ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Livros no aquário
Os protestos contra a mudança de uma biblioteca
Marcos Amorozo | Edição 183, Dezembro 2021
Já se tornou uma rotina na vida do estudante Victor Antonioli Velozo. Todo mês, ele vai à Biblioteca Municipal Paul Harris, em São Caetano do Sul, para devolver o livro que acabou de ler e apanhar o novo que irá acompanhá-lo nas próximas quatro semanas. O hábito começou em 2018, quando Velozo precisou fazer um trabalho escolar. Como não tinha dinheiro para comprar o material de pesquisa nem ambiente ideal para estudar em casa, resolveu ir à biblioteca. “Depois desse dia, acabei pegando mais gosto pelos livros, pelo lugar e pelas pessoas que frequentam a Paul Harris, que me dá toda a estrutura para estudar”, conta o estudante de 16 anos, aluno do segundo ano do ensino médio.
Só que, em breve, a biblioteca deve ser transferida de local – e a mudança está causando apreensão nos funcionários e revolta nos frequentadores. A Prefeitura de São Caetano do Sul anunciou que os mais de 30 mil livros serão levados da atual sede, que tem dois andares, para um espaço de 200 m2 no edifício da Secretaria de Educação, conhecido na cidade como “aquário”, porque suas paredes são revestidas com vidro, do piso ao teto.
Para funcionários da Paul Harris, a mudança coloca em risco o acervo, em razão do tamanho do novo espaço. Pelo mesmo motivo, os funcionários temem que haja uma forte queda na quantidade de visitantes, que antes da pandemia chegava a ser de mais de 10 mil pessoas por mês.
A Prefeitura de São Caetano do Sul, que é comandada pelo prefeito interino Tite Campanella (Cidadania), acredita que a transferência vai chamar mais atenção para o acervo. “A mudança para o novo espaço visa dar mais visibilidade e facilidade de acesso, já que as prateleiras de livros físicos ficarão visíveis para quem passa pela rua, e outros espaços do prédio da Secretaria de Educação também serão utilizados pelos usuários da Biblioteca Municipal”, afirmou a prefeitura em nota enviada à piauí.
Para custear a mudança, será usada uma verba de 120 mil reais destinada pelo governo federal à digitalização de bibliotecas públicas no país. A prefeitura não disse qual destino dará ao prédio atualmente ocupado pela Paul Harris.
“Querem transferir a nossa querida Biblioteca para um espaço muito pequeno e não apropriado. Nossa Biblioteca tem mais de 60 anos e muito contribuiu para a formação de muitos de nós”, diz um abaixo-assinado feito pelo grupo Amigos da Biblioteca Paul Harris. “Juntos iremos deter essa agressão!” Mais de 1,7 mil pessoas já aderiram ao abaixo-assinado. Em 2 de setembro, cerca de quarenta pessoas fizeram um protesto em frente à Paul Harris.
Outros frequentadores da biblioteca vêm tentando barrar na Justiça a mudança e registraram uma denúncia no Ministério Público do Estado de São Paulo. “Assim que anunciaram que haveria a mudança, a gente se articulou para fazer alguma coisa e cobrar uma resposta da prefeitura”, diz o tradutor e escritor José Ignácio Coelho Mendes Neto. “Do jeito que tudo foi apresentado até agora, a gente sai perdendo muito. A cidade perde muito.”
O prédio da biblioteca foi inaugurado em 2002 no Bairro Santa Paula, perto do Centro da cidade. Um portal de tijolinhos vermelhos à sombra de duas árvores identifica a entrada de pedestres. É um conjunto bastante bem equipado. No térreo, fica a coleção de livros, a hemeroteca – com cerca de 40 mil exemplares de jornais e revistas – e um auditório com 55 lugares. No mezanino, há cinco cabines para assistir aos filmes da coleção de 350 documentários, onze computadores conectados à internet, mesas para estudos e salas para leitura. Na Paul Harris costumam ocorrer saraus, lançamentos de livros, reuniões, palestras e eventos artísticos, muitos deles promovidos pela Academia Popular de Letras de São Caetano do Sul e da Academia de Letras da Grande São Paulo, instaladas no mesmo prédio.
“A biblioteca é um santuário, um templo do saber, não deveria ser tratada assim, com uma mudança às pressas e sem planejamento”, diz uma funcionária da instituição. “Já deram ordens de ir encaixotando as coisas, mas a gente nem sabe direito os espaços que vai ter nem onde vamos colocar tudo.” Ela pediu para não ser identificada porque teme ser transferida do serviço da biblioteca. Dos 27 empregados da instituição, 10 já foram deslocados recentemente para outras áreas da Secretaria de Educação, uma vez que são concursados e não podem ser demitidos. Ninguém sabe ainda quantos funcionários continuarão a trabalhar na nova sede.
O advogado Paul Percy Harris (1868-1947) foi o fundador do Rotary Club Internacional, entidade filantrópica presente no mundo todo. A biblioteca ganhou o nome dele porque o Rotary Club de São Caetano do Sul doou os primeiros quinhentos livros do acervo. Desde a inauguração em 1954, ela migrou para diferentes espaços públicos na cidade, como a Câmara Municipal e o piso superior do Terminal Rodoviário Nicolau Delic – até ser finalmente transferida para o prédio atual, construído para abrigá-la.
“A prefeitura disse que esta seria a sede fixa da biblioteca. E agora a gente vê o desmonte da Paul Harris”, afirma o sonoplasta e escritor Nilton Jorge Vetorazzi, membro da Academia Popular de Letras. “Isso decepciona demais a gente.”
O estudante Victor Antonioli Velozo compartilha do desapontamento e da indignação. “Não cabe nem metade dos livros no cubículo que desejam colocar a Paul Harris”, diz. “Fechar um espaço incrível como esse é uma perda para toda sociedade, que nem sequer foi consultada.”