No quarto ano de residência, Jório de Barros persegue concurso para a especialização do pai FOTO: ROGÉRIO REIS_2006
Ganhei a primeira cruz no meu bisturi
Passar de médico a paciente é horrível, a angústia aumenta muito
Jório de Barros | Edição 2, Novembro 2006
Vinte e sete anos de idade e quatro de residência, o cirurgião capixaba JÓRIO DE BARROS se divide entre o Hospital Federal do Andaraí, na zona norte carioca, e o hospital da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Com salário de 3 mil reais, e rachando o aluguel de 1,6 mil com os irmãos, já operou mais de duzentos pacientes. A profissão está no DNA: pai urologista, mãe ginecologista, irmã radiologista. Ele mora na Tijuca, namora uma pediatra. A seguir, suas anotações de um mês de rotina.
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TERÇA-FEIRA_3 DE OUTUBRO Dia de visita na enfermaria. É uma visita coletiva. Passamos os casos, leito a leito, tentando definir a conduta para cada paciente. Um deles tinha sido submetido à retirada de uma parte do intestino (gastrotomia subtotal), com complicações. Nos demos conta, tarde demais, que estávamos discutindo o caso ali, à sua frente. A cada palavra nossa, ele abria um olhar de susto e aflição, mesmo sem entender o que estava acontecendo. Voltei à enfermaria para vê-lo e examiná-lo mais uma vez. Encontrei-o muito assustado, chorando. Achava que iria morrer, que seria operado de novo.
Amanhã tem jogo e o Flamengo vai ganhar, claro.
QUARTA-FEIRA _ DIA 4 Estou gripado e com dores no corpo. Tenho duas cirurgias pela manhã e uma outra à noite.
Vejo uma paciente em fase terminal de um tumor de estômago, inoperável. Não temos como ajudá-la e ela sente isto. Parece que sabe que está morrendo.
A gripe piorou bastante. Já estamos no meio da tarde e ainda não almocei.
Saí do Andaraí, passei em casa e segui para o Hospital da PM, no Estácio, onde, às 19h, fizemos outra cirurgia. Correu tudo bem, mas estou saindo à meia-noite, só com um lanche na barriga e bastante gripado, doido para chegar em casa, comer alguma coisa e descansar. Tenho que estudar um pouco antes de dormir – senão não termino a especialização em laparoscopia.
A cada paciente que atendo me dá vontade de agradecer pela residência no Hospital da Polícia Militar. Aqueles caras têm muita paciência para explicar o que não está no livro. Como eles dizem: “Quanto mais eu estudo, mais sorte eu tenho.”
QUINTA-FEIRA_DIA 5 Contas e mais contas. Depois de pagar tudo ainda tenho de separar algum para o boleto do Colégio Brasileiro de Cirurgiões. Há três meses quero entrar na natação e sempre deixo para a próxima semana. E a minha saúde? Já estou de novo pensando em dinheiro, mas o fato é que está difícil. São muitos descontos: INSS, Imposto de Renda. Só aí já ficam 1 mil reais. E aumento, que é bom, nada.
SEXTA-FEIRA _ DIA 6 O dia começa às 6h30. Surpresa boa: Michele, minha namorada, veio tomar café comigo. Oba! Tomei um café reforçado para passar o dia todo no centro cirúrgico. Ninguém almoça, para não perder tempo.
Estou no centro cirúrgico. Checamos o material para começar a primeira cirurgia do dia, uma gastrectomia total, ou seja, a retirada do estômago, por tumor. Segunda boa notícia do dia: a cirurgia vai acontecer, conseguimos reserva de sangue, o que é muito difícil hoje em dia.
Às 19h30, zeramos tudo o que estava programado. Vai começar o fim de semana. Menos para mim, que ainda tenho um sábado inteiro, 24 horas de plantão no hospital da PM.
SÁBADO_DIA 7 Meu plantão começou às 7 da manhã, e às 11 da noite estávamos aguardando a chegada de uma ambulância com uma criança de sete anos, vítima de acidente com arma de fogo. Felizmente, apresentava apenas estilhaços pelo corpo, sem risco algum. Fomos conversar com o pessoal do resgate e ficamos sabendo da verdadeira história. Isso, sim, marcou o plantão. A criança estava com o pai, voltando de carro para casa, quando foram abordados por ladrões. O pai foi metralhado. A criança estava no banco de trás do carro, que foi jogado numa vala. Conseguiu sair dali, pediu ajuda e ligou para a mãe.
