Leve o seu Kai-Inu ao Furuhon Ichi
Com a Nikkeypedia, agora todo brasileiro pode
Kelly Cristina | Edição 47, Agosto 2010
Não é todo mundo que entra em restaurante japonês com ar blasé, dá uma olhada rápida nas iguarias do cardápio, pede um uramaki e sabe exatamente o que pediu. Para quem não consegue decorar se é o sushi ou o sashimi que leva arroz, a Nikkeypedia – primeira enciclopédia on-line em português sobre cultura nipônica – será um socorro valioso.
Concebido nos moldes da Wikipédia por Akio Ogawa, paulistano nissei (o descendente de primeira geração) nascido há 67 anos, o site conta com mais de 1 400 verbetes que saciam diferentes necessidades de informação. Estão disponíveis, por exemplo, a história do Kasato Maru, o navio que trouxe os primeiros 781 isseis (os emigrados) para o Brasil, em 1908, e – como não?– um autorretrato da filha mais famosa de Penápolis, a legítima e multitorneada caipira líbano-sansei (a segunda geração), atriz, repórter do Pânico na TV, capa da Playboy e celebridade tout court Sabrina Sato.
Na juventude, Akio Ogawa demonstrava certo desapego à herança familiar. Embora falasse japonês, a montanha de ideogramas da língua de seus pais nada lhe dizia. Na sua turma da faculdade havia apenas três descendentes de japoneses – um dos quais não sabia o que era sashimi –, e ele não viu problema em se casar com uma brasileira sem um fiapo de ascendência nipônica. Nada indicava, pois, que justamente ele estaria à frente de uma ideia como a Nikkeypedia.
Em 1992, contudo, Ogawa resolveu melhorar seus conhecimentos de língua japonesa. Arranjou até uma professora “importada”. Foi ali, parece, que seu futuro começou a se amarrar mais forte com o passado – tanto que, cinco anos depois, ele se casaria em segundas núpcias com Tamiko Hosokawa, sua excelente professora de japonês. Ogawa, que cursou economia na USP e se aposentou como corretor de ações, virou figurinha fácil nos matsuris, as festas tradicionais da comunidade, assumiu cargos de importância em associações ligadas à cultura nipônica e tratou de cuidar cada vez melhor de suas raízes.
A ideia de divulgar o conjunto de referências comuns à colônia de 1,5 milhão de nikkeis – termo genérico para designar os japoneses e seus descendentes espalhados pelo mundo – surgiu em 2003, quando Ogawa ocupava o posto de diretor de comunicação da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social, conhecida como Bunkyo, equivalente japonês para “associação cultural”.
A Nikkeypedia entrou no ar em novembro de 2007. O responsável pela implementação tecnológica é Nelson Nakamura, que se ofereceu para fazer o trabalho de graça, usando uma plataforma da famosa Wikipédia. Responsável pelo conteúdo, Ogawa não se envolve muito com essa parte, mas, desde que criou seu primeiro verbete para o site (undokai, uma tradicional gincana esportiva), ele mesmo se tornou um ativo “enciclopedista” – embora até hoje não tenha computador próprio.
Metade dos verbetes da Nikkeypedia focaliza personalidades, imigrantes e tópicos culturais propriamente ditos, da liturgia da cerimônia do chá ao nome dos imperadores, de lendas milenares à descrição completa dos personagens de Jiraiya, o Incrível Ninja, um seriado de TV muito apreciado. O ecletismo dá o tom. Na rubrica Eventos da Cultura Japonesa, descobrem-se as particularidades do Akimatsuri, festival típico de outono, e da Festa das Flores e do Morango de Atibaia. Em Personalidades, Agostinho Shibata – o primeiro brigadeiro-de-infantaria da Aeronáutica brasileira, ombreia com o cineasta Akira Kurosawa, e Cyntia Takahashi, jogadora de softbol & modelo – merece tanta consideração quanto a veneranda artista plástica Tomie Ohtake ou o nobre Shizuo Hosoe, fundador do grupo de escoteiros Caramuru.
A outra metade dos verbetes se ocupa da divulgação de eventos e de endereços de órgãos oficiais e instituições que possam interessar à comunidade. “Mas percebi que isso não funciona muito bem numa enciclopédia on-line”, admite Ogawa.
De todo modo, hoje qualquer brasileiro já pode saber que um furuhon ichi é um bazar de livros, que yukata é um tipo de quimono de verão e que shooga e gengibre são a mesma coisa. Caso tenha veleidades literárias, o interessado pode percorrer o alfabeto e formular frases para impressionar os amigos: “Sonhei que tocava koto ao lado do meu kai–inu bem debaixo da Kanzakura”, ele dirá… “Ah, e ambos comíamos biscoitinhos de okara!” (Koto é um instrumento, kai-inu é uma raça de cachorro, Kanzakura é uma cerejeira sagrada e okara são aqueles restos de leite de soja que ficam no coador. Para quem quiser transformar o sonho em realidade, está disponível também a receita passo a passo dos biscoitinhos.)
A exemplo da Wikipédia, a Nikkeypedia resulta necessariamente de trabalho coletivo. Qualquer pessoa pode se cadastrar para se tornar um colaborador. Para quem vai escrever pela primeira vez, Ogawa apresenta apenas algumas instruções básicas, com ênfase no respeito ao “princípio de imparcialidade”. Se falar de crenças, por exemplo, “o artigo deve estar escrito de forma que seguidores da religião em questão, seguidores de outras religiões, ateus e agnósticos possam aceitá-lo”. No tópico Coisas para se ter em mente, ele dá uns toques de ordem psicológica, para ninguém perder a compostura: “Se alguém discordar do seu artigo, não significa que: 1) aquela pessoa o odeie; 2) que acredite que você seja estúpido; 3) que a pessoa seja estúpida; 4) que a pessoa seja má etc.”
Ao que parece, os fundamentos estão sendo seguidos, pois até agora houve poucos contratempos. De vez em quando aparecem os malcriados de sempre, que pulam de site em site só para bagunçar o texto ou incluir palavrões. Pelo menos nunca apareceu um palavrão em japonês – o plácido Akio Ogawa, embora empenhado em valorizar as raízes, não apreciaria.
Afora isso, um descendente pediu a remoção da página sobre o pai imigrante, julgando potencialmente excessivo esse grau de exposição familiar. Pois espaventou-se à toa. Sua discrição atávica dormiria tranquila se reparasse que as estatísticas do site não são retumbantes. Não adianta nem ser verbete de ponta. Até meados de junho, por exemplo, não passavam de 1 162 os visitantes arrebanhados por Sabrina-Que-Espetáculo-Sato. Na Nikkeypedia, infelizmente – ao menos por enquanto –, nada ameaça bombar.