O leiturista Antonio Pra Frente tem até o fim do mês para louvar as belezas do cálculo estrutural responsável pela "catedral de concreto" FOTO: ALEXANDRE MARCHETTI
Há luz no fundo de Itaipu
O árduo caminho do emprego estável no labirinto da grande barragem
Marcos Sá Corrêa | Edição 46, Julho 2010
Se contasse este mês os passos que lhe faltam para se aposentar, Antônio Luiz de Lima somaria, até o dia 30, quase 100 quilômetros a seu currículo de marchas forçadas na Divisão de Obras Civis da hidrelétrica de Itaipu. Ele frequentemente percorre 8 quilômetros por expediente. Em diferentes circuitos. Mas sempre no mesmo lugar. Trabalha dentro da barragem, caminhando por corredores estreitos e amplos precipícios, ora se espremendo em cubículos, ora varando abismos de alvenaria por diáfanas passarelas metálicas.
Antônio é leiturista de Itaipu. Ou seja, confere milhares de registros embutidos em pontos-chaves da muralha. Como um endoscópio falante, de capacete na cabeça e planilha nas mãos, no mínimo três vezes por semana ele examina as entranhas da represa, tendo de um lado o reservatório com 29 bilhões de metros cúbicos de água e vinte tubos com 10,5 metros de diâmetro que envolvem o arcabouço de concreto, e caem do outro lado na boca das turbinas, depois de ganhar velocidade num escorrega de 142,2 metros.
Transitar por ali é como explorar uma caverna. A barragem tem 7 744 metros de comprimento, emendando paredes de argila, pedregulho e concreto. No trecho principal, foram cravados durante a construção 2 383 sensores e 5 239 drenos, para medir as deformações da estrutura e escoar as infiltrações inevitáveis. Todos são verificados regularmente.
A cada ano, dezesseis profissionais, entre técnicos e engenheiros, fazem 185 mil aferições em pêndulos, piezômetros, alongâmetros e outros artefatos de nome sonoro, aparência rústica e tecnologia imemorial. Alguns lembram calibradores de pneus em postos de gasolina. Outros, uma ponta de cano saindo do muro. Todos só funcionam nas mãos de especialistas. Menos de 10% dos sensores instalados em Itaipu são automáticos.
Logo, o sistema de segurança da represa depende de funcionários como Antônio. De preferência, gente tarimbada. Ele está fazendo 33 anos de casa. Sai do emprego levando uma suspeita de surdez no ouvido esquerdo, que atribui, primeiro, à íntima convivência com as torres que moeram os 12,7 milhões de toneladas de concreto das obras civis na barragem e, ultimamente, ao ronco das vinte turbinas de 6 438 toneladas que giram, no mínimo, a 90 rotações por minuto na casa de máquinas.
Com rigor de engenheiro, ele avisa que o problema de audição “a fonoaudióloga não constatou”. Certo mesmo, atestado pelos médicos com doses diárias de Condroflex e Arpadol, é o desgaste prematuro das cartilagens de seus joelhos, “de tanto subir e descer rampa ou escada”. São “383 degraus só para ir da cota 144 à 82”. E isso, naquele universo hidráulico, é altura para um prédio de vinte andares.
Embora haja elevadores nos blocos centrais da represa, “cobrir a pé 60 ou 80 metros de desnível é coisa que acontece a toda hora”. E ainda bem, porque a pior lembrança de suas três décadas se concentra nos 22 minutos a bordo de um elevador em pane. Ele estava, na ocasião, sozinho e sem lanterna, dois pecados capitais no breviário de segurança dos leituristas de Itaipu. A bordo, a luz piscou. A cabine do E-12 parou com um tranco. E, ao voltar a eletricidade, ele se deu conta de que estava preso numa caixa de aço, “provavelmente na cota 78”.
Quer dizer, 142 metros sob a borda da represa. Dentro de um bloco oco de concreto desabitado com 196 metros de altura, que em si já é um lugar “todo fechado, onde você olha para o alto e não vê uma nesga de céu”. A saída ficava a uns 66 metros poço acima. Antônio pegou o telefone interno e ligou imediatamente para o 9999, o número de emergência, que toca no posto dos bombeiros, ao pé da barragem. E, depois de pedir socorro, não tirou mais os olhos do relógio.
