Muitos no governo alemão julgaram que, uma vez instalado na Casa Branca, Trump moderaria o tom. Merkel nunca fez parte desse grupo. A chanceler sabe que, se reeleito, ele terá todas as condições para destroçar os pilares da ordem mundial CRÉDITO: JESCO DENZEL_GETTY IMAGES_2018
Merkel e as trevas
Nenhum outro chanceler alemão em final de mandato teve uma visão tão pessimista da situação mundial
René Pfister | Edição 154, Julho 2019
Tradução de Sergio Tellaroli
Por alguns segundos, os olhos dela brilham de felicidade. Ela desfruta o momento – por que ocultar a alegria? Numa noite de janeiro, Angela Merkel está sentada numa construção de vidro solenemente iluminada junto ao Portão de Brandemburgo. Diante dela está Christiane Amanpour, superestrela da CNN.
“O que dizer de uma mulher chamada Angela Merkel?”, a jornalista pergunta à plateia.
Que é a primeira mulher a ocupar o posto de chanceler?
A primeira alemã-oriental?[1]
Merkel, prossegue ela, seria muito mais que isso – uma cientista que ainda acredita no valor dos fatos neste mundo da pós-verdade e uma mulher que luta contra o nacionalismo e as mudanças climáticas. Amanpour descreve como a chanceler teria estabelecido novos padrões no trato com os desesperados deste mundo.
Há certo exagero nas tintas, algo entre uma cerimônia do Oscar e um seminário sobre política, mas Merkel mantém um sorriso nos lábios; somente quando a câmera dá um zoom em seu rosto é que ela se vale da expressão neutra de uma primeira-ministra. Ademais, tem uma reputação a defender: a de política mais modesta do Ocidente.
Mais tarde, tendo às mãos o Prêmio Fulbright para o Entendimento Internacional[2] e aplaudida de pé pelo público, Merkel dirige-se ao microfone para dizer o que costuma repetir com frequência nos dias que correm: que o mundo vai mal, que as lições extraídas da Segunda Guerra Mundial estão se perdendo e que a ordem internacional, como nós a conhecemos, vem se desestabilizando cada vez mais.
Ela não cita Donald Trump nominalmente, mas todos sabem a quem se refere ao dizer: “Temos visto o pensamento voltado para as esferas nacionais de influência se ampliar e, com isso, os princípios do direito internacional e dos direitos humanos serem negligenciados.”
A chanceler alemã em luta contra as forças da escuridão – essa é a mensagem do programa, naquela noite. E, como há grande concordância entre o público acerca da gravidade da situação mundial e da sorte que é contar com Merkel para ao menos tentar deter os Cavaleiros do Apocalipse, a chanceler se desvia um pouco de sua rigorosa agenda de compromissos e promete ficar mais uns quinze minutinhos na recepção que terá lugar a seguir.
Logo uma multidão se forma em torno da mulher na qual se depositam esperanças tão sobre-humanas. As pessoas se espremem, tiram fotos, e até mesmo Amanpour quer uma selfie com ela, foto que será compartilhada com os cerca de 3 milhões de seguidores da jornalista no Twitter. Mais tarde, Amanpour dá uma entrevista para um canal alemão de notícias, a N-TV. Quando a entrevistadora comenta que muitos eleitores alemães têm críticas à chanceler, Amanpour rebate: “Não fale mal de Angela Merkel. Ela é uma das poucas que restam. Considere-se feliz por ela estar aí.”
Angela Merkel governa a Alemanha há treze anos e meio. Ao término do atual mandato, vai se igualar a Helmut Kohl, que, ao final de seu governo, era chamado de “chanceler eterno”.[3] Da obra dele, permaneceriam a reunificação da Alemanha e o euro – o que já estava claro quando Kohl, cercado de um pequeno grupo de seguidores fiéis, reconheceu a derrota nas eleições parlamentares em setembro de 1998, na sede da União Democrata-Cristã (CDU), em Bonn.
