Nada como ter 29 bilhões de metros cúbicos d'água despejados em cima de suas terras, para ter a certeza de que o futuro baterá mais cedo à sua porta, trazendo segurança e prosperidade ILUSTRAÇÃO: ENGLISH SCHOOL_THE BRIDGEMAN ART LIBRARY
Itaipulândia
A boa vida da cidade paranaense de 9 mil habitantes e 800 mil dólares de royalties, que quase sumiu do mapa quando a hidrelétrica fechou as comportas
Marcos Sá Corrêa | Edição 9, Junho 2007
A primeira impressão de Itaipulândia passa depressa. Dura o tempo que o carro leva para cruzar, a caminho da cidade, com o cartaz que irrompe no acostamento e diz: “Vem aí o maior parque aquático do Sul do Brasil!”. Com isso, tapa os milharais e campos de soja que ondulam, a perder de vista, no cenário uniforme do Oeste paranaense. Visto assim, de relance, o parque parece um oásis, pois o cartaz anuncia águas termais, bombeadas do Aqüífero Guarani, a mais de um quilômetro de profundidade, jorrando das entranhas da terra roxa a 41° centígrados. A lista prossegue com 70 mil metros quadrados de jardins, piscinas agitadas por “oito tipos de ondas”, um tobogã mais alto que qualquer edifício do centro urbano, e corredeiras artificiais num “rio selvagem”.
Pura miragem. Na prática, como tudo aquilo está parado a meio caminho entre um parque e um canteiro de obras, o melhor lugar para visitá-lo é o Paço Tancredo Neves, a sede da prefeitura. Na maquete, ele está completo, e, sob um tampo de acrílico, decora o saguão. E o prédio também não faz feio, para mostrar que Itaipulândia pode ser pequena, mas pensa grande. O prédio da prefeitura foi inaugurado em 2002, quando o dólar, no Brasil, valia o dobro, puxando o orçamento anual do município para perto dos 80 milhões de reais.
Itaipulândia tem 15 anos de idade, 9 mil habitantes e mesada de 800 mil dólares, paga pela hidrelétrica de Itaipu. Em reais, são 19 milhões ao ano, a maior parte dos 34 milhões que o município deve gastar neste ano. Com tanto dinheiro, daria para a cidade fazer o que quisesse, inclusive um parque aquático que disputasse, a cem quilômetros das Cataratas do Iguaçu, uma vaga no mercado regional dos portentos hídricos. Mas o projeto, como está, custou-lhe 15 milhões de reais. E, faltando 2 ou 3 milhões para concluí-lo, o prefeito decidiu no ano passado que o empreendimento está de bom tamanho.
Afinal, Itaipulândia já conta com o monumento a Nossa Senhora Aparecida. Há sete anos, a cidade entronizou-o no topo do Caramuru, o morro redondo que domina o relevo do município, cem metros abaixo, até o ponto em que a terra se encontra com o lago artificial da hidrelétrica de Itaipu. Do mirante, avista-se um próspero quadriculado de retalhos verdes, típico dos lugares onde os agricultores plantam para vender e compram para comer.
Com algumas diferenças. As estradas se esgueiram entre plantações que se derramam pelos acostamentos. Mas ali não sobra um metro de terra para uma roda atolar no barro, como se espera de uma viagem pelo interior. O município ocupa uma península, cercada pela represa. O lago tem cor de água limpa. Suas bordas estão inteiramente cercadas por uma barreira quase contínua de árvores nativas, formando um bosque sinuoso, que às vezes se espraia por 400 metros de largura. E, na cidade, ruas largas como avenidas e avenidas arborizadas como praças se cruzam em ângulo reto.
As verdadeiras atrações de Itaipulândia, no entanto, são mais discretas. É o caso das escolas da rede municipal, que põem à disposição dos alunos, em média, sessenta computadores com acesso à internet em banda larga. Das salas de aula, onde se respira ar-condicionado da primeira série ao fim do segundo grau. Dos ônibus escolares, que pegam em casa os estudantes, não importa onde estejam. E dos programas da secretaria de Educação, que fornecem merenda, uniforme, material didático e mochila.
