Sienkiewicz, e não os grandes inconformistas, como Witold Gombrowicz e Bruno Schulz.
Laskowski ignorou as diretrizes. Um professor que divergir da linha oficial “não será preso”, disse ele, apenas “intimidado”, talvez com uma ameaça de aposentadoria forçada. Embora isso provavelmente não aconteça em Varsóvia, acrescentou: “Se você é professor em uma cidadezinha pequena ou um vilarejo, com uma população muito conservadora e um padre que dá aulas de religião na escola, aí sua situação muda drasticamente.” E abafou uma gargalhada sombria.
Entre as pessoas de inclinação esquerdista com quem falei, era frequente a seguinte conversa: cada um pode continuar fazendo livremente o que faz, até o dia em que já não poderá mais. A maioria das instituições culturais depende do dinheiro público, o que as torna vulneráveis à pressão política. Em dezembro do ano passado, depois que Król, a editora de Dwutygodnik, resistiu às tentativas de censura à revista, o governo cortou seu financiamento; a publicação foi suspensa por vários meses, até que a editora obteve o apoio da administração municipal de Varsóvia, cidade relativamente de esquerda.
Na mídia, encontrar uma maneira de trabalhar sem o apoio do Estado está se tornando uma opção atraente. Recentemente, um documentário sobre abusos sexuais de crianças por padres católicos – custeado com dinheiro de financiamento coletivo – foi lançado no YouTube e em poucos dias teve mais de 20 milhões de visualizações, o equivalente a mais da metade da população da Polônia. “Não consigo ouvir a rádio oficial”, disse-me Monika Płatek, professora de direito e criminologia da Universidade de Varsóvia, enquanto caçava no celular um episódio do programa Radiolab, da wnyc [rádio pública de Nova York] que ela queria compartilhar com Tokarczuk. Płatek estava concorrendo a uma cadeira nas eleições do Parlamento Europeu como candidata do Wiosna (Primavera), um novo partido progressista. As eleições seriam dali a um dia e meio.
No fim da noite, o escritor polonês Andrzej Stasiuk, acompanhado por uma banda de rock ucraniana chamada Haydamaky, apresentou performances musicais de poemas de Adam Mickiewicz. Nascido em 1798, logo após a Polônia ter sido dividida em três pela Prússia e pelos impérios russo e austríaco, Mickiewicz envolveu-se na fracassada luta pela independência do país e passou a maior parte da vida no exílio. Sua obra é ardorosamente patriótica – ele é considerado o poeta nacional da Polônia –, mas, como enfatizaram as adaptações de Stasiuk, a terra exaltada por Mickiewicz incluía grande parte da Ucrânia, Lituânia e Bielorrússia.
Stasiuk, um homem alto e esbelto com quase 50 anos, começou recitando em polonês os versos de abertura de Stepy Akermańskie (As estepes de Akkerman), soneto romântico que descreve a paisagem da Crimeia. Enquanto atrás dele soavam acordes de trompas de uma melodia folclórica e as batidas da bateria ganhavam fôlego, Stasiuk trocava de idioma, meio gritando, meio vociferando em ritmo de rap os mesmos versos em ucraniano. Tokarczuk balançava o corpo ao som da música. “Sinto arrepios quando ouço isso”, disse ela, esfregando os braços. “Você viu o logotipo na camisa dele?”
Estávamos a alguma distância do palco, e era difícil enxergar com precisão o logotipo. Parecia envolver a águia do brasão de armas da Polônia, mas havia também alguma outra coisa. Avancei em meio à multidão até parar bem perto do palco, abaixo de Stasiuk. Parecia o desenho de um pássaro estilizado, com duas asas simétricas, tendo no meio algo no formato de uma colher de pau. Tirei uma foto e abri caminho de volta até Tokarczuk.
“Ah”, disse ela, examinando bem de perto a imagem. “Isso é o Tryzub, o brasão de armas da Ucrânia.” Ela entrelaçou os dedos, apertando as mãos para enfatizar. “As duas culturas são assim. Não podem ser separadas.”
