O aleitamento materno, a priori, é um território repleto de máximas flácidas e fotos edulcoradas que se articulam com o preconceito: todo mundo faz isso, como é que eu não consigo? ILUSTRAÇÃO: PAT KINSELLA
Leite
Notas sobre a cruzada da amamentação
Margarita García Robayo | Edição 98, Novembro 2014
“NÃO DESANIME! A NATUREZA NÃO É MARAVILHOSA?”
A folha impressa com esta mensagem da internet sobressaía do caderno de uma jovem sentada mais à frente. De onde eu estava, só dava para ler o título. Duas frases interligadas pelo capricho de alguém com excesso de entusiasmo. Ou de violência. Em geral não gosto de ponto de exclamação – usá-lo num título, então, é como cuspir na cara de alguém. E a natureza? A natureza é tão maravilhosa quanto um tornado, uma chuva ácida, uma praga de lagartas.
“Mas para que você quer um secador de cabelo?” No curso de preparação para o parto, a jovem abraçava seu caderninho, atenta à preleção de uma das professoras, com um peito de plástico pendurado no pescoço como um crucifixo e segurando um bebê de pano. Era uma aula sobre aleitamento materno. A jovem, meio perdida, havia levantado a mão e perguntara se na clínica onde teria seu bebê havia secador.
Às vezes isso acontecia – talvez fosse algum problema hormonal. Perguntas eram lançadas como mísseis cegos e era preciso proteger a cabeça. Certa vez uma grávida quis saber se, ao começarem as contrações, seu namorado – ele não era obstetra – poderia ir medindo a dilatação com uma régua, para que tivessem certeza de quando ir ao hospital. Por sorte, diante de cada tirada dessas, já aparecia uma das professoras e punha tudo no devido lugar: estantes de ideias perfeitamente organizadas.
“As visitas são para a criança”, ela continuou.
Do teto, uma luz branca a iluminava. Ela suava um pouco, e o terceiro peito entre seus seios lhe dava uma aparência bizarra, de atração circense. O bebê estava sobre a escrivaninha, entre copos descartáveis com restos de café, uma garrafa térmica com chimarrão, folhas de erva-mate.
“Ninguém vai ligar se você estiver feia, ou gorda, ou suja, entende?” – feito um balde de água gelada em cima da gente, no inverno. “Você não tem que competir com seu filho” – na cara –, “sabe por quê?” – o tom era o de uma avó que passa sua milenar receita de biscoitos. “Porque você vai perder.”
“Não competir.” Essa era uma das ideias que circulavam no curso. “Deslocar-se.” Essa era outra. “Quando a mulher tem um filho, naturalmente se desloca para dar lugar a ele.” O naturalmente conferia um efeito balsâmico à frase. Não havia necessidade, ninguém naquela sala tinha problemas com a perspectiva de se deslocar. Na verdade, quase todas as jovens manejavam discursos muito mais extremos: falavam do parto respeitado com a mesma desenvoltura com que ajeitavam a franja. As pausas, na falta de docinhos, eram recheadas de conversas do gênero: fraldas, carrinhos de bebê e o respeito ao parto. Quase todas queriam que se lhes respeitassem o parto: que estivessem completamente acordadas para experimentar o que naturalmente implica expelir do corpo uma criança, não importa por quanto tempo, sem anestesia e, se possível, na banheira da própria casa. Apenas algumas fracas como eu iam para um canto pesquisar no Google, via celular, “peridural”. E lá vinha: “Sequelas, paralisia, morte”, e assim por diante. Até encontrar um site que nos lembrava que o mundo já usava esse tipo de anestesia havia mais de 100 anos, com bons resultados.
Mas a grande estrela deste curso e de outros era o aleitamento materno, e aí não cabia discussão. Todas nós queríamos dar de mamar, com a convicção de quem aposta nisso o título de mãe. A receita estava escrita no quadro-negro e era a mesma para todas: seis meses de amamentação exclusiva por livre demanda, e depois comida mais mamada até os 2, 3, 4 anos. Não havia um limite claro. A confiança de que podíamos encarar essa tarefa não tinha senões – e, quando surgia algum, era sanado por notas generosas com ponto de exclamação. As puericultoras, as notas e as companheiras liam sempre pela mesma cartilha: todas as mulheres têm leite, até mesmo as que não deram à luz.