Mais de mil pessoas fazem cursos gratuitos de extensão cultural, que abrangem pintura, violão, teclado, violino, inglês, francês, espanhol e alemão. Mil e tantos têm aulas de futebol masculino e feminino, ginástica, musculação e artes marciais. Trezentos e cinqüenta estão inscritos num programa de alfabetização para adultos. Com mais 150, o índice municipal de analfabetismo cairá a zero. E para 900 idosos há sessões de fisioterapia, palestras sobre controle de hipertensão e diabetes, caminhadas em esteira ou ao ar livre.
A saúde é toda por conta da prefeitura. Ela mantém três postos médicos e um hospital com 28 leitos, quatro gabinetes dentários e sala de raios-x. Se nada disso resolver, uma frota com duas ambulâncias, duas vans e dois automóveis permanece de prontidão para transferir os casos mais difíceis aos centros cirúrgicos capazes de tratá-los, mesmo que seja preciso atravessar o Paraná inteiro.
Como nada disso se vê de longe, a Nossa Senhora Aparecida de Itaipulândia tem 26 metros de altura e um manto cravejado por quase cem metros quadrados de pastilhas. Em estatura, perde por doze metros para o Cristo do Corcovado, no Rio de Janeiro. Mas ultrapassa em catorze metros o Redentor em bronze dourado da cidade vizinha, Santa Helena. E é ele que vem ao caso. As duas cidades concorrem no turismo. Os monumentos atraem os ônibus fretados por turistas, às vezes com placas de outros países sul-americanos e um faro internacional para rastejar programas sem tíquete de ingresso. A Santa Helena coube “a maior estátua de Cristo em bronze da América Latina”. A Itaipulândia, “a maior Nossa Senhora em concreto da América Latina”.
Ela saiu por 175 mil reais, em 2000, e quitou uma dívida histórica da cidade com sua padroeira. Itaipulândia nasceu em torno de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, trazida por Francisco Dornelles Taborda, o fundador do povoado. Com a valentia fundiária que marca os desbravadores de fronteira, Né Taborda tomou conta, no braço, de 800 alqueires de selva bruta, na terra de ninguém que era o sertão do Paraná nos anos 60. Loteou-os, sem escritura, entre imigrantes catarinenses e gaúchos, que estavam começando sua marcha para oeste. Em meio século, esbarrariam nos confins de Rondônia.
Foi assim que os brasileiros fincaram pé naqueles ermos, esquecidos por séculos nas mãos de argentinos e paraguaios, que faziam por lá suas “obrages”. O termo guarda o sotaque das expedições transnacionais de contrabando, que tradicionalmente arranhavam as barrancas do rio Paraná sem colonizá-las. Eram acampamentos provisórios, para extrair madeira e mate.
A futura Itaipulândia nasceu nesse eterno berço esplêndido da livre iniciativa – a mata nativa. Né Taborda quis erguer seu vilarejo num lado do córrego Lambari. Os colonos se instalaram na margem oposta. Ele trouxe a santa. A Linha Taborda, por conta própria, resolveu se chamar Aparecidinha do Oeste. No diminutivo, por modéstia. O arruado era tão simplório que até banheiro lhe parecia supérfluo. Anos depois, as campanhas de educação sanitária teriam que popularizá-los, combatendo as verminoses com panfletos que proclamavam: “No mato não”.
A primeira farmácia – de Lírio Benevenuto Ghellere – só abriria em 1970. Madeira de lei se queimava, à falta de serraria para comprar tanta derrubada. Varas de caititus fuçavam os roçados. Aos domingos, caçava-se porco-do- mato, por atacado, no oco de árvores centenárias. “Às vezes dez, doze bichos de uma vez”, contam Iria Bruch Böhm e Rodison Scarpato, em Itaipulândia, Seu Povo, Sua Origem, Sua História. Editado – como não poderia deixar de ser – pela prefeitura, o livro despertou nas famílias pioneiras o hábito de se reconhecerem como protagonistas de uma saga. “Desde que ele saiu, as pessoas passaram a vir aqui, trazendo casos, fotografias e documentos”, diz a professora de matemática Iria Böhm.
O passado da cidade foi tão breve que a maioria das suas fotos históricas é colorida. Nenhuma é tão eloqüente quanto dois mosaicos de aerofotografias, em branco-e-preto, que a dupla de historiadores montou a mão na Casa da Memória, nova inquilina da construção onde ficava a prefeitura. Datada de 1970, a colagem mostra as linhas de desmatamento entrando na floresta compacta pelo curso dos rios. A de 1980, uma terra retalhada em lotes geométricos.