No caso de Merkel, é mais complicado. Seu legado é bem mais difícil de definir que o do antecessor. Há, afinal, um legado? Merkel sempre declarou não pensar em seu próprio lugar na história. Mas encontrou uma maneira bastante singular de trabalhar por sua glória futura. Rechaça como “grotesco” e “absurdo” quando um jornal diz ser ela a condutora do mundo livre. E, no entanto, o tema da última fase de sua carreira política é a defesa da ordem mundial liberal – mais grandioso, impossível. Trata-se de um paradoxo do qual ela é quem mais se beneficia.
Como todo chanceler longevo, Merkel busca escapar da pequenez melancólica da política alemã, no que em nada difere de Konrad Adenauer[4] ou Kohl. Mas o que a distingue de seus predecessores é um profundo pessimismo, a preocupação com o mundo que vê resvalando para o abismo. Em seu período de governo, a Turquia se transformou de uma democracia promissora num regime autocrático; o príncipe herdeiro saudita se revelou não um jovem reformista, e sim um déspota cruel; Vladimir Putin segue entretendo suas fantasias megalomaníacas; e a tudo isso acrescenta-se Donald Trump, cujo projeto mais recente é retomar o já terrivelmente malsucedido experimento da troca de regime em outros países, desta vez no Irã. O pavio está aceso, ou assim entende Merkel.
Em sua última fase no governo, ela passou por uma mudança só perceptível a um olhar mais atento. Em aparência, segue falando com a calma e a sobriedade de sempre; apenas de vez em quando, prestando-se muita atenção, tem-se uma ideia de sua sombria visão de mundo. Longe do público, porém, Merkel já há tempos não faz segredo do tamanho de sua preocupação. As comparações históricas que tece não poderiam ser mais apocalípticas.
Quanto mais tempo ela passa no poder, mais se expandem as linhas desse seu pensamento. Em 17 de abril do ano passado, os representantes de CDU e CSU[5] encontram-se no Parlamento. Estão ali para conversar fundamentalmente sobre a União Europeia e seu futuro. Merkel, porém, dá outra direção ao encontro, bem diferente e muito própria: faz uma digressão sobre o início da Idade Moderna. Segundo anotações de participantes, ela se põe a falar das sangrentas guerras religiosas que se seguem à Reforma Protestante e só terminam em 1555, com a Paz de Augsburgo. Naquele momento, diz Merkel, as pessoas acreditavam ter deixado as contendas e a violência para trás.
“Então, a geração que tinha vivido a miséria anterior à paz religiosa morreu”, prossegue ela. “A velha geração se foi e chegou uma nova, que dizia não querer firmar tantos compromissos, difíceis demais para ela.” O que vem a seguir é a catástrofe da Guerra dos Trinta Anos, que começa em 1618 e deflagra um inferno que aniquila cerca de um terço da população do território que é hoje a Alemanha, deixando em ruínas cidades como Magdeburgo.
“Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, já se vão mais de setenta anos”, Merkel continua. À época, grandes esforços foram feitos para que semelhante carnificina não se repetisse. Fundou-se a Organização das Nações Unidas (ONU), estabeleceu-se o Conselho de Segurança e a comunidade das nações se uniu para produzir a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas, assim como, iludido, o homem do começo do século XVII acreditava em segurança, a humanidade hoje torna a alimentar ilusões sobre a estabilidade da ordem mundial – e essa era a mensagem de Merkel. O verniz da civilização é ralo.
Em 26 de abril de 2018, Angela Merkel partiu para Washington em sua segunda visita a Donald Trump, no Salão Oval. A viagem se deu inteiramente sob o signo das iminentes tarifas punitivas a serem impostas aos carros alemães. O que preocupava Merkel, porém, é que Trump se retirasse de acordos cuja concretização demandou anos, décadas de árduas negociações: o acordo nuclear com o Irã e o Acordo de Paris sobre o clima. Depois do encontro com o presidente americano, ela voltou a citar a frágil Paz de Augsburgo: “Se aprendemos ou não com a história, isso é o que as próximas décadas vão mostrar.”
Duas semanas mais tarde, a chanceler, pela primeira vez, falou publicamente sobre sua sombria analogia histórica, e o fez no Katholikentag, um festival católico, em Münster. Segundo ela, a Paz de Augsburgo teria sido negociada por pessoas cansadas da violência. No espaço de uma vida humana, porém, novos atores haviam chegado ao poder, homens que, segundo Merkel, “pensaram: ‘Aqui, podemos fazer uma exigenciazinha a mais; ali, ser um pouco mais duros.’ E pronto – logo a ordem toda foi para o lixo, e a Guerra dos Trinta Anos eclodiu”.