Uma jovem com as costas de fora está sentada numa poltrona que um dia foi verde. Uma de suas mamas está acoplada a uma ventosa elétrica, que a ordenha. Da ventosa sai uma cânula que leva o leite da mama até uma espécie de sachê, preso à pele entre seus seios com um pedaço de fita adesiva. Do sachê sai outra cânula que – também presa com fita adesiva – serpenteia a outra mama, de cima até o mamilo. O mamilo é de borracha porque o verdadeiro é liso como uma bola de bilhar, impossível de ser sugado. Os lábios de um bebê minúsculo tocam o mamilo de borracha. Gota a gota, o leite entra por sua boca, e o bebê o engole.
A isso se chama relactação. Ela permite que o bebê tenha a sensação de que está sugando o peito, e não um sorvete. O leite do sachê pode ser da mãe ou não. Neste caso é, mas o objetivo principal desse sistema é propiciar – ainda que por meio de um truque – o contato do bebê com sua mamãe quando for o momento de alimentá-lo.
Em outra cadeira, uma jovem com as costas de fora, bem magrinha e muito pequena, tem os seios achatados, pálidos; os mamilos, enormes, vermelhos e rachados. Esses mamilos são verdadeiros. A jovem, de coturno, veste uma meia roxa e tem um piercing na sobrancelha. Sentado sobre a saia estilo country dela, olhando-a, há um menino que já frequenta a escola. Chora. Faz umas seis horas que ele não come nada. Quer sugar os mamilos feridos, mas estão cuidando da mãe, porque ela sangra.
“E se você der uma mamadeira para ele?”, pergunto.
Ela olha para a puericultora de plantão, que lhe enxuga o peito com um algodão impregnado de seu próprio leite. A puericultora olha para mim. Tem uns olhos azuis profundíssimos, que um momento antes pareciam um lago de bondade. Agora me parecem o lago Ness. Com o monstro na superfície. Faminto.
“Querida”, diz ela, “a mamadeira é o inimigo.”
Há uma semana nasceu meu bebê, Vicente. Como acontece com quase todos os bebês, seu peso baixou nos primeiros dias. Depois disso ele não conseguiu recobrar todo o peso inicial, e o motivo, segundo a enfermeira da clínica, é porque meus peitos estão muito inchados, já que, como se diz, o leite está descendo. Meus peitos não cabem na boca do bebê. Um absurdo: não há peito suficientemente grande – nem pequeno – para a boca de um bebê. Um bebê não discrimina tamanho, um bebê instintivamente pega o peito e suga – é claro que, se sugar mais ar do que leite, na certa vai ficar desmotivado e decidirá não sugar mais.
Mas para chegar a esse ponto, primeiro ele tem de conseguir pegar em algo meio macio, com que possa lidar. Acontece que, nos últimos dias, meu leite sai por conta própria, e Vicente quase sempre o perde. Dorme. É difícil saber quando ele está com fome, porque não chora. Ao acordar, ele me olha com expectativa, com os seus olhos enormes, de cor indefinida – azeitonas verdes esmagadas, sopa de aspargos, mel de abelhas, mate fervido –, tentando me dizer alguma coisa que eu ainda não entendo.
“Ele está com fome”, a pediatra me dirá. “Você vai ter de tirar seu leite e dar a ele na mamadeira, assim vamos ter certeza de quanto ele está mamando.” E me prescreverá um regime de ordenha rigorosíssimo, que cumprirei à risca.
Mas ainda não.
Antes disso me informo sobre o centro de aleitamento materno da Fundalam, uma conhecida associação que promove a amamentação materna na Argentina há mais de trinta anos. Fica perto de casa, pego um táxi e vou até lá.
“E o bebê?”, pergunta a mulher na recepção.
“Não trouxe…” Ela dá uma batidinha na mesa com a mão, divertida. Pega o telefone e pergunta o número do papai.
Eu espero no hall de entrada, diante da janela. O dia é cor de mostarda. Penso que é a primeira vez que estou sozinha desde o nascimento de Vicente. Olho meus braços frouxos, apoiados nas pernas. Todo meu corpo tomado por uma sensação brutal de fragilidade.
Estou com muito sono.
Quando chega o outono, os dias, antes amarelados, adquirem um tom sujo. O efeito sobre os cômodos é como se a luz de fora atravessasse vidros empoeirados. Os vidros deste lugar estão limpíssimos, e também as cadeiras e o piso e os aventais das puericultoras, que entram e saem da sala onde atendem as mamães. Mas de alguma forma o lugar parece sujo. Não só pela luz sépia da rua, mas pelo cheiro. Que, depois de alguns minutos, descubro de onde vem. As mãos das puericultoras, sempre envoltas em luvas de plástico, estão constantemente manipulando mamas das quais o leite jorra. Deve haver algo nessa combinação – leite mais plástico – que causa esse cheiro. Meu próprio leite não tem esse cheiro. Em geral, não tem cheiro de nada; às vezes, tem cheiro de leite.