Todo seu treinamento para emergências deu para quatro minutos de espera. “Aí, comecei a me sentir mal”, disse. Chamou novamente o 9999, agora em pânico. “Por sorte, o sujeito que me atendeu tinha experiência nessas coisas e não parou mais de conversar comigo.” Pendurado ao telefone, sentiu quando a turma do resgate começou a enganchar sacos de areia nos cabos do contrapeso. Aos poucos, o E-12 foi subindo. Ao abrir a porta, viu o chão desalinhado do piso. E saiu do elevador como quem salta de um parapeito.
“Aqueles 22 minutos foram uma eternidade”, ele resume, enchendo a xícara de Cachamai, o chá de ervas argentino que tem sempre à mão, num canto do Laboratório de Tecnologia do Concreto, aninhado num antigo barracão de madeira do canteiro de obras. Antônio nem se arrisca a dizer quando, exatamente, a encrenca do elevador aconteceu.
“Foi há uns oito ou dez anos”, ele desconversa. É a única imprecisão de datas numa fala em que tudo tem dia, mês e hora, recitados de cor. Ele lembra que estreou na empresa “em 27 de novembro de 1977” e, naquele mesmo dia, “às 19h15”, viu cair o concreto da partida “001/77”, destinado ao bloco “H-5C”. E que estava lá 27 anos depois, “em 30 de novembro de 2004, às três da tarde”, ao sair o último concreto, para a “unidade 18-A”.
Do susto no E-12 ficou só uma certeza: “Sofro de claustrofobia.” Não suporta nem passar pelo “tubo de ressonância magnética”. Mas isso ele diz no escritório. Dez minutos depois, ao entrar na barragem, parece curado do mal que diz lhe afligir. Aos 54 anos, continua em plena forma, a ponto de usar camisas justas de malha enfiadas no cinto, em vez dos blusões folgados do uniforme que tendem a enganchar nos obstáculos do percurso. Caminha no labirinto da barragem como se respirasse ao ar livre. Incorpora o “Antônio Pra Frente”, o seu apelido dado pelos colegas ao melhor cicerone entre os leituristas.
Algum parentesco com o “Pra Frente, Brasil” da propaganda oficial, em voga quando os governos militares fizeram a hidrelétrica? Ele encara a pergunta como se a ouvisse pela primeira vez: “Não, é porque sou assim mesmo.” Usa com naturalidade palavras como “enaltece”. Chama todas as coisas pelo nome técnico. A água, com ele, não se infiltra, “percola”.
A visita começa no trecho F, o coração da usina. Lá dentro, mal os olhos se habituam à penumbra, ele aponta para o teto da torre sombria, a mais de 70 metros: “Estamos nas catedrais de concreto.” Trata-se de um dos blocos descomunais de gravidade aliviada – ou seja, ocos – “onde economizamos 850 mil metros cúbicos de concreto”. Se fosse maciço, com tamanhas proporções, “o cimento estaria até hoje secando”. E aproveita para ensinar que as eclusas do canal do Panamá, inauguradas em 1914, têm partes que “ainda não secaram”.
De improviso, não é fácil achar o que dizer daquela mistura de escuridão de catacumba com pé-direito de nave gótica e curvas modernistas. Aquilo para ele é uma beleza. Antônio quebra o silêncio, dissertando sobre a obra-prima do cálculo estrutural, modelo do “trinômio segurança, economia e beleza”. E arremata: “Todo projeto de engenharia bem-feito fica bonito.”
Dali para baixo, há “quatro eixos principais a percorrer”. São galerias intermináveis, gotejantes e desertas. Iluminadas por lâmpadas esparsas, à medida que se avança por blocos e cotas elas vão ficando cada vez mais parecidas umas com as outras. Nas encruzilhadas, há letras e números gravados com tinta fosforescente, como placas de rua nas esquinas de uma cidade. Aparentemente, só servem para orientação de quem não precisa, porque Antônio memorizou as plantas desenhadas em meados da década de 70.