Se o passado foi isso, o futuro, na época, era Itacorá, a sede do distrito. Ela também surgiu de um loteamento particular, o do comerciante Luiz Trentini Neto, que, em 1961, comprou de Patrício Moleda, um argentino que se aboletara ali em 1913, a posse de 1 600 hectares. Itacorá ficava perto do rio Paraná, no caminho entre Guaíra, onde estavam as Sete Quedas, e Foz do Iguaçu, onde estão as cataratas. Por isso, cresceu rápido. Sediava um destacamento do Exército. Tinha uma estação rodoviária, por onde passavam sessenta ônibus por dia. Ela sumiu do mapa em outubro de 1982, como as Sete Quedas, 170 quilômetros rio acima: foi tragada pela represa quando a usina fechou as comportas. Jaz no fundo do lago de Itaipu, sepultada em 29 bilhões de metros cúbicos de água.
Para encher os 1 350 quilômetros quadrados do reservatório, a Itaipu Binacional alagou mil quilômetros quadrados de terras ribeirinhas. E isso tem preço. Na década de 1980, a campanha para indenizar os colonos juntou agricultores desterrados, bispos católicos, pastores evangélicos e militantes políticos no que hoje é o Movimento dos Sem-Terra. E pôs em marcha o MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens. Atazanou-se o governo militar, que apostava no projeto as fichas mais caras do milagre econômico. Arrancou-se da estatal a legalização de terras loteadas por colonizadores informais, como Né Taborda, levando o Incra a confeccionar, sob medida, os papéis que permitiram à empresa ressarcir os pequenos agricultores das perdas impostas pelo alagamento.
Liquidadas as pendências com particulares, a conta mais alta pousou na mesa de Itaipu suavemente. Com a usina funcionando, ela começou a pagar as compensações pelas terras públicas desapropriadas no Brasil e no Paraguai. De 1985 a 2006, repartiu entre os dois países 6 bilhões de dólares em royalties. Só no lado brasileiro, a parte que toca aos municípios que margeiam a barragem – quinze no Paraná, um no Mato Grosso do Sul – soma 5 milhões de dólares por mês.
A partilha é proporcional ao tamanho da área inundada. Ganha mais agora quem mais perdeu no passado. Santa Helena, abraçada pelo lago, fica com a maior cota: 1,2 milhão de dólares por mês. São José das Palmeiras, que se separou de Santa Helena, tem que se contentar com 9 mil dólares. São Miguel do Iguaçu, que ficou sem Itacorá e quase um quarto de seu território, pega 400 mil dólares. Não leva mais porque o decretou que regulamentou o pagamento de compensações acabou lhe custando também Aparecidinha do Oeste e seu rico dote de royalties.
A represa cortou ao meio o território de Aparecidinha do Oeste. De seus 327 quilômetros quadrados, mais da metade foi a pique. Escaparam da subida das águas 151 mil quilômetros quadrados. Em troca, a cidade cresceu, incorporando empresas e serviços despejados de Itacorá, como o cartório, a agência dos correios, banco e o posto médico. Tinha 5 229 habitantes. Sem o contrapeso de São Miguel, três vezes mais populoso, seria o paraíso dos royalties per capita. Uma década e meia depois, com praticamente o dobro dos moradores, sua parcela ainda equivale a 90 dólares por cabeça, líquidos e certos, lastreados pelas receitas operacionais de uma estatal que gera 20% da eletricidade consumida no Brasil.
Ao contrário do que diz a primeira estrofe do hino municipal, a cidade não parecia “embalada num sonho abstrato”. Meses depois do decreto, com um plebiscito em que a autonomia emplacou 95% dos votos, Aparecidinha do Oeste emancipou-se. Não tinha nada a perder, fora o nome. Como havia outra Aparecidinha do Oeste no cadastro do IBGE, a cidade mais uma vez rebatizou-se, adotou o nome da hidrelétrica e pôs o lago em seu brazão, entre um ramo de milho e outro de soja.