Dias atrás, conversei com três amigas que também amamentaram. Duas me disseram que o leite delas não tinha cheiro, a terceira me disse que sim, mas só quando ela punha protetores no sutiã. É isso. É esse o cheiro: leite azedo, estancado em material sintético.
Lá fora, um homem se despede de uma jovem com seu bebê: ela o carrega numa bolsa canguru. Vai até a recepção, diz que é sua primeira visita, explica seu problema. Deve ter sido a primeira vez que ouviu a expressão “mamilo bola de bilhar” e o termo relactação. Deve ser a primeira vez que vê uma bomba tira-leite.
“Meu bebê não consegue mamar. De um peito sai pouco leite, e do outro, nada.” A jovem cai no choro, abraçando o canguru.
Mais tarde, talvez no dia seguinte, pensarei que a frase deveria ter sido construída de outra maneira, pois assim sua mera formulação já pouparia a jovem de uma considerável dose de angústia: “Meu bebê não consegue mamar porque de uma mama sai pouco leite e da outra não sai nada.” São causa e consequência, mas a puericultora jamais aceitará isso. A puericultora lhe dirá: “Você tem uma produção incrível.” Dirá a mesma coisa para a magricela do piercing.
O único livro sobre gravidez que li na vida não foi durante a minha. Chamava-se Nove Luas, era lindo e não tinha nada a ver com este momento. Como muita gente me avisou que o nascimento de um filho coincidia com o ocaso da leitura, nos meses anteriores me dediquei, voraz, a consumir literatura. Se em vez disso eu tivesse lido mais sobre amamentação, acho que agora não me sentiria tão perdida.
O aleitamento materno, a priori, é um território repleto de máximas flácidas e fotos edulcoradas que se articulam com o preconceito: todo mundo faz isso, como é que eu não consigo? É difícil imaginar que, para aprender a dar o peito, seja preciso reunir bibliografia. Os primeiros dias depois do parto funcionam mais ou menos da mesma forma. Você aterrissa, desajeitada, num universo que intui, mas desconhece, e só quando está lá, envolta numa nuvem espessa de perguntas, começa a duvidar de sua capacidade de encontrar as respostas. Nestes primeiros dias, sinto falta das professoras do curso de preparação para o parto, com suas verdades absolutas.
“Todos os bebês são azuis”, disse, um dia, uma delas, e automaticamente todas nós olhamos para nossas barrigas evocando a mesma imagem: um bebê azul. Não é uma coisa que ocorra com frequência: essa identificação axiomática e coletiva produz o mesmo efeito narcótico que as religiões. Depois vem a dúvida, como um soco na cara.
“Ei”, batem na janela. É o papai do Vicente, que chega abraçado ao bebê. Vieram rápido. Agasalharam-se para enfrentar esse dia frio e amarelado. O papai do Vicente me cumprimenta lá de fora, que alívio que ele esteja aqui. Se soprar um vento, penso, desabo. E é o que acontece quando a porta é aberta. Com o vento, entram eles, encharcados por minhas lágrimas puerperais, inexplicáveis. Minutos depois, Vicente e eu estamos instalados na sala das janelas.
“Você tem uma produção incrível”, me diz Monse, a puericultora das manhãs. E pressiona minhas mamas com as mãos enluvadas, para amaciá-las. Depois põe Vicente para mamar e então as pressiona novamente. O leite sobressalente é embalado em saquinhos, e ela diz que dessa vez posso dá-lo em casa com um conta-gotas.
Um centro de aleitamento materno é um local que orienta as mães com intenção – mas com dificuldade – de amamentar. As queixas mais comuns são: o bebê não consegue mamar; a mãe não tem leite suficiente; os mamilos estão em carne viva porque o nenê mordeu e, portanto, quando ele mama – ou tenta sugar –, a mãe vê estrelas.
No mundo inteiro existem organizações dedicadas a promover o aleitamento materno. A maior deve ser a Liga do Leite, fundada em 1956 por sete mães católicas de Illinois – chama-se La Leche League, em inglês, porque a palavra breast (de breastfeeding) era considerada inadequada no entorno das fundadoras. E, além do mais, com esse nome homenageavam Nuestra Señora de la Leche y Buen Parto. A organização se estendeu rapidamente e, em 1964, se transformou em La Leche League International, com grupos em vários países. Hoje não há dúvida de que o aleitamento materno é assunto prioritário na agenda de saúde da maioria dos países do mundo. Dar o peito se transformou numa enorme cruzada progressista, numa militância, num dogma religioso: tudo isso junto.