A relação entre poloneses e ucranianos é o cerne do romance em que Tokarczuk está trabalhando atualmente, e que se baseará na história de sua família. Seus ancestrais do lado paterno incluíam poloneses, ucranianos e rutenos e vieram de um vilarejo na província da Galícia.[4] “Alguns deles tinham muito mais consciência de sua identidade nacional, e para outros isso não era tão importante”, disse-me ela na tarde seguinte, enquanto tomávamos chá sentadas no saguão de um novo hotel-boutique no Centro de Varsóvia (Tokarczuk fala inglês muitíssimo bem, mas o polonês dela tem uma elegância e clareza incomuns; nossas conversas ocorreram nos dois idiomas).
Durante a Segunda Guerra Mundial, houve um massacre de poloneses no vilarejo, parte de uma onda de assassinatos cometidos por nacionalistas ucranianos que ceifaram dezenas de milhares de vidas na região. O avô de Tokarczuk, que era polonês, mas havia se casado com uma ucraniana, sobreviveu. Após a guerra, a Galícia foi dividida entre a União Soviética e a Polônia, e o vilarejo passou a fazer parte da República Socialista Soviética da Ucrânia. A família, juntamente com quase 1 milhão de habitantes da região, migrou para a Baixa Silésia, província polonesa no sudoeste do país que faz fronteira com o que hoje são a Alemanha e a República Tcheca. Os poloneses foram incentivados a se fixar lá, em parte para substituir os alemães que haviam fugido para a Alemanha à medida que o Exército Vermelho avançava ou foram expulsos pela Polônia tão logo a guerra terminou. “Você não pode falar sobre essa área sem falar dos ucranianos, porque 3 milhões de poloneses que vivem lá ainda têm raízes na Ucrânia”, disse Tokarczuk. “Essa distinção – quem é polonês e quem é ucraniano – para mim é muito artificial.”
Tokarczuk nasceu em 1962, a primeira de duas filhas, em um povoado ao Norte da Baixa Silésia. Uma pequena minoria alemã permanecera lá: alguns alegaram que eram poloneses para poder ficar, ao passo que outros se casaram com poloneses. Quando criança, Tokarczuk tinha uma babá alemã. Seus pais davam aulas em uma escola para jovens e adultos que era parte de um movimento fundado para levar educação aos camponeses, e a família morava nas dependências do estabelecimento, período do qual Tokarczuk se lembra com alegria. Seu pai era o bibliotecário da escola, e ela passava a maior parte do tempo junto dele, lendo o que lhe caísse às mãos – poesia, Apuleio, Jules Verne, a enciclopédia.
Na adolescência, Tokarczuk percebeu que grande parte do mundo estava vedada para ela. “Tudo o que era interessante estava fora da Polônia”, disse. “Boa música, arte, cinema, hippies, Mick Jagger. Era impossível até mesmo sonhar em escapar. Quando eu era adolescente, me convenci de que teria que passar o resto da vida nessa armadilha.”
No outono de 1980, Tokarczuk ingressou na Universidade de Varsóvia, para estudar psicologia. O campus havia servido como quartel alemão durante a guerra; o dormitório dela ficava perto das ruínas do gueto judeu, e ao longo das ruas ainda havia espaços vazios, resquícios da sistemática destruição da cidade levada a cabo pelos nazistas, em 1944. Quando ela estava no segundo ano da universidade, o governo declarou lei marcial, em resposta ao aumento de manifestações por todo o país. Mesmo agora, no confortável saguão de hotel em que conversávamos, Tokarczuk não pôde deixar de reprimir um calafrio suscitado pela lembrança. “Para uma moça provinciana, era muito duro”, disse ela. “Não havia nada para comprar nas lojas, apenas vinagre e mostarda. E as pessoas estavam desesperadas, realmente muito pessimistas. Eu não acreditava que a União Soviética um dia fosse desmoronar.”