Em 13 de julho de 2018, Merkel recebeu a visita do cientista político Herfried Münkler na chancelaria. Não foi fácil arranjar tempo para tanto. A agenda da chanceler tem poucas lacunas, e Münkler – que é ligado à Universidade Humboldt de Berlim – era à época professor visitante em Mainz, o que complicava ainda mais as coisas. Mas ela insistiu no encontro, o que muito lisonjeou o professor, até que, por fim, naquela tarde de verão, sentaram-se os dois no gabinete dela para lançar um olhar para o passado, para a época da primeira grande catástrofe europeia.
No ano anterior, Münkler havia publicado um livro de mais de 900 páginas sobre a Guerra dos Trinta Anos. Ele contou a Merkel sobre o clima de histeria e provocação que tornou cada vez mais difícil o convívio de católicos e protestantes e como, em 1607, os jesuítas incitaram os bravos católicos de Donauwörth a carregar suas bandeiras com orgulho pela cidade, ao que uma turba raivosa de protestantes respondeu atacando o cortejo e arremessando as relíquias no meio da rua.
Com alguma boa vontade, prosseguiu ele, teria sido possível desconsiderar a “defenestração” de dois representantes imperiais na Praga de 23 de maio de 1618, tomando-a como um ato irrefletido de protestantes exaltados – mesmo porque os cavalheiros em questão nem sequer tiveram ferimentos graves.[6] Mas ninguém estava interessado num apaziguamento, e assim teve origem uma conflagração que tomaria conta de todo o continente.
Sim, porque, na verdade – explicou o cientista político – não se tratava apenas de crenças religiosas. O que impelia as partes conflitantes era uma mistura de furor religioso, ambições hegemônicas e vontade de contestar a terra do vizinho. E assim, por duas horas, Münkler conversou com a chanceler, muitas vezes traçando paralelos com o presente: a defenestração de Praga abriu caminho ao desagrado dos protestantes, que se sentiam cada vez mais perseguidos, da mesma forma como a Primavera Árabe descarregou sua fúria nos detentores do poder em Túnis e Damasco. No decorrer da Guerra dos Trinta Anos, logo surgiram as pretensões territoriais, tanto quanto hoje se questionam as fronteiras de que se valeram o diplomata francês François Georges-Picot e o político britânico Mark Sykes para dividir o Oriente Médio em 1916.[7]
No século XVII, os Habsburgo, em Viena e Madri, os Bourbon, em Paris, e o rei sueco Gustav Adolf lutaram pela supremacia na Europa. Hoje, a Síria é o campo de batalha de uma guerra travada, na realidade, entre Estados Unidos, Irã, Arábia Saudita, Rússia e Turquia.
O medo é uma arma poderosa na política. Pode desencadear guerras e deflagrar revoluções; pode varrer políticos de seus postos ou mantê-los neles. Seria injusto acusar Merkel de promover uma atmosfera sombria a fim de permanecer no poder. Mas ela já está nesse negócio há tempo suficiente para saber que a inquietação geral e a expectativa sombria a beneficiam. Os alemães não querem mudança nenhuma e, tudo somado, tiveram treze bons anos com Merkel. Não há hoje o fastio que imperava ao final da era Kohl. Dois terços dos eleitores querem que a chanceler governe até a nova eleição, em 2021.
Quando, em fevereiro deste ano, Merkel falou na Conferência de Segurança de Munique, todo o salão se levantou para aplaudi-la. Para seus padrões habituais, ela fez um discurso apaixonado. Foi de Alexander von Humboldt – que, nas palavras dela, tentou “compreender o mundo como um todo” – a Paul Crutzen, o Prêmio Nobel de Química que ofereceu a definição para a presente era, o Antropoceno: uma era em que o ser humano deixa sua marca irreparável no planeta graças aos testes com bombas atômicas, ao microplástico e à emissão de gases prejudiciais ao clima.