Há 22 anos existe a Semana Mundial do Aleitamento Materno, criada pela Organização Mundial de Saúde e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Acontece de 1º a 7 de agosto, quando se comemora o aniversário da Declaração de Innocenti, documento que contém uma série de postulados que buscam fomentar o aleitamento materno. Quem organiza essa semana é a World Alliance for Breastfeeding Action (Waba), que todo ano elege um lema e escreve um manifesto para ser lido publicamente. Em Buenos Aires, houve uma manifestação na Plaza Italia. Com barraquinhas, atividades ao ar livre, palestras, ioga, cantos a capela e topless.
O lema de 2014 foi: UMA VITÓRIA PARA A VIDA INTEIRA! Assim, com ponto de exclamação.
“Sabe o que acontece? Acontece que todas essas jovens são filhas de mulheres que quiseram sair para trabalhar, em vez de ficar em casa criando os filhos. Então estão ressentidas, querem mostrar para suas mães que elas fizeram tudo errado.”
Minha sogra pertence a essa geração de mães, e está preocupada. Acha que eu posso ser uma dessas filhas ressentidas. Comecei a me ordenhar a cada hora – uma mama por vez –, mas não consigo tirar a quantidade de leite que a pediatra indicou. Agora me ordenho a cada quarenta minutos – ambas as mamas – e também não é suficiente. Além disso, esta semana fui todos os dias até o centro de aleitamento materno da Fundalam, onde levei uma bronca por ter dado ao bebê uma mamadeira com meu leite. Ainda que seja o meu leite, o recipiente nos prejudica.
Na Fundalam sou informada de que devo “dar o peito por livre demanda”, que o bebê vai mamar o que sair e que isso será suficiente. Mas não será suficiente, digo a eles, e explico a questão do peso. A pediatra foi clara: para engordar, Vicente precisa tomar 80 mililitros de cada vez, e eu consigo tirar 60, com sorte. Se ele não mamar o que precisa mamar, não vai engordar o que precisa engordar. Uma criança subalimentada é uma criança desnutrida. Uma criança desnutrida é uma criança doente.
“Nada a ver” – Monse, com seus gestos delicados mas firmes, lembra minhas professoras do colégio –, “é só você dar o peito para ele todo dia, toda hora” – estudei num colégio da Opus Dei –, “ele vai ficar bem.”
Todo dia a toda hora é uma tarefa impossível, mas uma frase literal. E eu a levo a sério, como levo a sério a pediatra. Enquanto falo com Monse, mantenho Vicente colado ao peito: ele suga e para, suga e para novamente. Parece se cansar. E a cada vez tento calcular quanto ele mamou, e não saber me enlouquece.
“O peito teria de ser transparente”, digo a Monse, que ri. Depois segura a cabecinha de meu bebê como se ele fosse um boneco e o pressiona contra meu peito. Ele se afasta e olha fixo para ela. Tem olhos de mangá japonês.
“Vamos, Vicente”, diz Monse, “ao trabalho!”
Coitado. Não tem nem um mês. Não quero que trabalhe.
Se já não fosse tarde demais em minha vida, eu gostaria de construir um império para que ele vivesse de renda.
Conheço uma garota que teve bebê seis dias depois que tive o meu. É amiga do meu namorado e vivemos a gravidez ao mesmo tempo. Ela e o namorado têm posições consolidadas sobre muitas coisas. Por exemplo, a alimentação. Fazem parte daquele grupo de pessoas, cada vez mais numeroso, que considera a vaca um reservatório de veneno. Há muitos anos tomam leite de amêndoas de manhã. Quando o bebê pedir Nescau – já pensaram nisso –, vão substituí-lo por cacau orgânico.
Procuraram um pediatra homeopata porque pensavam em integrar a criança a seu sistema de alimentação, que, de muitas maneiras, é seu sistema de vida. Naturalmente, essa jovem queria dar o peito para o bebê até que ele soubesse dizer “Chega, por favor”. Há alguns dias percebi que o filhinho dela estava muito magrinho. Como ela não estava produzindo leite, contratou uma puericultora que vai até sua casa. Ordenhou-se a cada hora, a cada quarenta minutos, a cada cinco. Nada. Ontem mandou para meu namorado a foto de uma lata de Nutrilón, a fórmula láctea mais famosa da Argentina. Está num impasse.