Depois de se formar, em 1985, Tokarczuk se casou com um colega do curso de psicologia, e o casal se mudou para uma cidadezinha não muito longe de Wrocław. Ela se especializou em psicologia clínica e trabalhou inclusive com alcoólatras e viciados em drogas. Depois de alguns anos, estava exaurida. “Sou neurótica demais para ser terapeuta”, afirmou.
Tokarczuk conseguiu obter um passaporte para viajar a Londres, onde passou alguns meses estudando inglês, alternando-se entre trabalhos esporádicos – montou antenas em uma fábrica, limpou quartos em um hotel chique – e frequentando as livrarias, onde leu a teoria feminista, da qual não tinha conhecimento na Polônia. Um de seus primeiros contos, O Hotel da Capital, é escrito da perspectiva de uma camareira que cria histórias sobre os hóspedes cujos quartos ela limpa, com base nos objetos pessoais deles. “Toda vez que estou em um hotel”, disse-me Tokarczuk, passeando os olhos, meio constrangida, pelo saguão, “eu me lembro de que as camareiras são pessoas como eu, que também podem escrever sobre mim e sobre a bagunça no meu quarto.”
Depois que retornou à Polônia, Tokarczuk e o marido tiveram um filho, e ela começou a escrever a sério. A escritora atribui à sua formação em psicologia a consciência que adquiriu de que múltiplas realidades podem coexistir. Uma de suas primeiras experiências clínicas envolveu dois irmãos que tinham narrativas emocionais completamente diferentes sobre a dinâmica da família. “Esse foi o meu primeiro passo para escrever”, ela lembrou mais tarde. “Escrever é procurar pontos de vista muito particulares e específicos da realidade.”
O primeiro romance de Tokarczuk, Podróż Ludzi Księgi (Jornada do povo do livro), publicado em 1993, era uma parábola filosófica ambientada na França do século XVII; o romance seguinte contava a história de uma médium em Wrocław na década de 1920. Seu primeiro grande sucesso veio com o terceiro livro, Prawiek i Inne Czasy (Primevo e outros tempos), de 1996, no qual a autora inspirou-se em histórias que sua avó materna lhe contava quando era criança. Com um toque de realismo mágico – quatro anjos da guarda velam pelos acontecimentos –, o romance narra a vida de duas famílias num vilarejo polonês fictício durante o século XX. Boa parte da trama gira em torno das relações entre poloneses e judeus. Poloneses visitam os consultórios de médicos judeus e fazem compras em lojas judaicas, mas o intenso amor de uma mulher polonesa e um homem judeu acaba sendo frustrado. Devido à combinação de elementos míticos e à visão de longa distância da história, o romance foi aclamado como inovador.
Mais ou menos na mesma época, Tokarczuk se apaixonou pelo Vale Kłodzko, um pitoresco recanto da Baixa Silésia, na fronteira com a República Tcheca. Ela e o marido compraram uma casa simples de madeira e começaram a reformá-la. A escritora ficou fascinada com a história e a cultura da região. Logo depois de se mudar, ao passar por uma igreja, ela notou a estátua de Santa Wilgefortis [ou Santa Liberata], o que a levou à espinha dorsal de seu romance seguinte, Dom Dzienny, Dom Nocny (Casa do dia, casa da noite), publicado em 1998. Ela conta sobre um livreto encontrado na lojinha de suvenires da igreja que narrava a vida da santa medieval, escrito por alguém identificado apenas como “Paschalis, monge”. Segundo a lenda, Wilgefortis queria tornar-se freira, mas seu pai a sequestrou de um convento e tentou forçá-la a se casar. Ela orou a Jesus pedindo que a tornasse tão feia e repugnante que o pretenso noivo jamais haveria de desejá-la. Como resposta ao seu pedido, cresceu uma farta barba que lhe deu feições masculinas parecidas com a de Cristo – ao vê-la assim, seu pai mandou matá-la.
“Quem foi a pessoa que escreveu a vida da santa, e como sabia de tudo?”, pergunta um personagem. Acontece que Paschalis – uma figura fictícia – é singularmente adequado para escrever a hagiografia dessa menina masculina: desde a infância, ele era atormentado pelo desejo de se tornar mulher. Tal qual a região em que a história se passa, com suas fronteiras nacionais em constante e eterna mudança, os dois personagens habitam um limiar, o que parece ampliar sua capacidade de empatia.