Não deve ser nada bom estar lá por sua conta e risco. Um leiturista novato leva cerca de quatro anos para aprender a se virar com desenvoltura nas tripas da represa, e sempre em dupla com um tutor experiente. A equipe tem um estoque inesgotável de palpites sobre os truques da navegação nos corredores. E todos soam como advertências. É preciso saber em que cotas param os elevadores. Se o túnel não tiver ligação com o exterior, não adianta segui-lo até o fim, porque ele fatalmente o levará de volta para dentro da barragem. Para se orientar, é indispensável saber sempre em que plano se está andando e a quantos metros se está da água – não existem referências internas e é preciso se guiar pelo que está no mundo exterior. Há galerias que levam a outras galerias. Até sinais que lá fora são inconfundíveis, lá dentro parecem cifrados.
Em sua ronda, Antônio estaca de repente num trecho idêntico ao anterior e anuncia: “Aqui é o Brasil; ali, o Paraguai.” E segue em frente como se isso não quisesse dizer nada. Itaipu, vista assim, é mais binacional do que se presume à distância. No chão da sala de controle, uma faixa amarela separa o Paraguai do Brasil. É puramente simbólica. Sequer está alinhada com o talvegue do rio, que foi outrora o limite entre os países. E, na sala, ninguém ocupa as mesas de acordo com a nacionalidade do chão.
A distribuição de vagas na empresa também ignora as formalidades aduaneiras. Os funcionários paraguaios passam atualmente dos 1 800. Os brasileiros não chegam a 1 500. Nas equipes de leituristas, paraguaios e brasileiros se embaralham a tal ponto que uns nem se dão ao trabalho de fingir que falam a língua dos outros. Cada um se entende no próprio idioma. E o portunhol não é voz corrente.
Num ambiente tão distinto do exterior, a natureza às vezes se infiltra nos planos dos engenheiros. A começar pelo mexilhão dourado, um molusco asiático que se aclimatou ao lago artificial de Itaipu e insiste em colonizar as tubulações da usina, com efeitos corrosivos. Há cartazes contra ele até em locais que raramente acolhem forasteiros. São lugares que a maioria dos funcionários da hidrelétrica sequer imagina, o interior mais interior do labirinto.
Manchas verdes de limo deram sinal de vida nos cantos mais remotos do concreto. Ao surgirem, foram examinadas em laboratório, por temor de que as algas tivessem propriedades corrosivas, como as do mexilhão. Provaram-se inócuas. E acabaram deixadas onde estão – como um toque involuntário de vanguardismo estético, a chegada do estilo green-wall às profundezas de Itaipu – as paredes vivas que passaram a fazer parte do cardápio de arquitetos estrelados.
No inverno, quando as juntas de vedação se contraem e as infiltrações aumentam, uma legítima cachoeira corre pelas rochas negras e lustrosas da cota 144. Na cota 20, documentando um treinamento de resgate nas fundações da represa, o fotógrafo da casa Alexandre Marchetti avistou meses atrás um broto de samambaia despontando da frincha do paredão rochoso, à luz de uma única lâmpada. Lá em cima, nos nichos geométricos de concreto formados pelos vértices de cada módulo, goteiras acabam formando grutas, com estalactites e estalagmites. Antônio credita o fenômeno à “carbonificação do cimento”.
Não é só a natureza que dá o ar de sua graça nos recantos mais secretos da hidrelétrica. O saguão do elevador, na cota 78, tem o solado de uma bota de borracha nitidamente impresso no teto rebaixado. Coisa de algum operário distraído, que pisou no molde enquanto a placa ainda secava no chão. E as galerias da barragem são profusamente grafitadas. Ostentam desde nomes de operários que passaram pelas obras até meados dos anos 70 – como “Nacho”, “Alemão” ou “M’Bussu” – às questões essenciais que lhes passavam pela cabeça, enquanto tocavam a maior obra do regime militar.
As relíquias desses devaneios incluem declarações sentimentais – como “Fátima, te amo” –, mas capricham, sobretudo, na mais explícita pornografia. Sobraram alguns protestos políticos. Várias paredes tiveram que ser lavadas às pressas no dia em que o general Alfredo Stroessner anunciou uma visita aos peões. O resto ficou esquecido a 30, 40 metros do solo, à medida que os andaimes e balancins de madeira foram saindo de cena. E Itaipu virou um sítio arqueológico pouco estudado da pintura rupestre no século XX.