Na verdade, senti pena e inveja dela. Se você não tem nada de leite, recorre à fórmula porque não tem opção. Quem pode culpá-la? Se o seu problema é não ter leite suficiente, insista até que tenha. Estou o tempo todo na função de produzir leite, o que, paradoxalmente, faz com que eu produza menos, porque quase não durmo. Todos os manuais recomendam que a gente fique calma, confortável e descansada no momento de amamentar; alguns aconselham uma ducha quente um pouco antes, tomar chá de funcho, comer amêndoas, avelãs, fazer ioga, massagens. Ninguém explica quando.
Se por acaso você não é uma grande produtora de leite e resolve trabalhar com eficiência para reverter o quadro, essa vai ser a única coisa que poderá fazer. E quem pode se dar a esse luxo? Pouquíssimas mulheres. Além disso – considerando que seus níveis hormonais estejam bons e a extração do leite seja a adequada –, você será obrigada a se sentir feliz e satisfeita, porque o ânimo também influi na produção. É o que Monse me explica agora.
“Veja esta jovem, ela parece angustiada, preocupada, triste?”, e me mostra o quadro de uma mulher amamentando, pendurado na parede da sala.
“É um desenho”, digo.
“Amamentar deve ser uma coisa prazerosa.”
“Talvez não seja igual para todas as mulheres.”
Mulheres. Esses dias todos, além de me ordenhar, estive pensando em mulheres. Nas mulheres que vertem cataratas de leite pelos peitos e nas mulheres que não vertem. Se nesse imenso conjunto um provável cruzamento de fatores levasse uma mulher a não ter leite o bastante, nem tempo o bastante, nem dinheiro o bastante, penso que essa mulher estaria diante de uma circunstância trágica. De um ponto de vista alterado, mas verdadeiro, começo a enxergar algumas deficiências estruturais do sistema. O cérebro se desenvolve 80% nos três primeiros anos de vida. Para que o cérebro de uma criança se desenvolva bem é essencial que essa criança esteja fisicamente saudável, ou seja, bem alimentada. Ou seja, o cérebro de um bebê que não toma leite o bastante em seus primeiros meses não se desenvolverá bem. Ou seja, deficiências em um adulto poderiam ter sido evitadas, em alguns casos, se ele tivesse recebido a tempo umas tantas mamadeiras.
Vamos adiante com a hipótese: você não tem leite suficiente e, além disso, é pobre, mas trabalha para atenuar um pouco essa condição; portanto, também não tem o tempo requerido para praticar o dispendioso processo de relactação. Então, o que seu bebê toma? O Plano Médico Obrigatório (PMO) definido pelo Estado argentino com relação ao recém-nascido diz que “a fim de estimular o aleitamento materno não se cobrirão os leites maternizados ou de outro tipo, salvo expressa indicação médica, com avaliação da auditoria médica”. Falando sério, o que ele toma?
Uma amiga, que não pôde amamentar por um problema hormonal que vinha tratando havia muito tempo, contou que a auditoria médica chegou quando sua filhinha já tinha completado 1 ano. Se minha amiga não tivesse dinheiro para comprar leite suplementar, provavelmente o desenvolvimento cerebral da criança teria sido comprometido. Nunca lhe reembolsaram o dinheiro que gastou para alimentá-la, mas ela também não insistiu. “Por quê?”, pergunto, e ela me responde que nesta altura dos acontecimentos eu já deveria saber: “E tempo para isso?”
Às vezes, a diferença entre um bebê subalimentado e um bebê saudável é o salário de seus pais. Outras vezes, porém, essa diferença é dada pela ideologia. Fico pasma de ver até que ponto algumas puericultoras – e os organismos que as reúnem, as políticas que as respaldam – levam as mães a forçar os limites. Ontem mesmo Monse me falou do caso de uma mulher que adotou um bebê e conseguiu amamentá-lo. Já ouvi essa história mil vezes, porque ela deu a volta ao mundo: a mulher se chama África, mas mora na Europa, e durante cinco meses se submeteu a um rigoroso processo de indução – ordenhou-se até o leite sair –, assessorada por especialistas.
“Confie em seu corpo”, me diz Monse.
“Que significa isso?”, preciso que esclareça, esgotei minha capacidade de decifrar slogans.
“Significa isso mesmo”, diz ela.
Vicente se cansa de sugar e fecha os olhos.
Observo a saleta outonal em que as voluntárias da Fundalam me receberam esta semana. Descobri que por volta do meio-dia não aparece ninguém. Na hora pensei que fosse uma vantagem, mas agora gostaria de ver alguma mama amiga conectada ao tira-leite, de ouvir outra história de mamilos mordidos. Monse vai buscar saquinhos para que eu leve para casa – saquinhos plásticos. Seu avental tem babados que esvoaçam quando ela anda. Estou deprimida, como se tivesse passado horas olhando para marionetes. Tento me convencer de que algumas mudanças sociais terão sido possíveis a partir de posturas fundamentalistas, mas não consigo me lembrar de nenhuma. É a falta de sono: acaba com os neurônios.