Em sua justaposição de memórias, ficção e mito, o romance foi a primeira tentativa de Tokarczuk de empregar a forma constelar que mais tarde ela usaria em Bieguni. Este último originou-se do fato de que, pela primeira vez na vida, a escritora se sentiu livre para viajar bastante. Sua crescente reputação internacional lhe proporcionou convites para festivais literários ao redor do mundo, seu filho estava chegando à idade adulta e seu casamento terminou. Ela foi tomada pela ideia de escrever um livro sobre viagens. Mas a literatura de viagem convencional parecia linear demais, desprovida da natureza “nervosa, até agressiva, muito ativa, muito urgente” do ato de viajar.
“Tentei desesperadamente encontrar uma forma para esse livro e não consegui”, disse-me Tokarczuk. Mas, à medida que começou a compilar e cotejar suas anotações, ela percebeu que poderiam constituir um romance. Para determinar a forma definitiva, espalhou os fragmentos do livro – 106 deles – pelo chão da sala de trabalho e subiu em uma mesa para poder examiná-los de cima.
Um desses fragmentos diz respeito a Philip Verheyen, o anatomista flamengo do século XVII que deu nome ao tendão de Aquiles. Na juventude, Verheyen teve uma das pernas amputada. Depois disso, passou a sentir uma contínua agonia no espaço vazio outrora ocupado por sua perna. Aquilo que é removido – seja um membro do corpo ou um grupo de pessoas de uma nação – ainda tem o poder de machucar e doer. “Precisamos esquadrinhar nossa dor”, ele conclui.
No dia seguinte ao término do festival literário Apostrof, Tokarczuk foi almoçar em um restaurante de comida indiana em Varsóvia com seu companheiro, Grzegorz Zygadło, um homem afável de 40 e poucos anos, olhos preocupados e cabelos escuros desgrenhados, com quem ela vive há onze anos. Os resultados das eleições para o Parlamento Europeu tinham sido divulgados e eram desanimadores. O Lei e Justiça obtivera a vitória mais expressiva de sua história, com 42,4% dos votos, uma vantagem de quase três pontos sobre seu rival, o centrista Coalizão Europeia. O Wiosna (Primavera) chegara a 6,6% e enviaria três representantes para Bruxelas. A professora Monika Płatek, fã do Radiolab, não seria um deles.
Zygadło havia trabalhado como tradutor de alemão. Agora, seu trabalho, como ele próprio descreveu, é “cuidar de Olga”, atuando como motorista, assistente de pesquisa, faz-tudo e assim por diante. Ela se refere a ele como seu “administrador”; ele chama a escrita de Tokarczuk de “a empresa da família”. Além de fornecer tudo o que a escritora pede – café expresso, o exemplar de um livro, suporte técnico –, Zygadło às vezes intervinha na conversa, quando ela e eu estávamos batendo papo, a fim de detalhar algum argumento que Tokarczuk apresentava ou para adverti-la, sotto voce, de que não fosse indiscreta.
No final da tarde, Zygadło nos levou até Wrocław, a três horas de distância. O carro deles, uma perua Volvo, estava abarrotado até o teto com malas, sacolas de roupas e a faia que Tokarczuk ganhou no Apostrof. Assim que partimos, ela amarrou seus dreadlocks em um nó e apanhou entre suas coisas um saco de biscoitos de arroz sabor couve. Zygadło lidou a duras penas com o tráfego, a ponto de, lá pelas tantas, ter de parar no meio de uma das rotatórias de Varsóvia (reconhecidamente confusas).