DOMINGO_DIA 8 A minha folga está começando. Vou para casa tomar um banho e me preparar para encontrar minha namorada.
Às 10 horas, já estou saindo de casa. Vou buscar Michele no Recreio, para passear um pouco. Resolvemos conhecer a Vista Chinesa e a Mesa do Imperador, lugares lindos, mas falta segurança: encontramos as placas cheias de buracos de bala, e pessoas comentando que alguém havia morrido ali horas antes.
Ficamos observando o Rio lá da Vista Chinesa. Lugar maravilhoso, adoramos. De lá, fomos almoçar e, depois, ao cinema. Os Sem-floresta, um desenho animado.
Michele queria voar de asa-delta, mas eu ainda não criei coragem para tanto. Talvez no próximo domingo (espero que chova).
TERÇA-FEIRA_DIA 10 Chega uma paciente na emergência, com muita dor abdominal. Ao abri-lo, encontramos pelo menos três litros de secreção. Intestino perfurado. A anestesista informa que ela está muito mal. Ao começarmos a fazer a colostomia (abertura do cólon para meio externo), ela teve a parada cardiorespiratória. Não voltou. Que tristeza, ganhei a primeira cruz no meu bisturi.
QUINTA-FEIRA_DIA 12 Acordo às 6 da manhã, na Tijuca, para tomar um banho e sair correndo para apanhar a Michele, na Barra, e levá-la ao aeroporto. Michele vai a um congresso de pediatria, no Recife. Mas haja trânsito, Linha Amarela, Linha Vermelha e finalmente ela embarcou às 8h50. Agora preciso ir voando até o Andaraí. Estou escalado na Pequena Cirurgia. É lá que, em média, fazemos dez cirurgias a cada manhã — são pequenos procedimentos, como tumor benigno, subcutâneo (lipomas), cistos, tudo muito importante para o treinamento dos novos residentes.
Hoje o pesado começou depois do almoço. E, à noitinha, ainda fui até uma clínica particular com um colega, em Campo Grande, onde tínhamos uma cirurgia agendada. Era um tumor no cólon (intestino grosso).
Finalmente o dia termina, às 23 horas. Posso voltar para casa.
SEXTA-FEIRA_DIA 13 Quase 7 da manhã. Estou chegando ao Andaraí. Encaro 50 quilômetros no trânsito todo dia. Minha escalação hoje é para o Centro Cirúrgico, o dia todo, embora nosso mapa não esteja pesado: três cirurgias. Ainda bem, porque estou tenso: tenho consulta marcada com um bucomaxilofacial que, como o nome indica, trata dos problemas nessa área. Vou tentar resolver meu problema de desvio da mandíbula, e não consigo parar de pensar nisso. Passar de médico a paciente é horrível, a angústia aumenta muito. Tenho pensado nas piores coisas. Há tempos ajudei um colega dessa especialidade numa cirurgia e fiquei muito impressionado. É preciso fraturar a mandíbula do paciente para realizar o reparo.
Parei de pensar nisso quando chegou um paciente com uma hérnia inguinal bilateral, seguido de outro com uma hérnia umbilical.
Às 14h30, rumei para o consultório do médico, na Barra. Aperto a campainha e ouço o que todo mundo ouve quando entra numa sala de espera: “Sente-se, você já vai ser atendido.” Olho para as pessoas à volta, em busca de um sinal de satisfação. Parecem satisfeitas, o que traduzo como indício de que o atendimento deve ser bom.
O médico me chama, entrevista, examina, esclarece minhas dúvidas, faz sua hipótese diagnóstica e me pede alguns exames. Se os exames confirmarem a hipótese, vou ter de usar aparelho e, depois, ser operado para deter o crescimento da cartilagem na articulação da mandíbula. É o que se chama de conhecer o outro lado do bisturi.
SÁBADO _ DIA 14 Dia de plantão de 24 horas no hospital da Polícia Militar. Acabo de acordar meu irmão para me levar até o Estácio e ficar com o carro. Rachamos fraternamente nosso Clio 1.0. Às 7 horas da manhã de domingo, ele volta para me apanhar e levar até o aeroporto do Galeão. Vou para Recife encontrar com Michele.
