Pela primeira vez em sessenta anos, a Azzurra não estará na Copa, lamenta o diário Il Tempo IMAGEM: REPRODUÇÃO
Ma che umiliazione!
Com a Itália fora da Copa, restam aos italianos as fake news, os memes e as suspeitas de traição
Maurício Cannone | Edição 135, Dezembro 2017
Em 1921, o dramaturgo Luigi Pirandello escreveu a fabulosa peça Seis Personagens à Procura de um Autor. Agora, quase um século depois, me parece haver 60 milhões de personagens atônitos, todos habitantes da Itália, à procura de uma explicação: por que, afinal, a Squadra Azzurra não participará da próxima Copa? Em meus 57 anos, nunca vi a seleção tetracampeã mundial fora do torneio – e jamais pensei que veria.
A catástrofe tem dois precedentes, ainda que só um deles dentro de campo. Em 1930, quando ocorreu a primeira Copa do Mundo, diversas equipes da Europa, inclusive a italiana, recusaram o convite para disputá-la (não houve eliminatórias na ocasião). Alegaram como principal motivo o alto custo da viagem marítima entre o Velho Continente e o Uruguai, sede da competição. Os donos da casa, porém, aventaram outra hipótese para a ausência da Azzurra. Os cartolas de ambos os países viviam em pé de guerra porque os europeus costumavam providenciar o status de oriundi – oriundos, descendentes – a atletas uruguaios, com o intuito de que jogassem por clubes ou mesmo pela seleção da Itália. O êxodo irritava os dirigentes sul-americanos, que não escondiam a contrariedade. Na tentativa de esvaziar a festa dos reclamões, os italianos teriam decidido boicotá-la.
Já em junho de 1958 a Azzurra não viajou para a Copa da Suécia por razões puramente desportivas. Sucumbiu à Irlanda do Norte no dia 15 de janeiro, durante as Eliminatórias, que terminaram no ano do Mundial e não em 1957. Foram dois gols irlandeses contra um dos adversários, marcado pelo atacante Dino da Costa – carioca que despontou no Botafogo e, depois, se naturalizou italiano para atuar na Roma. Schiaffino e Ghiggia, os carrascos uruguaios que destruíram o Brasil na trágica decisão da Copa de 1950, também integravam aquela seleção da Itália como oriundi.
Em plena Copacabana da época, meu saudoso pai – o napolitano Claudio Cannone, louro de olhos azuis e pouco cabelo – gostava de jogar peladas na praia com João Saldanha, Luiz Mendes e outros nomes ilustres da crônica esportiva. Quando errava algum passe, dificilmente escapava das gozações. “É por isso que a Itália não foi à Copa”, debochava o jornalista Sandro Moreyra. Em dezembro de 1951, aos 18 anos, meu pai emigrou para o Rio de Janeiro, onde se casou com uma brasileira e gerou dois filhos. Até morrer, já septuagenário, acompanhou religiosamente o futebol. Torcia pelo Napoli e pelo Vasco.
Eu também não consegui me esquivar de zombarias. Em 1990, cobri minha primeira Copa in loco, justamente na Itália. Por ter dupla nacionalidade e falar o idioma de meus antepassados, escrevi sobre a equipe anfitriã para o diário carioca Jornal dos Sports. A Seleção do Brasil deixou a disputa logo nas oitavas de final, executada pela Argentina de Maradona e Caniggia. Fui, então, zoado por repórteres italianos. Em Nápoles, onde assisti à Azzurra perder a semifinal nos pênaltis para (de novo!) a Argentina, tive de aguentar o deboche de coleguinhas brasileiros.
Polêmicas em torno dos oriundi ainda agitam a “bota”. Na repescagem contra a Suécia, última chance italiana de chegar à Copa de 2018, o técnico Giampiero Ventura convocou uma dupla de catarinenses com passaporte europeu: Jorginho, meio-campo do Napoli, e Éder, atacante do Internazionale. Eram os únicos da lista que não nasceram na Itália. “Muitos estrangeiros. Na Azzurra, devem jogar só italianos”, detonou Matteo Salvini, líder da Lega Nord, partido de direita que combate os imigrantes. O político fez a declaração durante uma conversa com jornalistas, horas antes do jogo de volta contra os suecos. A partida aconteceu em Milão e terminou empatada: 0 a 0. Como a Suécia ganhara o primeiro jogo da repescagem em Solna por 1 a 0, os italianos acabaram sem a vaga no Mundial da Rússia.
Tutti a casa [Todos para casa], dizia um dos inúmeros memes que circularam pela internet logo após o vexame. A frase coincide com o título de um célebre filme lançado em 1960 e sugerido como alternativa àqueles que não quiserem ver a abertura da Copa. “A nossa ruína numa foto”, esbravejava outro meme, que retratava Ventura e Carlo Tavecchio, presidente da Federação Italiana de Futebol. Os dois caíram alguns dias depois da eliminação. “Ibiza, vocês estão prontos?”, indagava mais um gozador pela web, insinuando que seus compatriotas deveriam passar o verão de 2018 no balneário da Espanha em vez de prestigiar o Mundial.
A coisa ficou tão feia que pairam até suspeitas de traição na Azzurra. Segundo o canal de tevê Sky Sports, Ventura interpelou duramente sua comissão técnica antes de uma das partidas contra a Suécia. Queria saber quem havia sido o talpa [espião] que possibilitara à mídia antecipar o esquema de jogo italiano.
Especializado em economia, o jornal Il Sole 24 Ore calcula que a federação de futebol amargará um prejuízo de 100 milhões de euros por causa da eliminação. Deixará de lucrar tanto com a venda de camisetas quanto com prêmios da Fifa, direitos de transmissão dos jogos e negociação de espaços publicitários. O diário romano La Repubblica estima um rombo ainda maior: 150 milhões de euros.
Recentemente, uma notícia absurda se espalhou pelo YouTube num vídeo de quase três minutos. Enquanto uma foto congelada da Azzurra permanece na tela, uma locutora diz que o Senegal, um dos países africanos classificados para a Copa da Rússia, está fora do torneio por “falta de jogadores selecionáveis”, seja lá o que isso signifique. Em consequência, a Itália deverá substituí-lo. No fim do blá-blá-blá, a própria narradora admite se tratar de fake news e completa: “Não sabemos quem são os autores dessas frases, mas os consideramos geniais. Merecem nossos elogios.”
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