Durante os anos que Tokarczuk passou pesquisando e escrevendo seu romance mais recente, Księgi Jakubowe (Os livros de Jacó), de 2014, foi dessa maneira que ela e Zygadło percorreram grande parte da Europa – Ucrânia, Bulgária, Romênia, República Tcheca, Alemanha, Turquia –, seguindo a trilha de seu protagonista, Jacob Frank, um judeu polonês do século XVIII que se autoproclamou o Messias. Na década de 1750, Frank arrebanhou milhares de seguidores entre os sabatianos, seita judaica messiânica à qual ele pertencia, e, incorporando ensinamentos cristãos ao judaísmo sabatiano, realizou batismos em massa. Tokarczuk, além de fazer uma pesquisa histórica sobre os detalhes da época, quis conhecer pessoalmente os locais, senti-los na própria na pele, disse ela: “Sou escritora, não historiadora, por isso tenho que tomar contato físico com tudo – cheirar, tocar, ver.” Ela observou plantas, folhas, a cor do solo, o fluxo do Rio Dniestre. Em Lviv, sentou-se na catedral para imaginar como terá sido quando os seguidores de Frank foram batizados ali, aos milhares.
Por quase uma década, Tokarczuk mergulhou em todos os assuntos possíveis relacionados a Jacob Frank: a Polônia do século XVIII, a religião, o misticismo, o Iluminismo judaico na Europa Central. Era importante para ela que até os mais ínfimos pormenores estivessem certos. Em determinado capítulo, retratou mulheres que costuravam sentadas enquanto a luz refletia em suas agulhas de metal. Ao ler o livro, sentiu que havia algo errado e então percebeu que era cedo demais para que houvesse agulhas de metal naquela parte da Europa; as pessoas cerziam com agulhas de madeira. Mais tarde, quando o livro estava quase terminado, consultores contratados por sua editora apontaram que naquele período não era comum que as pessoas comessem batatas na Europa Central; o arroz, importado da Turquia, era o alimento básico.
O livro é o trabalho mais ambicioso de Tokarczuk até agora. Com mais de novecentas páginas, entrelaça as perspectivas de dezenas de pessoas ligadas a Frank, incluindo Benedykt Chmielowski, padre que escreveu a primeira enciclopédia em língua polonesa; Elisha Schorr, rabino que era fascinado pelo carisma do místico judeu; Moliwda, nobre polonês que foi o tradutor de Frank, seu confidente e, por fim, o homem que o traiu; e ainda uma avó judia moribunda que engole um amuleto cabalístico e alcança a imortalidade.
Best-seller instantâneo, o livro ganhou a mais alta honraria literária da Polônia, o prestigioso Prêmio Nike. O sucesso da obra salientou algo que ficara óbvio durante a minha visita: a herança judaica do país é discutida muito mais abertamente hoje do que quando lá estive nos anos 1990. No Apostrof, um dos participantes de uma das mesas-redondas estava vestindo uma camiseta com letras em ídiche. No exato local do Gueto de Varsóvia existe agora um novo museu popular, o Polin – Museu da História dos Judeus Poloneses (Polin é o nome em ídiche da Polônia.) “Não há cultura polonesa sem a cultura judaica”, disse-me Tokarczuk a certa altura. Ainda assim, a adesão da Polônia a essa herança está longe de ser absoluta. Quando leu pela primeira vez acerca de Jacob Frank, Tokarczuk percebeu que não faltavam incentivos às pessoas para esquecer a história dele – da parte dos católicos poloneses, envergonhados pelo tratamento que a Igreja dispensou a Frank (ele foi encarcerado em um mosteiro por treze anos); dos judeus ortodoxos, que consideram Frank um traidor; e até mesmos dos descendentes poloneses dos seguidores de Frank, que talvez não queiram ser lembrados de suas raízes judaicas.