Plantão tranqüilo, pela manhã. Ajudei um colega a reduzir a fratura de punho de um paciente que gritava de dor. Na maca ao lado havia outro, com fratura no tornozelo. Ficou assustado e perguntou: “O meu não vai precisar puxar, não é?” Estava calmo, coisa rara.
À tarde, conseguimos até ver um jogo de futebol na TV, sem grandes emoções.
No início da noite a paz se foi. Chegou um paciente vítima de PAF (“ferido por projétil de arma de fogo”). Tinha ferimentos na região femoral e no pênis.
A noite avança e aumenta o barulho dos tiros nas favelas em volta do hospital. Estamos acostumados. Dá até para cochilar em plantões muito calmos.
DOMINGO_DIA 15 Há muito não esperava tanto por um fim de plantão. Estou chegando ao aeroporto. Descobri que vou viajar com o time do Fortaleza. Pena que eles não ganharam do Vasco. Vou aproveitar para conhecer o Lúcio, que jogou pelo Flamengo. Gosto do jogo dele.
Na chegada, fui direto para o hotel me trocar e segui com Michele para a Praia dos Carneiros. Lugar fantástico, onde existe apenas um bar e o resto é sol, mar, recifes de coral e um rio. Nunca imaginei que, com meu trabalho, conseguiria ficar um dia inteiro na praia. Idéia da Michele.
SÁBADO_DIA 21 Foram cinco dias maravilhosos, mas acabaram. São 6h20 da manhã e acabo de acordar com o despertador do telefone para mais um plantão. Dia pesado. Logo que cheguei fui chamado ao centro cirúrgico. Colegas da neurocirurgia, da ortopedia e da vascular operavam um PM baleado. Tinha levado cinco tiros no crânio, dois na cervical, um na coxa e um no ombro. Coisa assustadora logo pela manhã.
Mal deu tempo de tomar um café e fomos avisados que o helicóptero do hospital trazia uma vítima de acidente automobilístico, com mais de vinte fraturas e instável hemodinamicamente. Realizamos todas as manobras de trauma (ATLS, no código internacional) e ele recuperou a estabilidade. A equipe da ortopedia já o aguardava para sete horas de cirurgia.
Ainda não foi desta vez que precisaram da gente.
Tiros nos morros da Mineira e de São Carlos. Dura o dia todo. Ainda ontem, tudo o que eu ouvia era o barulho do mar, e, agora, estou aqui, de volta, identificando as armas pelo barulho que produzem: granada, pistola, fuzil.
Já passava das 11 da noite, e me preparava para descansar, quando ouvi gritos na emergência. Desci para verificar e encontrei um paciente que acabara de chegar. Estava mal. Tinha um corte profundo no antebraço direito, com sangramento importante. Estava entrando em choque. Pegamos duas veias e começamos infundir soro. Fiz um garrote no membro e examinei a lesão: tinham sido atingidas a musculatura, tendões e nervos locais. Começamos a cirurgia para a contenção definitiva da hemorragia até o cirurgião vascular chegar ao hospital. São 3 horas da manhã. Vamos ver se consigo descansar um pouco.
DOMINGO _ DIA 22 Passei o plantão às 7 horas e vim para casa dormir. Agora são 14h30 e estou acordando para almoçar. Michele está de plantão, o que significa que vou almoçar sozinho e finalmente desarrumar minha mala da viagem.
Vejo um pouco de televisão e, à noite, quero ver se encontro Michele para um cineminha, talvez comer alguma coisa.
Como Michele terminou o plantão muito cansada, não vamos sair. Vou estudar um pouco e dormir. Também estou cansado, um prego.
SEGUNDA-FEIRA_DIA 23 De volta ao Andaraí. É dia de ver como estão os pacientes que deixamos na sexta, além dos que foram internados no fim de semana. Está tudo calmo. Estão sendo realizadas três cirurgias de hérnias e não estou escalado para o centro cirúrgico. Hoje tem jornada no ambulatório. São 20 a 25 pacientes a cada dia — por volta de cem por semana — entre pré e pós-operatórios. Nos casos mais graves tenta-se conseguir uma prioridade, mas a fila é longa, não tem jeito.
TERÇA-FEIRA_DIA 24 Chegando ao hospital, percebi um risco profundo na pintura da porta do meu carro. Quase não acreditei. Onde pode ter acontecido isto?