Dá para sentir a velocidade com que, de lá para cá, as mudanças aconteceram, pelo que ocorre atualmente na avenida Tiradentes. Ela está virada pelo avesso, para remodelação. Ganhará calçadas com piso tátil e sinais de trânsito sonoros, para cegos, meios-fios com rampas e fiação enterrada. Principalmente, inaugurará na cidade, “de fora a fora”, a era do esgoto tratado, com o primeiro trecho de uma rede projetada para cobrir todo o núcleo urbano, já no próximo ano. Em uma década, a rede chegará às 500 propriedades rurais do município.
Feita às pressas na diáspora municipal da década passada, a velha prefeitura virou a Casa da Memória. Na sala que exibe as “peças da colonização”, machados e serras manuais convivem pacificamente com um computador SID 502, relíquia da reserva de mercado na informática que pertenceu à primeira agência do Banco do Brasil. Foi tudo tão rápido que, a meia hora do centro, os veteranos da colonização ainda chamam a cidade de vila.
O forasteiro pode cair no mesmo equívoco, ao não ver traço de favela, mendigo ou menino de rua. Sem esses ingredientes, o Brasil não sabe fazer cidade grande. Em Itaipulândia, o exemplo mais notório de construção informal é o endereço do ex-sorveteiro ambulante Massimo Ferreira, o Geladinho. Na esquina da rua Padre Isidoro com a Aparecida d’Oeste – portanto, no centro da cidade -, ele cobriu a casa, da calçada à cumeeira, com mais de 8 mil garrafas PET. Mal se enxerga a fachada, por trás dos arcos, guirlandas, samambaias choronas e cata-ventos de polietileno tereftalato recortado e colorido. Levou doze anos para se cercar de lixo, numa cidade onde os caminhões de coleta vão até a última porteira e os resíduos são reciclados. Para quê? “Para chamar a atenção”, ele explica.
A população carente da cidade tem outro representante no pescador Valmiri Trajano da Rosa. Ele só tem o primário. E se queixa de, ultimamente, “até concurso público para varrer rua exige a oitava série”. O que é um problema, porque “a maior geradeira de emprego aqui é a prefeitura”. Critica, igualmente, o hábito local de levar os menores problemas ao Paço Tancredo Neves, para “comer no cochinho”. Apresenta-se como “eleitor do Lula, quer dizer, sem-teto”.
Valmiri tirou há cinco anos habilitação de pesca profissional. “Peixe não dá quase nada. Mas, pelo menos, pegou, é seu.” Ele tem barco de alumínio com motor de 25 cavalos, que dorme acorrentado a uma árvore no quintal, por via das dúvidas. Lança diariamente 2 mil metros de rede no reservatório. Tira, em média, dois salários mínimos. Num “verãozão” como o de janeiro passado, “trabalhando bonito”, dá para fazer 1 500 reais por mês, porque há mais cardumes no lago e mais banhistas acampados nas margens. Ele mora em casa de madeira, a 300 metros do reservatório, na chácara de três alqueires e meio que seu pai comprou com o que recebeu de indenização. Pescando, às vezes passa de barco por cima da terra onde cresceu. Reconhece o local exato pela forma de uma ilha: era o morro que havia atrás da casa.
O gado que se vê da varanda pertence a seu pai. Mas ele admite que usa “a rocinha para tomar um leitinho”. Possui um Ford Del Rey dos anos 80 e uma motocicleta Leopard, nova em folha, fabricada na China e comprada no Paraguai “pela metade do preço”. Cria pacus em onze gaiolas submersas, que fervilham com cerca de 4 mil peixes confinados dentro da represa. A Itaipu doou-lhe os tanques, os alevinos e as primeiras semanas de ração. Em contrapartida, ele se compromete a soltar 10% dos pacus, para repovoarem o lago. O resto lhe dá mais ou menos um salário extra.
No cotidiano, Itaipulândia não perdeu o jeito interiorano. Pergunte-se ao primeiro transeunte pela melhor loja. É A Popular, que vende roupa de cama, mesa, banho, homem, mulher e criança. Programa noturno? O da Kadu Som, que nos fins de semana escancara os alto-falantes para a rua e brinda com CDs ou camisetas os primeiros a entrar. Praia? A da Jacutinga, artificial, mas com areia fina e rosada trazida de balsa desde Guaíra. Restaurante? O do Gaúcho. Hotel? O do Gaúcho.