Trata-se de um discurso em que fala a Merkel dos últimos tempos, mesclando preocupada advertência com sobriedade científica. Mas causou um efeito ainda mais forte em decorrência do fato de, depois dela, ter falado ao microfone o vice-presidente americano, Mike Pence, que em seu discurso dirigiu-se aos europeus como se fossem lacaios e relatou com alegria que os Estados Unidos, há anos, queimam sobretudo petróleo e gás que eles mesmos produzem. O contraste com Merkel não poderia ter sido maior. Por causa disso, o aplauso à chanceler refletiu certa postura desafiadora, mas também alguma saudade antecipada, o medo do que ocorrerá quando ela, em breve, deixar o palco.
É razoável supor que não haja hoje outra pessoa no mundo que tenha uma compreensão tão profunda da política global como Merkel. Ela testemunhou a chegada ou a partida de três presidentes americanos e quatro franceses, discursou em três Assembleias Gerais da ONU, esteve em treze reuniões do G-7 ou do G-8 e em mais de setenta reuniões de cúpula da União Europeia. O único político de peso semelhante há tanto tempo no poder é Vladimir Putin. Mas Putin é tão ardiloso que ninguém confia nele.
Há muitas razões para que Merkel olhe o mundo com preocupação. Putin, por exemplo, que busca compensar seu insucesso econômico com uma política brutal, é uma delas; outra é o Partido Comunista Chinês, a oferecer provas de que capitalismo e ditadura se coadunam muitíssimo bem; e, no meio disso tudo, uma União Europeia enfraquecida pelo caos em torno do Brexit e por brigas internas.
Mas a principal razão chama-se Donald Trump. Há muitos indícios de que ele tenha sido o motivo central para que Merkel se candidatasse a um quarto mandato. Ela refletiu muito durante o verão e o outono europeus de 2016. Era quase penoso ver com que frieza a chanceler ponderava os prós e os contras de uma nova candidatura, conta alguém com quem Merkel conversou à época. Segundo essa mesma pessoa, ela via como seu governo já se desgastara e tinha absolutamente claro para si o quanto polarizara o país depois da crise dos refugiados.[8]
Do ponto de vista da chanceler, tudo isso depunha contra uma nova candidatura. Além do mais, Merkel não considerava muito provável uma vitória de Trump. Com Hillary Clinton, a Casa Branca estaria em boas mãos. Todos esses fatores, dizem diversas pessoas que a conhecem bem, fizeram com que amadurecesse nela a ideia de não se candidatar novamente a chefe do governo. “Interiormente, ela estava disposta a parar”, afirma uma delas. Uma antiga companheira de partido relata: “Se Hillary tivesse vencido, Merkel não teria concorrido de novo.” Oficialmente, o governo responde que a chanceler já explicou em detalhes as razões da sua candidatura: “Não há nada a acrescentar.”
Em 8 de novembro de 2016, Trump ganhou as eleições nos Estados Unidos. Oito dias mais tarde, o presidente de partida, Barack Obama, visitou a chanceler em Berlim. Num jantar no Hotel Adlon, os dois conversaram por três horas. Ben Rhodes, o homem que redigia os discursos de Obama, anotou em suas memórias que nunca, em todo o seu período de governo, o então presidente americano tinha passado tanto tempo conversando com outro chefe de governo.
Pessoas que trabalharam com Obama contam que ele encorajou Merkel a concorrer de novo. Segundo elas, a chanceler disse ao presidente que provavelmente teria deixado seu posto se Hillary Clinton tivesse vencido. Na sala ao lado, estavam os assessores de Merkel e de Obama, entre eles o porta-voz do governo alemão, Steffen Seibert, e o assessor de Merkel para política externa, Christoph Heusgen. Obama trouxera sua assessora para assuntos de segurança, Susan Rice, e Ben Rhodes, que à mesa do jantar, fez um brinde a Merkel: “À condutora do mundo livre” – como ele contou em suas memórias. Seibert não se lembra do episódio.
É bem possível que Obama tenha dado o empurrãozinho final na chanceler. Quatro dias após o jantar no Adlon, Merkel anunciou que iria se candidatar a um quarto mandato. Tempos difíceis e incertos se anunciavam, disse ela numa entrevista coletiva no quartel-general do partido em Berlim, tempos “em que as pessoas, conforme vários me disseram, não teriam muita clareza de compreensão, se eu não voltasse a empregar toda a minha experiência, e os dons e talentos que me foram dados para servir à Alemanha”.