O ponto culminante do passeio guiado por Antônio é também o mais profundo. Fica 200 metros abaixo da linha-d’água. “Se furarmos nesse ponto uns 15 metros, vamos sair no fundo da represa”, diria algumas semanas depois o leiturista José Antônio Zanutto Ribeiro. Ali o ar é sempre nevoento e frio, mesmo quando em Foz do Iguaçu os termômetros batem nos 40 graus. De longe, ouve-se um rumor constante de água, que se propaga pelos túneis, amplificado. “Ainda bem”, diria em outra incursão o leiturista João Menezes da Silva, que lida com esses assuntos desde 1977. “Ruim é quando não tiver barulho. Aí é sinal de que a água encontrou uma saída e está passando por outro lugar.”
As galerias da cota 20 margeiam regatos de água canalizada. É o ponto onde, desviado o curso do rio, na hora de erguer os paredões de concreto, encontrou-se uma falha geológica no duro leito de basalto do Paraná. Bem no trecho crucial da barragem. E o remédio foi cavar túneis no subsolo para escorá-lo com um remendo nos fundilhos, criando uma trama de concreto maciço cujas vigas se espalham por 40 mil metros quadrados. Numa obra onde tudo é superlativo, esse providencial cerzido atende por um diminutivo. Nele jazem enterradas as “chavetas” de Itaipu, contornadas por 800 metros de túneis.
De lá, se o elevador pifar, só se sai via cota 115, quase 100 metros acima. E tem mais: “Se pegar a galeria errada, sai na galeria de cima, que leva de volta à barragem.” Ou: “Se virar por aqui vai sair na fundação dos blocos, e alguns são escuros, porque acaba a iluminação.” A escada leva ao 144, mas sem passagem para fora. Quando o reservatório encheu, João passou 72 horas lá embaixo, de prontidão, numa sala de 1,20 metro quadrado, com 2 de altura.
Os quatro canais de drenagem são controlados na cota 20 por nada menos que 3 800 drenos. Eles distam entre si, em média, 3 metros. A maioria se enterra na rocha cerca de 10 metros. Alguns descem 80 metros pela pedra. Oitocentos furos de sondagem vasculharam na época da construção 30 mil metros em torno da tal falha geológica. Hoje, Zanutto, que é de poucas palavras, resume a operação de segurança na área das chavetas numa fórmula tediosa: “Tem que passar lendo a vazão de cada dreno. As informações se repetem. Não importa.”
Dito assim, como ele mesmo admite, “parece chato”. É esforço demais para resultado de menos. Instrumentos monstruosos produzindo números irrisórios. O percurso de Antônio, por exemplo, começa pelo PD F19 04 145,50 RMMO. Por extenso, o pêndulo direto da unidade F-19, na base 04, lido na cota 145,50 com régua maior na montante. O que se traduz mais ou menos por um fio de prumo colossal, pendurado na cota 223, praticamente na crista da barragem. Tem 180 metros de altura. Acusa milésimos de milímetros de deslocamento no eixo da barragem, sob a força do reservatório de 1 350 quilômetros quadrados. Nos últimos anos, tem servido para registrar oscilações de 4 a 14,5 milímetros.
Piezômetros, alongâmetros e outros portentos da auscultação de barragem repetem seus diagnósticos com a mesma monotonia. Existem cerca de 10 mil fissuras na estrutura da represa. “É o normal”, diz o engenheiro gaúcho Ademar Sérgio Fiorini, que também está para se aposentar em agosto. Como gerente do Departamento de Obras, ele é o chefe dos leituristas. Há três décadas, comanda uma equipe de trabalho que cobre as 24 horas por dia. E nem por isso está farto de saber que, numa barragem calculada para conviver com até 480 litros de infiltração por segundo, Itaipu está se contentando no verão com a média de 130 litros de água por segundo, que costumam subir para 170 no inverno. Quase nada para uma estrutura que habitualmente despeja de volta no rio Paraná, pelo vertedouro, mais de dez Cataratas do Iguaçu por segundo – no máximo da vazão, pode chegar a quarenta.