Na Gaúcho Churrascaria e Pousada, atende o Gaúcho em pessoa, com um palito passeando de um lado para outro na boca. Deve ser por isso que não dá para entender o sobrenome que vem depois de Vitorino. Pedir-lhe para soletrar arranca dele um suspiro: “Ich”. Parece funcionar como senha, porque a mulher vem e soletra: “E-i-c-h-e-n-b-e-r-g”. Eichenberg chegou ao Oeste do Paraná sozinho, aos 20 anos. Pegou o sítio 58 da Linha Gaúcha, “onde não entrava caminhão”. Cumpriu todos os trâmites da colonização. Abriu mato. Plantou milho e feijão, mas “não tinha para quem vender”. O único vizinho ficava a três quilômetros. Para buscar mandioca na Flor da Serra, a 32 quilômetros, ia a pé, “dois dias para ir, dois para voltar”. Em um ano, acabou toda a sua roupa. Ele esperou um irmão vir de Santa Rosa, no Rio Grande do Sul, trazendo a muda que o pai mandou.
O sítio 58 não existe mais. Transformou-se em hotel pela mágica da indenização. Tem doze apartamentos. Cinco com frigobar, televisão, ar-condicionado e diária de 25 reais. Pelos outros, cobra dezoito, com café da manhã. Funciona com um empregado e dez Eichenbergs, somando filhos e netos. Servindo a mesa, revezam-se um neto de 18 anos e uma filha de 17. O almoço de dez reais só acaba quanto o cliente recusa, com veemência, mais um prato. “E a carne”, como ele faz questão de explicar, “sou eu mesmo que carneio.” Acabou, ele vai ao curral e providencia outra.
Hóspedes não lhe faltam. “Hoje mesmo está lotadinho. Eu, inclusive, mandei para outro hotel três fregueses”, ele afirma, numa banal quinta-feira de outono. Imagine-se na temporada de verão, que começa em novembro, com o Natal Dourado Iluminado, e janeiro adentro mantém nas ruas a decoração. Antes, em outubro, vem a Festa do Dourado no Carrossel, o regabofe que justifica a existência dos 27 carrosséis que, uma vez por ano, assam simultaneamente 728 peixes em espetos rotativos, em galpões construídos na praia da Jacutinga.
É uma tradição que saiu do nada em 1996, porque Itaipulândia precisava de uma festa à altura da vizinhança. Santa Helena tem a Festa do Costelão. Céu Azul, a do Porco à Paraguaia. Missal, a da Galinhada Orgânica. A do Dourado surgiu na cabeça de um funcionário da prefeitura, que se inspirou numa armação de guarda-chuva para conceber as grelhas.
Difíceis são os dourados, propriamente ditos. Eles eram comuns no rio Paraguai, mas desertaram das águas paradas da represa. O remédio é encomendá-los, às toneladas, no Mato Grosso do Sul, no Paraguai ou na Argentina. Em compensação, a festa marca, o ano inteiro, a chegada a Itaipulândia, pelo asfalto que corre entre sebes esculpidas como anjos, estrelas de Natal, sinos, capivaras e cuias de chimarrão. Uma das topiarias tem a forma do peixe.
“Se você der uma boa olhada, verá que aqui há lugares muito bonitos para morar”, diz Vendelino Royer. O prefeito anda por qualquer lugar da cidade a pé. Dispensa a guarda que o cargo lhe assegura. Pode ser achado aos domingos “num barquinho”, no meio do lago. Os filhos saem à noite sozinhos. A família dorme de janelas abertas. Em suma, cuida de “um município que não deve se preocupar muito em crescer”.
Quando largou o seminário, o prefeito morou numa favela de Porto Alegre. Não tem boas lembranças do Rio de Janeiro, desde a semana de férias que passou, na casa de parentes, em Parada de Lucas, autêntica praça de guerra entre quadrilhas que disputam a Baixada Fluminense. Agora, governa uma cidade cujo plano diretor limita a quatro andares o gabarito dos edifícios de apartamentos. Só um prédio residencial alcançou esse teto. E, se não dependesse da comissão municipal de desenvolvimento urbano, que concede as licenças, mas da opinião pessoal de Royer, nem ele existiria. O prefeito torce pela casa com jardim.