Quando um jornalista da Reuters perguntou diretamente à chanceler se a eleição de Trump tinha sido decisiva para essa nova candidatura, ela não negou, mas desconversou: “Eu preciso de muito tempo, demoro a tomar minhas decisões. Mas, uma vez que as tomei, eu me aferro a elas.”
Como sempre faz com todos os problemas, Merkel também enfrenta o “problema Trump” com diligência e leituras. Leu uma entrevista de Trump à Playboy em 1990, na qual ele se queixava dos muitos carros alemães de luxo nos Estados Unidos e recomendava tarifas como antídoto. Ainda durante a campanha eleitoral americana, assistiu a episódios de O Aprendiz, o programa de tevê no qual Trump trabalhou durante onze anos. No show, jovens candidatos precisavam comprovar sua capacidade para o mundo dos negócios e quem não convencia era afastado por Trump com o bordão: You’re fired [Você está demitido]. Chamou a atenção da chanceler a inclinação de Trump a desconsiderar a opinião dos outros.
Merkel nunca esteve entre as pessoas que defendem a teoria de que o novo presidente pode ser acalmado com gestos de humildade ou lisonjas. Achou estranho que Shinzō Abe, o primeiro-ministro japonês, tenha visitado o presidente americano ainda não empossado em meados de novembro de 2016 – e na ostentatória Trump Tower, em Nova York. “Não vou me sentar numa poltrona dourada”, disse ela alguns dias mais tarde a um pequeno grupo de pessoas. Com uma pitada de Schadenfreude,[9] notou que não trazia nenhum benefício a Emmanuel Macron ter convidado Trump e esposa a um restaurante estrelado na Torre Eiffel. Também o presidente francês foi, mais tarde, brindado com tuítes maldosos de Trump. Merkel experimentou pessoalmente a imprevisibilidade do americano no trato com outros chefes de governo. Em cena aberta, ele ataca, observou a chanceler. “Depois, em particular, diz: ‘Ivanka adora você.’”
Merkel também sabe da falta de interesse de Trump por detalhes. Na primavera passada, em sua viagem a Washington, embalou esse conhecimento num belo eufemismo, afirmando que o presidente americano dispõe de um “saber altamente condensado”. A capacidade de atenção de Trump é tão reduzida que, antes de ir conversar com ele, Merkel pede que auxiliares providenciem exemplos breves e de fácil lembrança com os quais possa explicar a ele assuntos complicados, como a disputa entre Estados Unidos e União Europeia em torno de tarifas.
Muitos no governo alemão julgaram que, uma vez instalado no Salão Oval, Trump moderaria o tom. Merkel nunca fez parte desse grupo. Na opinião da chanceler, ele tinha sido eleito por se distanciar do establishment de Washington. “Desconsidera tudo que veio antes dele”, disse. Nesse sentido, é um presidente verdadeiramente a-histórico.
Merkel sabe que, se reeleito, ele terá todas as condições para destroçar os pilares da ordem mundial. Mais de uma vez, Trump deixou claro que considera a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) pouco mais que uma despesa para o seu país. A União Europeia, ele a caracteriza como “inimiga” e a vê como uma ameaça à prosperidade dos Estados Unidos. Muita gente na Alemanha considerou essas posições nada mais que máximas de um extravagante ex-animador de tevê. Merkel, não. Para ela, Trump vai implementar sua agenda. Ponto por ponto.
Vladimir Putin, em contraste com Trump, propiciou certo prazer a Merkel, pelo menos durante uns poucos anos. O presidente russo é completamente diferente dela – ex-oficial da KGB, apesar da idade avançada costuma cavalgar pela tundra sem camisa. Mas a chanceler vê na inteligência fria e na petulância do russo um incentivo, uma espécie de desafio esportivo.
Em junho de 2013, Merkel viajou a São Petersburgo para, juntamente com Putin, inaugurar uma exposição de arte com obras que os soldados soviéticos tomaram da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. De início, estava previsto que a chanceler alemã diria algumas palavras na inauguração. Merkel, no entanto, pretendia defender que as obras fossem devolvidas, razão pela qual Putin, pouco antes da partida da chanceler da Alemanha, mandou excluir da agenda o discurso dela. Merkel, então, se recusou a acompanhá-lo ao museu Hermitage: não quis permanecer calada em segundo plano.