Tokarczuk aprecia seu papel como contestadora das ortodoxias e, em uma entrevista depois que o livro recebeu o Prêmio Nike, ela pediu a seus concidadãos que reconhecessem os elementos mais sombrios do passado da nação. “Criamos essa história da Polônia como um país aberto e tolerante”, disse ela. “No entanto, cometemos atos horrendos como colonizadores, como maioria nacional que esmagou a minoria, como proprietários de escravos e como assassinos de judeus.” (“Colonizadores” era uma referência ao reassentamento de poloneses na Ucrânia; “proprietários de escravos”, à servidão.) A caixa de e-mails e a página de Facebook de Tokarczuk foram imediatamente inundadas com mensagens acusando-a de traição. “A única justiça para essas mentiras é a morte”, alguém escreveu. Outras pessoas exigiram que ela fosse expulsa da Polônia. Preocupada com a segurança de Tokarczuk, Jennifer Croft, tradutora de Bieguni para o inglês, insistiu que ela saísse do país por algum tempo. Seus editores providenciaram para que tivesse temporariamente a proteção de um guarda-costas. Mas Tokarczuk não se intimidou e manteve o destemor. A heresia, disse, revela as fronteiras da convenção e também coloca o desafio de transcender essas fronteiras; é “um ato da mente livre”.
Nos últimos tempos, Tokarczuk vem amadurecendo a ideia de viver quase em tempo integral na sua casa de campo no Vale Kłodzko, e o imóvel está sendo reformado e ampliado. Há cinco anos, ela fundou um festival literário de verão em Nowa Ruda, uma pequena cidade vizinha, que tem contado com a participação de escritores de toda a Europa Oriental. Ela obteve financiamento do governo local e de vários patrocinadores privados, incluindo um fabricante de papel higiênico. “Pensei em fazer uma medalha de papel higiênico para dar ao nosso ministro da Cultura”, disse Tokarczuk, com um risinho malicioso.
Um dia, ela e Zygadło foram de carro até a zona rural para inspecionar o andamento das obras. Saindo de Wrocław rumo ao Sul, passamos por um monumento comemorativo dos 600 anos do povoamento da região e depois por um galpão da Amazon. Um senhor branco atravessou a rua segurando pela mão uma criança mestiça. “Um belo jovem polonês”, comentou Zygadło.
Assim que a estrada foi ficando mais íngreme montanhas adentro, uma chuva pesada começou a cair. Tokarczuk reagiu como se fosse uma afronta pessoal. “Não vamos conseguir aproveitar a vista”, queixou-se. Quando o tempo está bom, ela adora subir até o cume de uma colina atrás de sua casa, de onde é possível avistar as montanhas que se estendem ao longo da fronteira tcheca.
Comecei a reconhecer a paisagem que Tokarczuk descreve em Sobre os Ossos dos Mortos, seu suspense focado nos direitos dos animais. Quando ela começou a escrever o romance, já havia concebido a ideia de Os Livros de Jacó, mas sabia que este demoraria anos e ela precisava entregar logo um novo trabalho à editora. Querendo escrever “algo leve”, decidiu testar suas habilidades no romance policial. “Você tem uma forma, sabe? Você só precisa de tempo para planejar tudo, e aí fica fácil. Não é de admirar que esses escritores de histórias de crime e investigação consigam produzir um novo livro todos os anos.” Zygadło, no banco do motorista, apressou-se em pedir que ela parasse de falar.
A ideia para o thriller ocorreu pela primeira vez a Tokarczuk durante um inverno que ela passou sozinha no vale, depois de se separar do marido, tendo como companhia apenas dois cachorros. Um dia, os cães desapareceram. “Comecei a perguntar às pessoas o que tinha acontecido”, disse ela. “Alguém me contou que havia na área uma grande expedição de caça e que, às vezes, os caçadores bêbados costumavam matar cães.” Ela continuou: “Isso foi há muitos anos, mas fiquei com aquilo na cabeça por um longo tempo. Ideias como essa – é como se elas ficassem na geladeira. E então, um dia, aparecem na minha mesa.”
O livro é tudo menos um suspense convencional. A personagem principal, Janina Duszejko, vive em um remoto vilarejo sem nome, onde, sozinha, está travando uma guerra contra seus vizinhos, que são caçadores. Vegetariana e militante aguerrida da causa dos direitos dos animais, Duszejko está aflita com o inexplicável desaparecimento de seus cães de estimação e padece de toda sorte de angústias físicas e mentais. Quando os vizinhos começam a aparecer mortos de maneiras improváveis – um engasga com um osso enquanto come um cervo que ele mesmo matou, outro cai em um poço abandonado –, Duszejko tenta convencer a polícia de que os próprios animais estão se vingando dos caçadores.