“A natureza é sábia”, diz Monse, que volta com meus saquinhos e um conta-gotas, apesar dos pesares.
Ponho Vicente no bebê-conforto e me levanto.
“A natureza mata pessoas”, agradeço e me despeço.
Meu namorado levanta Vicente e o embala enquanto soa uma canção. Nunca é a mesma, ele escolhe a música em suposta cumplicidade com o filho. Hoje Vicente quer rock inglês dos anos 90. Tá certo. Hoje Vicente quer pop trash. Assim. Brincar é parte de seu trabalho. Faz isso entre as mamadas, ou enquanto eu me ordenho, ou pesquiso nos fóruns virtuais sobre aleitamento, ou escuto os conselhos de Telma.
Telma é uma nova personagem. É a puericultora de uma amiga e quis me dar uma ajuda – uma ajuda com seus justos honorários. Não vou mais à Fundalam. Telma é mais jovem que Monse e menos rigorosa. Gosto dela, mas não de seu entusiasmo permanente. Se tiro 40 mililitros, ela me aplaude. Se tiro 60, dá um pulo. Com 80, desmaia de emoção. Digo a ela que não precisa me cumprimentar toda vez que faço meu dever. Ela não me entende. Seu tom é o mesmo dos posts que descubro na internet, dos fóruns e até dos folhetos informativos. Pergunto-me quando foi que o ponto de exclamação passou a ser um sinal tão barato. Na verdade, acho que é perverso, é a hostilidade disfarçada.
Os fóruns são verdadeiros galpões de sabedoria esculhambada. Uma mulher pede conselhos para ter mais leite, diz que teve de recorrer à fórmula láctea, mas que não quer deixar de amamentar. Poderia ser eu. Ou minha amiga Malena. Ou Carolina, ou María Eva. Mas é uma que assina como “Angustiada”. As respostas a encorajam a abandonar a fórmula imediatamente. A ser valente, a não ceder. A mostrar para seu bebê que ela o ama de verdade. A ingerir muito líquido. A ignorar todos que disserem que seu leite não é suficiente, ou que não é bom. A fortalecer o vínculo, em vez de enfraquecê-lo. A procurar um grupo de apoio da Liga do Leite em sua cidade. A acreditar que querer é poder. O corpo é nobre e perdoa – dispara uma que assina “Quinze meses de amamentação natural”. Não desanime!
Uma tarde, converso com minha mãe pelo telefone. Ela veio para o parto, mas já voltou para a Colômbia. Não tem muita opinião sobre isso tudo. Calculo que ache natural que eu insista e me empenhe. É isso que as mães fazem. É o que ela pensa que eu penso que as mães fazem, imagino. O que ela pensa? Não pergunto. Ela, por sua vez, me pergunta quem é Telma, o que ela faz, exatamente. Eu lhe explico e, de passagem, explico novamente a mim mesma.
“É uma pessoa capacitada para acompanhar a mãe e o bebê durante a gravidez, o parto e os primeiros anos da criança…”
Penso: um misto de enfermeira, assistente terapêutica e mãe substituta. De repente, a perspectiva de me ver acompanhada por Telma durante anos – ou meses, ou dias – me apavora.
“Era assim antes.”
“Antes do quê?”
“No tempo das avós. Antes as mulheres nunca ficavam sozinhas com seus bebês, tinham mais ajuda.”
Aí está. Nos últimos tempos, é disso que se trata. Do aleitamento materno à nova fantasia gay de se casar de branco, adotar crianças e animais de estimação e formar uma família numa bela casa, parece que as novas gerações procuram furiosamente matar seus pais, suas batalhas e conquistas, para voltar a se parecer com seus avós.
“Minha mãe sempre quis estudar, ser independente, mas isso não era comum naquela época”, minha sogra olha para mim, mas fala para Telma. “Era preciso ficar em casa com os filhos. Então, quando eu tive os meus, foi ela a primeira a me dizer: ‘Vai trabalhar, não fique em casa, eu cuido das crianças.’”
Minha sogra é advogada, trabalhou a vida inteira e, como tantas outras mães de sua geração, deu leite em pó para seus filhos.
“O leite do meu peito não era suficiente. Eu chegava do escritório de noite e dava banho nas crianças”, como tantas outras mães de sua geração, contratou babás, “e depois dava uma mamadeira com Neston, bem cheinha, e elas dormiam até o dia seguinte.”