A princípio, Putin teimou em fazer as coisas do jeito que desejava e, ao longo do dia, pareceu que a visita iria culminar num escândalo. Mas, no fim, ele cedeu. Na viagem de volta, Merkel, divertida, falou sobre seu dia. Para ela, Putin era um homem que se aproveitava de toda e qualquer fraqueza. “Ele testa você o dia todo. Se você não contra-ataca, fica cada vez menor”, disse, aproximando o indicador do polegar. Estava visivelmente aliviada por não ter encolhido diante dele.
Na história recente, chanceleres alemães se esforçaram para conquistar a confiança de suas contrapartes russas. Helmut Kohl esteve com Boris Yeltsin na sauna, e Gerhard Schröder, com Putin. Esse modo de agir não é do feitio de Merkel. O que a une a Putin é o idioma. Quando os dois falam ao telefone, em geral começam com algumas frases em alemão. O russo de Merkel é aceitável, mas o alemão de Putin é bem melhor. E, no entanto, em seus encontros e conversas telefônicas, nunca tocaram em assuntos particulares, segundo um diplomata de alto escalão. “Putin nem sequer contou a ela que suas filhas estudaram numa escola alemã de Moscou.”
Merkel nunca embarcou na ilusão de que Putin pretendia transformar seu país numa democracia. Mas tinha a esperança de que a admiração dele pela prosperidade e a capacidade de inovação do Ocidente faria com que permitisse uma abertura moderada. No governo alemão, diz-se que Putin acreditava ser capaz de dar um impulso na economia russa – como Lênin com sua Nova Política Econômica dos anos 20. Mas o plano deu errado e, além disso, o preço do barril de petróleo começou a cair no começo de 2014. Foi nesse momento que Putin ocupou a Crimeia.[10] A guerra na Ucrânia marcou uma guinada, afirmou um diplomata, acrescentando que o presidente russo mentiu a Merkel sobre seus soldados na Crimeia. Isso, claro, afetou o relacionamento de ambos. Merkel, porém, não possuía estratégia nenhuma com relação à Rússia. Deixou a Ucrânia a cargo da União Europeia, e pagou um preço alto por isso.
A chanceler, porém, conseguiu evitar que a crise na Ucrânia se intensificasse. Ela liderou as negociações que resultaram no Acordo de Minsk. No total, as conversas de 11 e 12 de fevereiro de 2015 estenderam-se por dezessete horas. Merkel relatou, mais tarde, que estimava a hora do dia de acordo com o que via à mesa: geleia ou assado.
Com o acordo, ela evitou que, nos Estados Unidos, os “falcões” impusessem sua vontade: enviar armas pesadas à Ucrânia. Não foi pouco; talvez tenha sido o grande feito de seu governo como um todo. Se mísseis americanos tivessem despedaçado tanques russos, como a história teria terminado?
Mas o Acordo de Minsk jamais produziu uma paz real. Certa vez, Merkel disse conhecer praticamente cada árvore da chamada linha de contato em Donbass, onde soldados ucranianos e rebeldes pró-Rússia estão posicionados frente a frente e volta e meia acontecem mortes. A chanceler não devota tamanho empenho a nenhum outro tema de política externa. Mas sua diligência não logra chamar Putin à razão. Ele não tem nenhum interesse na paz, porque, se as coisas estabilizassem na Ucrânia, o país se voltaria para o Ocidente. Em uma das últimas visitas que fez a Putin, em maio de 2017, Merkel afirmou que o presidente russo tinha voltado a investir todas as suas fichas em “práticas conhecidas”: na força, no seu Exército e na guerra híbrida.[11]
Ao longo de seu governo, a chanceler viu a ideia de democracia perder força na Europa, na Rússia, mas também na China – onde muitos acreditavam que o sucesso econômico ensejaria o desejo de liberdade.