A história é contada inteiramente por meio da voz estranha e obsessiva de Duszejko. Isolada e obcecada pela astrologia como um meio de entender o mundo – “A ordem existe e está ao alcance” –, ela é uma pessoa de coração aberto, totalmente desprovida de defesas mentais. No início do livro, pensando em sua dor, ela se pergunta: “Será que alguém pode se acostumar com isso? Aprender a viver com isso, exatamente como as pessoas vivem nas cidades de Auschwitz ou Hiroshima, sem jamais pensar no que aconteceu lá no passado.” No fim das contas, porém, ela compreende que uma vida assim é impossível. “Cada minúscula partícula do mundo é feita de sofrimento”, disse ela.
Pouco a pouco, a estrada de asfalto deu lugar a uma estradinha de terra. Uma raposa apareceu no matagal e, com a mesma rapidez, desapareceu. Tokarczuk ponderou sobre como devia ter sido aquela área depois da guerra, quando os alemães fugiram e os poloneses se estabeleceram. “Os poloneses trataram essas casas como um mero assentamento temporário. Não cuidaram delas. Tinham certeza de que a Terceira Guerra Mundial estava chegando e de que tinham que estar prontos para partir novamente.”
A casa surgiu por entre a névoa; tinha sido eviscerada até reduzir-se a seu esqueleto de madeira. Escavações na lateral haviam criado imensas pilhas de terra avermelhada. Dois homens estavam operando o que parecia ser uma betoneira portátil, fazendo argamassa para assentar tijolos. O empreiteiro, um homem parrudo de meia-idade, usando um boné de jornaleiro preto e jaqueta preta acolchoada, conduziu Tokarczuk para dentro da casa. Não havia eletricidade, e ela caminhou com cuidado pelo assoalho inacabado, examinando os azulejos da cozinha e deliberando sobre cores das tintas.
No andar de cima, a escritora e Zygadło examinaram o avanço das obras nos quartos. A intenção de Tokarczuk era que o cômodo com a maior janela fosse transformado em quarto de hóspedes para a sua irmã, de quem é próxima, mas Zygadło tentou convencê-la a mantê-lo como sua sala de trabalho. Na casa de Wrocław, Tokarczuk tem seu próprio espaço para escrever, mas aqui ela se acostumou a trabalhar na cozinha. “É assim que sempre acontece com as mulheres”, disse ela.
“Não na minha época”, retrucou Zygadło, balançando a cabeça.
Tokarczuk espiou pela janela. “Você tem certeza de que não podemos ir até o topo da colina?”, perguntou ela. “Talvez de carro?”
Ele suspirou. “Podemos tentar.”
De volta ao carro, Tokarczuk lembrou-se da árvore do Apostrof. “Oh, senhor Roman! Tenho uma coisa para o senhor!”, disse ela a um jardineiro que estava de pé na varanda.
“O que a senhora quer fazer com isso?”, perguntou ele.
“Eu não sei”, respondeu Tokarczuk. “É uma faia. Precisa de espaço para crescer. Mas não quero bloquear a vista. O que o senhor acha?”
Eles caminharam juntos em direção a um arvoredo em frente à casa. Tokarczuk voltou um minuto depois, satisfeita. “A floresta aqui foi plantada por mim”, disse ela. “Não tenho imaginação suficiente e não esperava que as árvores fossem ficar tão altas. Agora elas bloqueiam nosso sol de manhã.”
O carro emitiu estridentes bipes de protesto enquanto Zygadło tentava manobrar na estrada de terra, agora inteiramente enlameada.
“Vamos tentar”, insistiu Tokarczuk. “Opa!”, exclamou ela quando o carro derrapou.
“Por esse caminho não tem como a gente ir!”, disse Zygadło.
“De qualquer maneira, não há nada para ver quando o tempo está assim”, acrescentou Tokarczuk, suspirando. “Fica tudo enevoado. Que pena.”