Telma franze o rosto, como se acabassem de lhe jogar ácido. Cruza os braços e olha para o ar, concentrada. À espera de moscas. Pensando no que dizer.
Segundo a OMS, no decorrer do século XX se realizou “o maior experimento em larga escala em uma espécie animal”: a forma de alimentação inicial dos seres humanos foi mudada e as crianças passaram a ser alimentadas com leite modificado de uma espécie diferente. A vaca: nosso grande inimigo.
Um dia pergunto para a pediatra por que tanta implicância com o leite em pó e ela me diz que não há nenhuma implicância: 90% dos bebês na Argentina o tomam. O problema, acrescenta, é que as vacas argentinas têm hormônios. E que vacas não têm? Dá de ombros: as da Holanda, quem sabe. E que talvez seja possível encomendar leite da Holanda. Ou quem sabe consegui-lo no Uruguai. Ou, se algum amigo viajar… Mas que depois, quando o bebê começar a comer, vamos ter o mesmo problema com o queijo, e o frango, então, melhor nem pensar. E – agora não mais pelos hormônios, mas por outro tipo de veneno – com o trigo, a soja e as verduras, e, em geral, tudo que sair da terra.
“Dormiam porque ficavam com o estômago pesado, não era sono”, diz Telma, finalmente, olhando para mim.
Sou uma espécie de canal pelo qual a conversa transita. Um desvio silencioso e complacente.
“Mas dormiam”, responde minha sogra.
A partir dos anos 80, aumentou a visibilidade de campanhas e políticas em prol do aleitamento materno, tendo em vista que cada vez mais mulheres optavam por não amamentar. Agora, como os cigarros, as embalagens de leite em pó deveriam trazer uma legenda universal, em letra maiúscula e negrito: AVISO IMPORTANTE: O LEITE MATERNO É O MELHOR ALIMENTO PARA O LACTANTE.
“A que custo?”, insiste Telma. “Esses leites acabam com a barriguinha deles.”
“Todas as crianças o tomam”, diz minha sogra.
“Pois é.”
“Os meus não se saíram mal.”
Hoje Vicente tem: a) 1 mês de idade; b) um casaco novo com orelhas de urso.
Hoje Telma está nervosa porque daqui a pouco vou ao pediatra, e ela não quer que a gente perca.
“Que a gente perca o quê?” – depois de passear pelos fóruns da internet, tendo a perder facilmente a paciência. Telma culpa os hormônios. Os meus.
Estamos na copa tomando chá de funcho. Ao fundo, na sala de estar, estão Vicente, seu pai e um disco da banda Miranda!
“A que horas é sua consulta?”, pergunta Telma, mas eu não respondo. Me perco na dança, estranha e feliz, dos meninos. Vicente emite sons que poderiam ser risadas. Ou arrulhos de passarinho. Tenho a sensação de que estou perdendo alguma coisa. Uma coisa mais importante do que amamentar, e que parece muito mais divertida.
“Calma”, Telma toca minha mão, “estamos ganhando.”
A balança do consultório diz que Vicente engordou estritamente o necessário. Na verdade, faltaram alguns gramas para o estrito. A pediatra me olha e balança a cabeça, sem aprovar totalmente.
“O.k.”, digo a ela, “vamos para o leite de fórmula.”
“O.k.”
Naquela tarde, Telma liga quatro vezes para o meu celular. Na quinta eu atendo.
“Eeee?”, ela chilreia. Sua garganta é um coro de senhoritas excitadas. “Ganhamos”, minto.
“Ótimo!”
Desde que tudo isso começou, meu namorado me diz: “Tome nota.” Ele também se chateia com o olhar de reprovação das pessoas que perguntam pela alimentação de Vicente e se decepcionam com minha resposta. Secretárias de médicos que falam de seus netos, leitõezinhos mamões; mães que esperam em consultórios e já leram todas as revistas; a senhora do armazém, que não teve filhos; as garotas do pilates, que não pensam em tê-los; minha amiga Bárbara, que tem três, com problemas de obesidade; o gay da barbearia, entre outros.
Houve um momento em que, claramente, o assunto tomou conta de nós. Aparecia de maneiras insólitas. Certa noite, voltávamos de carro para casa, Vicente e eu atrás, no escuro. Rodávamos por uma das ruas mais calientes da noite portenha. Meu namorado freou numa esquina para dar passagem a uma moça que, segundos depois, meteu a cabeça pela janela e sussurrou no ouvido dele, com uma voz intensamente masculina: “Leche.”
E ele: “Boa cena, tome nota.”