Uma das contradições de Merkel é sempre se pronunciar de forma relativamente branda sobre a ditadura em Pequim. É claro que ela está do lado dos dissidentes. Quase não há viagem à China sem um encontro com defensores dos direitos humanos na embaixada alemã. Contudo, é preponderante o respeito que ela tem por um partido que, em quatro décadas, conseguiu transformar a China de um país em desenvolvimento na segunda maior nação industrial do planeta. Certa feita, um político chinês disse a Merkel que a melhor contribuição aos direitos humanos era, afinal, a luta contra a pobreza. A chanceler julgou o argumento inteiramente convincente.
Nenhum outro premiê alemão se ocupou tanto da China como ela. Desde que tomou posse, em 2005, Merkel já foi onze vezes a Pequim. A seus olhos, a China não é primordialmente um país em que capitalismo, tecnologia de vigilância e governo de partido único criaram uma forma inédita de opressão, e sim uma advertência para que os alemães não durmam no ponto.
Ela já disse várias vezes que, ao longo de séculos, a China foi um país de alta cultura, líder em ciência e tecnologia. Mas não o diz para ilustrar faltas cometidas, e sim para mostrar como a ordem e a prosperidade podem se desfazer rapidamente.
Em sua última viagem, em maio de 2018, a chanceler visitou Shenzhen, cidadezinha junto ao Mar da China Meridional que, em poucas décadas, se transformou em uma metrópole high-tech de 12,5 milhões de habitantes. Há dez anos, talvez a China roubasse ideias do Ocidente, Merkel disse a caminho de lá. Hoje, o inunda de patentes. “E, em dez anos, vamos precisar de pessoas capazes de ler patentes em chinês, porque eles não vão se dispor a escrevê-las em inglês.”
Para ela, a China oferece uma espécie de contraste. Lá, Merkel vê o avesso da democracia, dos procedimentos que a fazem padecer cada vez mais: os debates torturantes, os caminhos infindáveis para se tomar uma decisão, a incapacidade dos governos democráticos de fazer um planejamento de longo prazo. Shenzhen é como o Vale do Silício da China. Na cidade, ela visitou uma start-up que tem por objetivo otimizar a saúde preventiva com a ajuda da inteligência artificial. Caminhou com olhos curiosos pela empresa, que, a julgar pela decoração interna descontraída, poderia se transferir de pronto para Palo Alto, na Califórnia.
Desde que Merkel assumiu o governo da Alemanha, a economia chinesa cresceu 202%. Muitos alemães nutrem ainda a crença equivocada de que a China seria um país que só faz montar torradeiras, mixers e outros eletrodomésticos. Merkel não pensa assim. Os chineses têm sistematicamente comprado participação em empresas europeias de tecnologia, querem estar na vanguarda do desenvolvimento da inteligência artificial e, para tanto, investem 11 bilhões de euros anuais. Só na Alemanha, são 500 milhões. A indústria automotiva alemã não consegue nem sequer desenvolver as próprias células de bateria, queixou-se a chanceler. Uma vergonha, afirmou ela.
No caminho de volta para casa, Merkel exibiu um humor sombrio. Falou do desastre que é o novo aeroporto de Berlim,[12] que lhe pareceu tanto mais grotesco depois da visita à incansável China. Na Alemanha, não se tem urgência para nada, lamentou. As coisas só andam, na melhor das hipóteses, sob a pressão de uma crise. “Isso tem de mudar”, disse.
O que caracteriza um grande chanceler? Contra todas as resistências, o velho Konrad Adenauer ancorou a Alemanha no Ocidente. O carismático Willy Brandt reconciliou os alemães com a democracia e, ao se ajoelhar diante do Memorial aos Heróis do Gueto de Varsóvia, em dezembro de 1970, obrigou-os a se confrontar com a própria culpa. Helmut Kohl, durante tantos anos satirizado como um palerma, teve a habilidade e a visão necessárias para, no momento certo, unificar a nação.
Que legado deixa Merkel? Há uma curiosa discrepância entre o modo como, hoje, ela é cada vez mais reverenciada e a decepção com o fato de não se valer da experiência e da liberdade propiciadas pelos últimos anos de mandato. “Merkel teria poder para dar início a algo grande”, diz Julianne Smith, que foi conselheira adjunta de Segurança Nacional do ex-vice-presidente americano Joe Biden. “Mas o que vemos é uma Alemanha paralisada, o que é ruim para a Europa e ruim para os Estados Unidos.”
