ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Habilitação médico-moral e cívica
O exame de motorista como última utopia brasileira
Marcos Sá Corrêa | Edição 33, Junho 2009
Tente responder depressa e, se possível, sinceramente: você se envolveu num acidente de trânsito e precisa escolher, com urgência, “o tipo de respiração artificial mais adequado a um adulto ou uma criança grande”. Adotará a opção A, “por compressão”? A B, “boca-nariz”? A C, “boca-a-boca”? Ou a D, “boca-a-boca-nariz”?
Ponto para quem marcou C, o que nem sempre vem ao caso. “Para mim, o que importa é que eu passei”, diz Aline Heringer. Ela acaba de tirar sua Carteira Nacional de Habilitação. Aos 19 anos, está oficialmente capacitada a dirigir. Seu pai é que ainda não se acostumou com a idéia de lhe entregar o Fiat 147 da família. Se ao menos ele soubesse o tanto que ela precisou aprender antes de o país julgá-la apta a sair por aí ao volante…
Para fazer o teste, a candidata Aline aturou longos dias com a cara enfiada no livrinho. Ou seja, na cartilha preparada pelo Detran com o bê-a-bá do Código Nacional de Trânsito. O “livrinho” tem quase 100 páginas e bibliografia de treze títulos – por exemplo, o Manual de Urgências em Pronto-Socorro, de B. Pires, M. Starling e M. T. Vieira, que inclui capítulos seminais como “Laparoscopia na Emergência” e “Úlceras Duodenais Pépticas Perfuradas”.
Não que seja necessário ir às fontes para conferir. A cartilha cobre o básico, a começar pela definição de “viagem perfeita”. O motorista desatento poderá presumir que se trata de uma temporada em Paris com tudo pago, ou, dependendo do freguês, de uma ida a Miami com tardes para compras. Nada disso. Para o Detran, viagem perfeita é aquela em que o condutor “não comete nenhum erro”.
A cartilha também define o homem como “o principal membro da engrenagem que conhecemos por trânsito” e estabelece o conceito técnico de “colisão misteriosa”, a saber: aquela que ocorre quando “às vezes o motorista, por algum motivo que ele mesmo não sabe explicar, perde o controle de seu veículo e se choca com algum objeto fixo, como um poste, um muro, um carro parado, um portão etc.”. Não confundir, portanto, com “colisão em ultrapassagem” e muito menos com “colisão em cruzamento”.
Seu pendor para a exatidão desce aos ínfimos detalhes, como os centavos. As tabelas de multa se desdobram em frações de trocados, aparentemente para lembrar aos cidadãos que o governo é judicioso e não faz nada por acaso. Quando, eventualmente, constrangido pelo dever, mete-lhes a mão no bolso para educá-los, calcula a penalidade com o máximo rigor contábil, evitando excessos até a última casa decimal. A cifra de 127,69 reais significa falta grave; 574,62 é sinônimo de infração gravíssima; 85,13, de coisa leve (reparem que os centavos não passam de treze).
Há também instruções exatas sobre “como avaliar em qualquer circunstância” se você está dirigindo perto demais do carro da frente. Atenta aos avanços da física moderna – e particularmente ao continuum espaço-tempo –, a cartilha ensina que a distância correta nesse caso se mede em “2 segundos”. Em dias de chuva, vira 4. Os pneus só podem circular com sulcos mínimos de “1,6 milímetro”. A lista de manutenção rotineira do automóvel arrola nada menos de 23 itens. Cautela nunca é demais, visto que “os lugares mais propícios para a ocorrência de acidentes são as casas, as empresas e o trânsito”. Logo, praticamente todos.
As seis páginas da cartilha sobre cuidados a tomar com o meio ambiente levariam às lágrimas a senadora Marina Silva. Abrem com uma exortação à natureza “sábia, abundante e paciente”. Ela é sábia “porque traz em si o mistério da vida, da reprodução, da interação perfeita e equilibrada de seus elementos. Abundante em sua diversidade, em sua riqueza genética, em sua maravilha e em seus encantos…”. E vai descendo por aí afora até chegar a recomendações específicas, como não “atirar lixo pela janela do carro, como garrafas plásticas e latas de refrigerantes”.
Aline gostou especialmente dessa parte porque seu pai é caseiro num condomínio de Nova Friburgo, cidade em que ela cresceu vendo árvores caírem para abrir alas às casas de campo. Isso a entristece. Ela tem o hábito de fotografar árvores e bichos, e ultimamente descobriu que tem queda para a biologia.
Mas daí à medicina vai uma certa distância. E ela não gostou de saber o que o país espera de seus motoristas no quesito “socorro às vítimas”. Nessas emergências, considera-se indispensável, “antes de qualquer atitude”, avaliar o estado geral dos feridos, verificando se a temperatura do corpo está entre 36 e 37 graus, o pulso entre 60 e 100 batimentos por minuto, o pulmão soltando de 14 a 20 respirações por minuto e a pressão arterial operando a 120 x 80.
Em caso de boca a boca, é necessário tapar “as narinas com os dedos para não haver escape de ar e colocar a boca na boca da vítima e soprar até perceber que o tórax está se levantando”. Se for respiração boca-nariz-boca, “a boca deverá cobrir também o nariz”, o que é óbvio, mas constrangedor. Enfim, quando ocorrer “ao mesmo tempo a parada respiratória e a cardíaca”, torna-se necessário fazer simultaneamente “a respiração artificial e a massagem cardíaca”.
Tudo isso sem perder de vista, é claro, a segurança pessoal contra “doenças infectocontagiosas, usando luvas ou pedaços de pano”. E, se houver amputação, “guarde o membro num saco limpo e feche-o, coloque o saco dentro de outro com gelo e feche-o também” até a ambulância chegar. Aí, “a vítima deve ser removida juntamente com o saco que contém o membro”. Para isso, Aline acha que não está pronta.