ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Herói ganha rodas
A virada do engenheiro que se especializou em próteses para cães
Consuelo Dieguez | Edição 84, Setembro 2013
O primeiro foi Herói. Há treze anos, o engenheiro mecânico Ricardo Bastos inspecionava uma obra no subúrbio carioca de Inhaúma quando reparou no cão arrastado pela coleira por sua dona. As patas da frente faziam o esforço de puxar todo o corpo, já que as de trás estavam paralisadas. O atrito com o chão criara feridas no animal. Penalizado, Bastos foi até a dona de Herói e disse que procurasse uma clínica veterinária perto dali; ele se encarregaria de pagar o tratamento. A mulher explicou que não tinha jeito: Herói era paraplégico. Por isso, andava estropiado daquela maneira.
Conceição, a dona do vira-lata peludo, contou que chegara a entrar em contato com uma empresa de São Paulo que fazia cadeira de rodas para cachorro, mas o equipamento era caro demais. O engenheiro se dispôs a pagar, mas descobriu que a cadeira custava o mesmo que um carro de segunda mão que tinha acabado de comprar para a sua empresa. Então prometeu que a faria ele mesmo. Para isso, valeu-se de desenhos de bigas romanas que fizera anos antes para usar na construção de uma miniatura.
Dias depois ele foi à casa de Conceição com a cadeira pronta. A mulher morava num cortiço, e seu quarto ficava no final do corredor. Ao lado da porta, Herói dormia junto a um mendigo que tomava conta dele quando a dona saía. O cachorro olhou desconfiado para Bastos e sua gerigonça, mas deixou que lhe colocassem o colete em volta do pescoço e do tronco. O colete era preso a um carrinho de alumínio leve, com duas rodas próximas às patas de trás. Dois apoios similares a botinhas, pendurados nas hastes de metal, serviam para sustentar os membros sem movimento, de forma que o corpo de Herói ficava afastado do chão.
Bastos esperou a reação do animal. Para sua decepção, Herói não se mexeu. Mirava-o como quem perguntasse o que fazer. Naquela altura, boa parte dos moradores do cortiço se aglomerava no corredor, esperando o desfecho do caso. Humilhado, Bastos já se abaixava para retirar o equipamento quando Herói começou a andar. Primeiro devagar, testando a novidade. Ao se dar conta de que não precisava arrastar o corpo pelo chão, o animal disparou com o carrinho pelo corredor. De tão eufórico, não soube parar e espatifou-se contra o portão. Bastos recolocou o equipamento e Herói iniciou nova corrida, agora latindo para os moradores, como que exibindo sua nova liberdade. Foi uma comoção.
A partir daí, o telefone da empresa de Bastos não parou de tocar. Não para fechar contratos de engenharia, e sim para encomendas de cadeirinhas para cães deficientes. O engenheiro tentava explicar que aquela não era sua atividade. Mas, ao ouvir os relatos dos donos, se condoía dos animais e acabava cedendo. Sua afinidade com os bichos aumentava todas as vezes que via um deles voltar a andar graças a seus equipamentos. “Vejo a mudança imediata no comportamento do animal. De tristes, acabrunhados, sem querer comer, eles voltam a brincar como se o equipamento fosse a extensão de seu corpo”, contou Bastos numa tarde de julho, em sua casa em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio.
Aos 58 anos, Ricardo Bastos mora com nove gatos e oito cachorros, todos resgatados da rua. A casa é simples, mas confortável. Na garagem coberta, penduradas na parede, ficam as cadeiras coloridas que ele constrói – no máximo uma por dia, já que trabalha sozinho. Na entrada da sala há um aparador com um cachorro preto de pelúcia, usado como modelo para fazer as cadeiras e os outros objetos que desenvolveu: colete ortopédico, colar cervical, órtese para animais com problemas em uma das patas e, um dos seus maiores orgulhos, próteses para amputados.
Na parede, há uma foto do espírita Chico Xavier com uma dedicatória a Bastos pelo seu trabalho com os animais. Ele chora ao falar de seu mentor. Durante anos mantiveram uma amizade epistolar. Dessa correspondência, Bastos diz ter percebido que sua alegria e seu prazer estavam muito mais em cuidar dos bichos do que na empresa de eletricidade. Em 2009, decidiu fechá-la. O que ganha com as cadeirinhas e equipamentos para animais é suficiente para sobreviver.
Bastos recusou ofertas para transformar sua oficina – um quarto da casa onde há uma máquina de costura e poucas ferramentas – em um grande negócio. Ele contou que certa vez, ao fazer uma cadeirinha para o cachorro do senador José Sarney, recebeu a visita do neto do político, que lhe propôs montarem uma fábrica. “Não quero. Não tenho intenção de ficar rico com isso. Não quero uma Ferrari, nem um apartamento na praia do Leblon. Já tive isso e não era feliz. Agora sim me realizo.”
Muitas vezes ele dá as cadeiras para os que não podem pagar, embora o modelo mais caro, para cachorros maiores, não custe mais que 400 reais. “Se pudesse eu dava de graça para todo mundo, mas preciso comer e comprar ração para esses caras.” Os caras, seus gatos e cachorros, ficam em volta dele enquanto faz café na cozinha. Fantasma, um vira-lata branco, ele pegou na rua. Um dos gatos ficou paraplégico porque crianças bateram nele e lhe quebraram a coluna. Agora ele anda.
Bastos trouxe as cadelas Ellen e Meggie de Teresópolis em 2011, depois da tragédia das chuvas na Região Serrana do Rio. Na época, liderou uma campanha em prol dos mais de mil cães que perderam seus donos na enchente. Ele se emociona ao se lembrar de Nina, uma poodle que recolheu. O dono tinha quebrado a coluna da cadela e, depois, a jogara no rio. “Eu trabalhava com equipamentos para cães deficientes e não tinha um cão deficiente. A Nina veio para me ensinar tudo.”
Nina morreu este ano e está enterrada no quintal de Bastos. “Os bichos não têm a quem recorrer. Por isso nada me dá mais alegria do que poder ajudá-los. Outro dia vi um cão levantar a patinha feita com a minha prótese para fazer pipi no poste. Isso não tem preço.”
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