O carro apitou novamente quando Zygadło tentou fazer uma manobra para virá-lo no sentido contrário na estreita estradinha. Do outro lado de uma campina havia um púlpito de madeira, daqueles usados por caçadores para se esconder. “Ah, meu Deus, esse é novo”, disse Tokarczuk com tristeza. No romance, Duszejko observa: “Não é o auge da arrogância, não é uma ideia diabólica chamar de púlpito um lugar de onde alguém atira para matar?”
“Morando aqui, no centro da Europa, onde exércitos vêm e vão e destroem tudo, a cultura se torna uma espécie de cola”, disse Tokarczuk em certo momento de nossa viagem. “Os poloneses sabem que sem a cultura não teriam sobrevivido como nação.” Uma nação que se mantém unida pela poesia patriótica de Mickiewicz – ou pela mitologia de um povo orgulhoso que permanece ligado mesmo após devastações cometidas por exércitos conquistadores – talvez seja algo semelhante a um vaso rachado: é útil e usável enquanto a cola aguentar, mas está longe de ser estável. Contudo, se não pode haver cultura polonesa sem a cultura ucraniana ou judaica, o que acontece quando essas minorias são subjugadas ou exterminadas? A cola se deteriora e já não adere, os cacos se soltam e desmoronam. Os artistas até podem fazer tentativas de restauração – contando histórias que mostram judeus e poloneses vivendo em harmonia, entoando em ucraniano as palavras de Mickiewicz. Mas não são capazes de restaurar o vaso a sua forma original. O trabalho deles reconfigura a pilha de cacos, criando algo novo a partir dos estilhaços. O vaso a que Tokarczuk deu feitio a partir da história de seu país é fraturado e fragmentado e, depois do que aconteceu no século XX, tem que ser. Alguns direcionaram contra a própria autora a ira que sentem com relação ao que essa história revela.
O título de seu sexto romance, Bieguni, deriva do nome de uma seita ortodoxa russa do século XVIII cujos membros acreditavam que permanecer em movimento constante lhes permitiria afugentar todo o mal. Em muitos sentidos, a Polônia é um país de nômades fugindo do mal do passado, com populações étnicas suplantando umas às outras repetidamente nas várias regiões. “Bem-aventurado aquele que vai embora”, dizem os nômades religiosos. Mas essa fuga pode ser apenas temporária.
“Toda cultura é alicerçada sobre mecanismos de defesa”, disse a escritora. “É muito normal que tentemos estancar e suprimir tudo aquilo que não é confortável para nós.” Ela entende que seu papel é forçar seus leitores a examinar os aspectos da história – a deles ou a de seus próprios países – que eles preferem evitar. Tokarczuk tornou-se, como ela diz, uma “psicoterapeuta do passado”.
[1] Por não ter concedido o Nobel de Literatura no ano passado, a Academia Sueca anunciou em outubro último dois prêmios, o de 2018 e o de 2019. O primeiro foi outorgado a Olga Tokarczuk; o segundo, ao austríaco Peter Handke. A premiação de 2018 foi suspensa depois que vieram a público denúncias de assédio sexual cometido por um dos membros do comitê do prêmio.
[2] A primeira tradução deste livro no Brasil, pela editora Tinta Negra em 2014, foi intitulada Os Vagantes. Em 2020, o romance ganhará uma nova edição pela Todavia, com o título (ainda provisório) Viagens. Em língua inglesa, chamou-se Flights. (N. T.)
[3] Com este título, o livro está sendo lançado este mês no Brasil, pela Todavia. O nome original em polonês é Prowadź Swój Pług Przez Kości Umarłych. (N. T.)
[4] A Galícia é uma região histórico-geográfica da Europa centro-oriental – o antigo Reino da Galícia e Lodoméria fez parte do Império Austríaco. Não se trata da Galícia ou Galiza, comunidade autônoma a noroeste da Espanha cuja capital é Santiago de Compostela. (N. T.)
Este texto foi originalmente publicado na revista The New Yorker.
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