Para quê, então, serve essa equipe que volta todo dia para dizer que está tudo bem? “Tem ex-colegas meus, engenheiros, que também me perguntam o que ainda estou fazendo aqui, depois que a obra acabou há tantas décadas”, conta Fiorini, como se dissesse que até os especialistas podem fazer perguntas cretinas. Começou a lidar com Itaipu em seu primeiro emprego, quando o assunto ocupava as pranchetas de uma das firmas de engenharia que participaram do consórcio responsável pelo projeto. Mudou-se para Foz do Iguaçu durante a construção. E ficou até hoje na empresa binacional. Está esvaziando gavetas. Na parede de sua sala, um quadro com anotações de caneta hidrográfica, num azul já meio esmaecido, repete instruções do tipo “Verificar calafetagem EM-A-1, 2, 5, 6, 7 e 11”. O que quer dizer aquilo? “Ah, é um checklist deixado pelo Hélio Celso. Era um supervisor que já se aposentou.”
Dito isso, ele volta à pergunta inicial: “Segurança de barragem é isso. Não se trata de ter surpresas a toda hora, muito menos de tomar sustos. Faz-se a coleta de dados. Sai um relatório que vai para a inspeção. Depois a turma da engenharia faz a interpretação dos dados e avalia os sintomas de anomalia. Às vezes, é só o instrumento que precisa ser recalibrado. Por isso a obra acabou, mas os operários foram ficando. Precisamos de técnicos experientes, que ao mandar ver alguma coisa na PSA-40 sabem na mesma hora o que isso quer dizer.”
Em resumo, “boa parte desse trabalho tem que ser no olho”. Foi assim que João Menezes descobriu a tempo um vazamento potencialmente desastroso no H-67, um bloco do canal de desvio, quando o lago começava a encher, 26 anos atrás. “Ele ia passando, levou um jatinho na cara que não estava ali na véspera, deu logo o aviso e pudemos corrigir a tempo um pequeno deslocamento da barragem.” Mas esse tempo está passando, não só porque os funcionários mais tarimbados fazem fila atualmente na porta de saída, mas também porque as novas hidrelétricas, todas privadas, tendem cada vez mais a enxugar despesas, cortando investimentos em rotinas de segurança e, sobretudo, no patrimônio intangível da experiência humana.
É bom ver esses velhos profissionais em ação. Como numa tarde de fevereiro em que João levou para um turno os aprendizes paraguaios Benito Vasquez e Hernando Mendez. Tratava-se de aferir a vazão de um dreno. O elevador E-27 estava em manutenção. “Vamos a pé”, decidiu João. Os paraguaios suspiraram, mas seguiram o instrutor escada abaixo. Lá no fundo, com balde, proveta e cronômetro, calcularam quanta água estava derramando e comunicaram: “228”. João nem olhou para as contas. “Litros por minuto? Não deu, não. Podem medir de novo.” Eles refizeram a conta. Deu 22,2. “Eu sei que aqui pode dar na pior das hipóteses 41 litros”, disse João. Ele coordena o setor desde 1977.
É o mesmo ano em que chegou Antônio Luiz de Lima, e só porque estava sem emprego no interior de São Paulo. Arnaldo, seu irmão mais velho, se mudara recentemente para Foz do Iguaçu com uma camionete, e mandara notícias de que havia arrumado da noite para o dia um contrato com a Unicom, o consórcio de empreiteiras brasileiras, para fazer transporte de pessoal. A cidade tinha então pouco mais de 20 mil habitantes. A hidrelétrica poria 40 mil em seu canteiro de obras. Antônio fez a prova de matemática e português. Passou. E em setembro estava empregado, aos 19 anos. De lá para cá, foi o seu único emprego.
Só nos meses em que passou em Foz do Iguaçu aguardando a contratação, juntou “67 milhões de cruzeiros” – ou, trocando em miúdos, “dinheiro na época para comprar um Fusca zero” – fazendo bico como guia dos turistas que iam fazer compras na Argentina. Como? “Fui lá a passeio e vi que o cara da excursão ganhava comissão em todas as vendas.” Seu primeiro salário em Itaipu não valia um décimo do que ganhava com turismo, mas ele estava atrás de estabilidade para buscar, em Mirandópolis, no interior de São Paulo, sua namorada de infância. Antônio e Aparecida se casaram assim que ele assinou o contrato. E continuam juntos.
Ele começou misturando cimento na Central de Britagem. Depois passou para o laboratório, fazendo dosagem de concreto sob medida para cada aplicação estrutural. Fez todos os cursos sobre concreto que cruzaram seu caminho nesses trinta e poucos anos. Em 2006, ganhou o prêmio Liberato Bernardo, como Tecnologista do Ano, escolhido pelo Instituto Brasileiro do Concreto. De quebra, formou-se em Geografia pela Universidade de Presidente Prudente, “por capricho”. E aproveitou os últimos meses de patrocínio de Itaipu para estudar inglês à noite.
