ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Guerra em Tuscaloosa
Uma sessão de terapia para ucranianos e russos no Alabama
Gulmira Amangalieva | Edição 187, Abril 2022
De Tuscaloosa
Tome um café ou um chá, pegue uns biscoitos, fique à vontade. Desculpe, não temos sofá, mas essas cadeiras são confortáveis. Sinta-se em casa.” É assim que a psicoterapeuta me recebe, de maneira calorosa. O lugar, com a luz suave das luminárias, os lustres de cristal e uma lareira, parece mais uma aconchegante sala de estar do que um consultório.
A 14 mil km da guerra na Ucrânia, esse centro de aconselhamento em Tuscaloosa, no estado norte-americano do Alabama, organizou na noite de 7 de março passado uma sessão de terapia em grupo para ucranianos e russos. A ideia do encontro era promover um melhor entendimento entre pessoas dos dois países e ajudá-las a lidar com o estresse causado pelo conflito. Na cidadezinha universitária há poucas pessoas procedentes da Rússia e da Ucrânia, e só duas compareceram na terapia gratuita: eu e mais uma.
Sento-me em uma cadeira, ao lado de uma mulher que sorri cordialmente. Quando ela se apresenta como pesquisadora ucraniana, eu me esforço para parecer descontraída. “Oi, meu nome é Gulmira, sou jornalista russa”, digo. Nunca pensei que declarar minha cidadania e profissão me causaria tanta vergonha. É um desafio tão grande quanto ter que dizer pela primeira vez, numa reunião do Narcóticos Anônimos, que se é um viciado.
Quando cheguei aos Estados Unidos, sete meses atrás, para fazer pós-graduação em jornalismo na Universidade do Alabama, havia um clima de otimismo no mundo: em breve nos livraríamos da Covid, graças às vacinas. Quem haveria de dizer que mais uma grande crise estava se aproximando de nós? A diferença é que, ao contrário da pandemia, o inimigo agora tem um objetivo bem claro.
Terapeuta, uma norte-americana de voz suave, nos pede para falar de nossos sentimentos.
“Sinto culpa e impotência. Estou aqui, num lugar seguro, enquanto meus compatriotas estão morrendo e não posso fazer nada para ajudá-los”, começa Maria, a acadêmica ucraniana. Sua voz está trêmula, e a terapeuta sugere que ela pegue uns lenços de papel prudentemente deixados sobre a mesinha.
Maria também chegou aos Estados Unidos sete meses atrás, com o marido e os dois filhos, vinda da pacífica capital ucraniana, Kiev. Atualmente a cidade está sofrendo um bombardeio sinistro. A mãe e a sogra dela estão em segurança, entre quase 4 milhões de refugiados que se espalharam pela Europa. Mas alguns de seus amigos e colegas permanecem na Ucrânia, tentando resistir aos agressores.
Ela está zangada com os russos? “Não”, responde Maria, pois acredita que a única pessoa responsável pelo terror que está ocorrendo é Vladimir Putin.
Quando chega a minha vez de falar, digo que me sinto culpada, traída e com medo. Como muitos russos, eu nunca desejei esta guerra – o governo do meu país invadiu a Ucrânia sem pedir minha opinião.
Eu me sinto culpada porque esses crimes estão acontecendo em nome do país que eu represento. Cada civil morto na Ucrânia pesa na minha consciência. Eu me sinto culpada, também, porque não conseguimos impedir Putin de lançar essa guerra fratricida. Não fomos capazes de derrubar esse governo ilegítimo, que já dura tanto tempo, tempo demais, e não representa os interesses de muitos de nós.
Falo ainda do meu medo de que a Rússia não tenha futuro. Quando eu me formar, em dezembro, voltarei para um lugar diferente daquele de onde parti. Em poucos dias, meu país se tornou uma ditadura militar opressora, na qual os cidadãos correm o risco de serem condenados apenas por chamar as ações militares russas na Ucrânia de “guerra”. Ajudar ucranianos pode levar a uma pena de quinze anos de prisão.
Temo que meu país tenha ficado isolado e excluído do desenvolvimento econômico, tecnológico e científico. Com as sanções do Ocidente e a saída de grandes empresas estrangeiras, uma profunda crise financeira será inevitável na Rússia. Os doentes não receberão tratamento adequado. Os idosos viverão na pobreza. Os jovens não realizarão seus projetos de vida.
Hoje, minha pátria está moralmente dilacerada – em todas as famílias há discussões entre os que apoiam Putin e os que são contra a guerra. Minha profissão morreu na Rússia. Com o bloqueio dos últimos órgãos de mídia independentes, assim como do Facebook, Instagram e Twitter, as pessoas perderam o acesso a visões diferentes dos fatos. A propaganda do governo na tevê preencheu esses vazios de informação.
Nós, os russos, perdemos a dignidade e o respeito no exterior. Não me sinto mais em segurança para revelar minha cidadania, pois hoje ela é sinônimo de agressão. Mesmo que o Exército russo interrompa imediatamente seu avanço, sei que não conseguiremos expiar nossa culpa pelo que fizemos com o país irmão. O trauma de nossos vizinhos permanecerá por muitas gerações.
“É verdade”, comenta Maria. “Os ucranianos vão odiar os russos. E fico triste com isso, porque não quero que meus filhos cresçam com o sentimento de ódio.”
Se um ucraniano ou um russo está passando por maus pedaços, ele procura os amigos e vai relaxar tomando alguns drinques. Se um norte-americano está enfrentando dificuldades, seus amigos terão os ouvidos e o fígado poupados: a pessoa vai preferir um aconselhamento profissional. Em Nova York, “até os psicanalistas têm vários psicanalistas”, diz uma personagem de Sex and the City. No Alabama, uma analista basta.
Nossa terapeuta é especialista em transtorno de estresse pós-traumático e já atendeu combatentes e outras vítimas de traumas graves. Para escapar do estresse provocado pela guerra na Ucrânia, ela nos recomenda sentir gratidão por todas as pequenas e grandes coisas da nossa vida, evitando nos culpar porque outras pessoas não têm o mesmo. “Se você tem um travesseiro, deveria dá-lo a pessoas que sofrem? Não. Então aproveite”, diz.
Na opinião dela, faz bem escrever uma “lista de gratidão” todas as noites antes de dormir. “Vamos começar comigo. Sou grata por esta garrafa de água porque a comprei com 20% de desconto num supermercado. Sou grata por esta caneta porque ela escreve bem. Sou grata por este iPhone porque ele guarda muitos dados importantes. Sou grata por este par de sapatos porque são confortáveis”, enumera. Em seguida nos pede para listar as coisas positivas na nossa vida, uma por uma. E a sequência de reflexões sobre o clima abençoado do Alabama, os professores que nos apoiam e as novas manicures nos levam para bem longe de Putin, dos bombardeios e das perdas. Pelo menos por cinco minutos.
“Fico feliz ao ver que tudo correu bem em nosso primeiro encontro”, diz a terapeuta, alegremente, ao final da sessão, ainda sem acreditar que uma ucraniana e uma russa tenham ficado juntas numa sala sem entrar em conflito.