Fui ao centro cirúrgico ver um paciente especial. Ele está lá porque não há vaga no CTI. Foi submetido a retirada de parte do estômago, e da enervação que vai para o estômago, por causa de uma úlcera duodenal perfurada, bloqueada pelo pâncreas. Tem 80 anos e está em estado crítico. Nisso foi-se a manhã.
À tarde, quando começamos as cirurgias do dia, ele já se encontrava mais estável. Às 17 horas, encerramos as cirurgias, mas ainda vou para Campo Grande, na Zona Oeste, com um colega. Vamos operar numa clínica privada. O trânsito deve estar dos piores, mas pelo menos vai dar para botar o papo em dia. Quantas pessoas devo ter deixado de atender por causa do trânsito?
Acabou sendo outra vesícula, coisa rápida. Mas não conseguimos sair antes das 22 horas. Tudo demora. A chegada do paciente ao centro cirúrgico, o preparo do material, a montagem do aparelho de vídeo, enfim, coisas que deveriam estar prontas. Fazer o quê?
QUARTA-FEIRA_DIA 25 Hoje é dia de comemorar aniversário de namoro. Acho que vai dar para jantar, talvez ir ao teatro com Michele.
Vou rapidamente ao hospital ver os pacientes e volto para estudar. Os concursos estão chegando e ainda não consegui me preparar como gostaria. Vou tentar uma esticada na reta final.
Foi ótimo. Jantamos num restaurante da Barra, relembramos muito do que aconteceu na viagem, grandes momentos.
QUINTA-FEIRA _ DIA 26 Já acordei cansado. Se tivesse uma casa com Michele a nossa noite teria sido muito melhor. O casamento pode ser a solução.
Cheguei ao hospital com a tarefa de preparar uma paciente para o dia seguinte. Ela é jovem e tem uma massa de quase 20 centímetros de diâmetro no abdômen, ainda não diagnosticada, com risco de infecção. Como a paciente não apresenta sintomas, será uma cirurgia diagnóstica. Fizemos reserva de sangue e de CTI. Vai ser uma cirurgia daquelas.
À tarde, fiz ambulatório e fui para casa estudar. Falei com Michele quando ela saía do hospital. Estava revoltada ao telefone. Deixara a bolsa aberta alguns minutos, e passaram-lhe a mão na máquina fotográfica digital. Ali, no trabalho mesmo. É revoltante.
Voltei ao hospital para uma biópsia de bexiga que deveria ter começado às 18 horas, mas só conseguimos isso duas horas depois. Os hospitais públicos estão pouco ligando para as equipes médicas.
São 22 horas e já posso voltar para casa. Amanhã vai ser um dia longo.
SEXTA-FEIRA_DIA 27 O dia mais esperado, porque anuncia o fim de semana. Não para mim. Além do grande número de cirurgias, ainda tenho 24 horas de plantão até a manhã de domingo. Menos mal que comecei o dia encontrando meu amigo Joel, com quem opero às sextas-feiras. Gente boa, médico de grande experiência, transmite muita segurança.
A moça do cólon é a primeira paciente. Não tem queixas, apenas um enorme tumor abdominal, cuja origem, apesar dos exames de imagem, não conseguimos determinar. Para nossa surpresa, vinha do ligamento redondo (no fígado), algo que nunca tinha visto.
Em rápido bate-papo na sala dos médicos no 8o andar, discutimos o de sempre: política e futebol. Eu não voto no Rio de Janeiro, mas acompanho os debates e participo das conversas. Acho que nunca os políticos vão olhar para a saúde como olham para a educação e para a segurança, o que também não é muita coisa. Sempre que falam de saúde, falam em melhorar o atendimento e os hospitais, mas nunca falam em melhorar o salário dos médicos, que não recebem aumento significativo há não sei quantas décadas. Só para comparação, um dono de estacionamento que recebe 5 reais por carro, se cuidar de vinte carros ganha 3 mil reais por mês. É o meu salário. Um médico ganha em início de carreira 1,4oo reais.
O hospital do Andaraí mudou muito quando passou a ser federal. Agora pelo menos não falta tanto material. Mas nossos hospitais não acompanham o crescimento da população. Como pode um hospital de porte federal ter um CTI com apenas dez leitos? Os planos de saúde continuam sugando o trabalho dos médicos e nada acontece, além de cobrarem cada vez mais dos pacientes. Não temos para onde correr.
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