Itaipulândia não desistiu de bancar o parque aquático por falta de dinheiro. E sim porque Royer foi ver de perto os que já existem pelo Brasil afora. Voltou convencido de que estão, em geral, fazendo água. Ele explica por que tem que controlar o dinheiro: “Nosso orçamento ainda é invejável. Perdeu cerca de 50% nos últimos anos. Quando assumi, estava em 48 milhões de reais. Caiu 12 milhões. Mas continua dando para fazer muita coisa. Só não dá mais para esbanjar”.
A prefeitura enxugou a administração pública desde que, há três anos, o Tribunal de Contas do estado proibiu que os recursos dos royalties deságuem nas folhas de pessoal. Ainda assim, emprega 3 200 pessoas. Noventa e sete efetivos e contratados por concurso. Tributo municipal não é o forte de Itaipulândia. Ela está em quadragésimo lugar em arrecadação própria, entre os cinqüenta municípios do Oeste paranaense. Quando Royer assumiu, andava pelo quadragésimo-quinto.
Com incentivos, cevou três pólos industriais. E a metade de sua arrecadação continua a vir da agricultura. A indústria entra no bolo com 2%. Vinte e cinco propriedades ocupam 45% das áreas agrícolas. Para os 408 proprietários que cultivam os outros 55%, os planos do prefeito incluem um abatedouro municipal, para 2 400 porcos por dia, um terreno reservado para produzir ovos férteis e incubação de pintos, outro para gerar leitões e, quem sabe, uma fábrica de sucos ou compotas. A um parque aquático, preferia usar a água do lago para irrigar as pequenas propriedades. Elas não têm fôlego para enfrentar as grandes plantações, produzindo grãos. E, dependendo das nuvens, não podem investir em gado de leite, suínos, hortigranjeiros e pomares.
Isso depende de Itaipu. E depender de Itaipu, pela experiência de Itaipulândia, é meio caminho andado. Em nome da água que suas turbinas engolem, a empresa investe há anos em programas que mudaram a paisagem de sua bacia. Corrigiu o leito das estradas rurais, para evitar que elas carreguem as enxurradas para dentro do reservatório. Arrumou os declives em curvas de nível, para acabar com as voçorocas que assoreavam o lago. Introduziu na região novas técnicas de cultivo, para evitar o costume de arar o terreno a cada plantio. Promoveu a agricultura orgânica, para diminuir o consumo de venenos e fertilizantes. Ultimamente, anda apostando tudo em convencer agricultores e 26 prefeituras a limpar, da nascente ao vertedouro, todos os rios que deságuam na represa, plantando mata ciliar, realocando chiqueiros e cercando os pastos ao longo do curso.
Enquanto o país espera o PAC, o prefeito Vendelino Royer fala em apertar o torniquete das leis ambientais, aumentar a renda no campo em vez de multiplicar os empregos na cidade e evitar uma explosão demográfica, atraindo turistas e barrando imigrantes. Não basta desembarcar na cidade e entrar na fila do cochinho. O crédito educativo, por exemplo, passou a valer só para quem reside na cidade há mais de seis anos. Nada disso dá voto. Com o esgoto, o eleitor urbano passará a pagar pelo que hoje é de graça. Restaurando a mata ciliar, o eleitor do campo perde um naco de chão conquistado a ferro e fogo. Royer acha que tem pela frente uma reeleição difícil, no ano que vem.
Seu plano de frear a imigração, por exemplo, enfrenta oposição em seu próprio gabinete. Na assessoria de imprensa, a jornalista Kátia Inácio está decidida “desde menina” a adotar uma criança. Ela nasceu “lá no meio do lago” – quer dizer, Itacorá. Graças a Itaipulândia, fez cursos de violão, inglês, espanhol, futebol e vôlei, formou-se em Comunicação, casou-se com o vereador Valmir Selzler e teve o primeiro filho, embalado desde o pré-natal pela secretaria de Saúde.
Está na hora de tratar da adoção. Ela se habilitou a ganhar a guarda de uma criança na comarca de São Miguel do Iguaçu. Por que não em Itaipulândia? “Porque aqui ninguém chega ao ponto de dar o filho.” E essa é a última impressão que se leva da cidade. A que fica.