Ninguém poderia dizer que é bom não dar o peito para um bebê, ou que lhe dar exclusivamente o peito durante seis meses seja um erro. Está medicamente comprovado que o leite materno é o melhor alimento para um bebê, e que quem puder deve amamentar. Mas desconhecer que nem todas as mulheres conseguem isso é aprofundar a exclusão num terreno no qual não deveria haver nenhuma. Conheço pelo menos dez casos recentes de mulheres que não puderam dar exclusivamente o peito para seus bebês, ou que não puderam lhes dar nenhuma gota. Quando a exceção à regra é tão ampla, há alguma coisa errada com essa regra.
“Que pena!”, dizem. E olham para o bebê com ânimo redentor.
Quando meu namorado me dizia “Tome nota, é um grande tema”, eu pensava que era um grande tema só para nós, os aflitos, e que para todos os que estavam por fora seria uma banalidade. Continuo pensando assim. É por isso que estas notas vão dedicadas.
Imitando Virginie Despestes em sua autobiografia King Kong Theorie – “Escrevo a partir da feiura e para as feias, as velhas, as caminhoneiras, as frígidas, as mal-amadas…” –, escrevo a partir do puerpério para as puérperas; as novatas; as que duvidam por método; as que pensam ser frágeis, as que são mesmo; as que quiseram, mas não deu; as que sempre se perguntam “Por que ninguém me contou?”; as que insistem no “bem”, apesar de suas contradições e culpas; as que pensam demais; as que se acalmaram ao virarem mães; as que se tornaram obstinadas ao virarem mães; as que já eram obstinadas e calmas antes disso; as que odeiam os fóruns virtuais e não conseguem deixar de olhá-los.
Estas notas são dedicadas a todas elas. E ao cara que está ao lado delas.
É noite. Vicente já tomou banho, pôs o pijama, tomou sua dose de leite materno e, além disso, sua última mamadeira. Depois chorou um pouco, mas eu o acalmei com a chupeta. É estranho, às vezes ele chora quando acaba de mamar. Penso que ele quer mais, mas já mamou o suficiente, dá para ver que está saciado. Os bebês não têm gula, costuma me dizer a pediatra. E então? Sua secretária, que ouve as conversas, me diz: “Esse menino tem uma fome antiga.”
Eu me pergunto se fome tem memória. Ou idade.
Agora ele não chora, mas também não dorme. Olha demoradamente para as lâmpadas de casa, que são uns artefatos prateados, meio galácticos, e acho que ativam um chip nele que o deixa insone. Já tentei de tudo, até o soporífero Baby Mozart, e ele não dorme. Quando isso acontece, a única solução é dar uma volta de carro, então lá vamos nós. Rodamos até a beira do rio. Vê-se pouca gente nas ruas e muitas luzes. Não faz frio, embora o inverno esteja chegando.
Meu namorado boceja. Eu também. O sono, como demora.
Uma vez li que um dos transes mais traumáticos que acomete o ser humano é a passagem da vigília para o sono. É por isso que, na infância, esse momento é repleto de rituais. Canções, histórias, ambientes à meia-luz, a voz da mamãe e do papai. A passagem de um estado para o outro não é imediata, leva um tempo, é como se caíssemos lentamente em outra dimensão – penso como é acertada a expressão em inglês fall asleep. E para que essa queda seja o menos brusca possível, especialistas do sono recomendam apoiar-se nos chamados “objetos de transição”.
Vicente me olha. Tem olhos enormes, eu já disse. Quando os fixa em meu rosto, parece um pequeno especialista em cinésica. Ponho a cabeça no bebê-conforto.
“Você me ama?”
A pediatra disse para eu não me preocupar, que o vínculo entre mãe e filho não é determinado pela mama. Eu sei, respondi, é óbvio. Mas não é verdade. Não sei de nada. Ela também disse que o pouco que eu lhe dou de leite materno é bom, pois assim aumentam suas defesas.
Nesse dia me lembrei de um verso de uma canção esquecida. Não sei de quem é, mas costumo repetir para o Vicente quando ele está quase dormindo.
“Dormiu?”, pergunta meu namorado, seus olhos exaustos no espelho retrovisor.
“Quase.”
Quando chegamos ao rio, os olhos de Vicente começam a se fechar, mas ele não cede. Agarra meu polegar e o aperta.
Eu me aproximo novamente do bebê-conforto.
“Sabe quem eu sou?”, digo. “Sou teu objeto de transição.”
E depois o verso: “O pouco que eu tenho é teu, minha vida/e se eu tivesse muito, também te daria.” E outra vez, até que ele dorme.
Tome nota, você dizia. Aqui estão.
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