Antônio mora numa casa de 240 metros quadrados na Vila A, um conjunto de residências funcionais de Itaipu que virou bairro de classe média em Foz do Iguaçu. Oitenta por cento dos moradores compraram da empresa os imóveis que ocupavam. A casa de Antônio tem dois quartos, suíte, piscina, jardim e “área de lazer” – o que, no dialeto imobiliário local, significa churrasqueira. Na garagem, cabem seu Toyota Corolla 2009, o jipe Willys 67 “todo original” e o barco de 17 pés que usa para pescar na represa.
Ele reconhece que foi longe. É do tempo em que “todo jovem em Mirandópolis queria ir para São Paulo, trabalhar na indústria, e voltar um ano depois para visitar a família de roupa nova e Fusquinha”. Em Foz do Iguaçu, ele fincou raízes. Seu irmão morreu em 1979 no canteiro de obras, quando uma caçamba de carga, que atravessava o leito seco do Paraná por cabos teleféricos a 76 metros de altura, caiu sobre Arnaldo com 5 toneladas de vergalhões. Os pais o chamaram de volta. Ele preferiu dedicar dois anos, em Itaipu, ao trabalho voluntário na Comissão Interna de Prevenção de Acidentes. Hoje, tem uma filha formada em enfermagem com especialização em obstetrícia e um filho engenheiro eletricista, empregado num centro de pesquisas da Toshiba, em Curitiba.
Nada contra Mirandópolis. A turma que deixou lá, amigos do antigo bloco Tanto Faz dos carnavais da cidade, são quase todos “um grupo vitorioso”. Dá exemplos: “José Cândido Junqueira virou obstetra no Rio de Janeiro. Gilberto Ricaldi é empreiteiro em Campo Grande. Wilson de Moura, como diretor da Brastemp, trabalha na China. José Guilhamil Filho tornou-se dono de usina de álcool em São Paulo. Luiz Eduardo Cheida é deputado estadual no Paraná e foi secretário de Meio Ambiente.”
Mas Antônio, no grupo, era conhecido como Micuim. Integrava a ala pobre do Tanto Faz. E, levando em conta seu ponto de partida, reconhece que fez mais do que poderia imaginar. E é o único da turma que viu desfilar por seu local de trabalho seis presidentes da República, de Ernesto Geisel a Lula, sem contar os paraguaios Alfredo Stroessner, Andrés Rodríguez, Juan Carlos Wasmosy, Luis González Macchi, Nicanor Frutos e Fernando Lugo. “Aqui as coisas acabam passando por você”, ele conclui.
Pode estar passando também o tempo em que histórias como a sua aconteciam. Neste momento, estão de saída 27 funcionários que viram a hidrelétrica brotar, metro a metro, de uma cratera poeirenta cavada no rio Paraná. Desde 2008, um plano de aposentadoria organiza a retirada de cinquenta veteranos até 2012. Com eles, a empresa perde aquele tipo de memória que, segundo Fiorini, serve para recordar “onde foi enterrado um cano”.
Menos mal que tudo o que aconteceu na hidrelétrica foi registrado. “São milhares, milhões de documentos. A maioria ainda em papel”, conta Fiorini, “mas aos poucos eles estão sendo transferidos para uma base de dados informatizada, que será consultada por um sistema de busca através de imagens semelhante ao do Google Earth. Qualquer funcionário poderá ver a barragem do alto, como se estivesse na órbita terrestre. O reservatório inteiro. Cada trecho da represa. E focalizar num ponto qualquer. Descer por ele de cota em cota pela estrutura de concreto até as fundações. Abrir qualquer instrumento. E explorar seu banco de dados como se lesse o diário íntimo da represa.”
E assim não haverá mais leituristas nem claustrofobia? Desta vez, Fiorini vai direto ao fim da questão: “Quer saber de uma coisa? Eu também tenho um pouco de claustrofobia. Ver documentários sobre exploração de cavernas de noite me tira o sono. Sinto falta de ar. E andei muito tempo por aqueles buracos sem sentir nada disso.”