Merkel aumentou o prestígio da Alemanha no mundo, disso nenhuma pessoa sensata tem dúvida. A Bundesrepublik Deutschland é o país mais popular do globo, segundo pesquisa realizada em 2018, e o fato de ninguém mais ter medo dos coturnos alemães se deve também à chanceler e à acentuada modéstia com que ela se apresenta. Nos últimos dez anos de seu governo, mudaram-se para a Alemanha e ali permaneceram 140 mil italianos, 95 mil gregos, 24 mil britânicos e 6 200 israelenses. É difícil comprovar estatisticamente que a Alemanha seja um país hostil a estrangeiros.
E ela governou por treze anos sem ser atingida por nenhum escândalo. A ideia de que seja possível corrompê-la é tão plausível quanto a suposição de que Trump leve a sério seu voto de fidelidade conjugal. A chanceler sabe a importância que tem, mas, justamente por isso, empenha-se com afinco para evitar toda e qualquer aparência de arbítrio palaciano. Com Merkel – e foi ela própria quem o disse numa viagem a Washington –, não há exceção no protocolo das visitas de estadistas à chancelaria: “Honras militares, uma hora de conversa, coletiva de imprensa, fim.”
É, ademais, a primeira mulher a governar a Alemanha. Caso houvesse alguma dúvida se uma mulher teria a autoconfiança, a tenacidade e o rigor para o exercício do cargo, Merkel pôs fim a ela. Desde as últimas eleições para o Parlamento, a chanceler precisa se submeter três vezes por ano a uma sabatina feita pelos parlamentares. De início, seus assessores temeram que a oposição pudesse se valer desse novo instrumento para ridicularizá-la diante das câmeras. O temor se mostrou inteiramente infundado.
Quando se posta diante dos parlamentares, como fez em abril último, Merkel rebate cada ataque com a tranquilidade rotineira de um computador jogando xadrez. Está a par da preocupação das start-ups com os filtros de upload. Tem pensado em “seguir uma política de taxar a emissão de CO2 mesmo em áreas fora do comércio de licenças de emissão” – como explicou a Christian Lindner, o chefe do Partido Democrático Liberal (FDP), que ficou um tanto confuso. E, quando a deputada Claudia Moll, do Partido Social-Democrata (SPD), teve o som do microfone cortado por não conseguir concluir sua pergunta bastante específica nos sessenta segundos regulamentares, a chanceler interveio com brandura: “A seu favor, nobre deputada, me permita dizer que acho que já entendi a sua pergunta.” Depois de uma hora na escolinha de Merkel, os deputados costumam ficar atordoados com tanta informação, e não seria de admirar se a chanceler ainda lhes passasse algum dever de casa.
Constitui um ponto forte dela a capacidade de decompor cada problema, por mais dramático que seja, em pequenas questões técnicas desprovidas de toda e qualquer dramaticidade. Wolfgang Schäuble[13] teria de bom grado expulsado a Grécia da zona do euro, mas a chanceler manteve os gregos em rigorosa aula de recuperação pelo tempo necessário para que os mercados se acalmassem. Na crise financeira de 2008, bastaram umas poucas palavras tranquilizadoras dela para impedir que os alemães começassem a sacar todo o dinheiro da poupança. Ao longo de seu período de governo, o PIB alemão cresceu 23%, e o desemprego caiu para os níveis mais baixos desde a reunificação.
Em muitos pontos, pode-se acusá-la de certa falta de princípios. As eleições parlamentares de 2005, que seu partido venceu por um triz, curou-a de uma vez por todas da ambição de submeter os alemães a um arrojado programa de reformas. E seu apoio à energia nuclear não sobreviveu nem 72 horas ao acidente em Fukushima, no Japão: de medo dos eleitores, foi varrido do mapa.
Mas, em pelo menos um ponto, Merkel não vacila jamais. Para ela, sempre pareceu óbvio que uma chanceler deve arcar com a responsabilidade pelos crimes cometidos pelos alemães. Antes mesmo de se tornar chefe de governo, ela expulsou do CDU o deputado Martin Hohmann, que havia proferido um discurso de tom antissemita. E, em 2007, repreendeu o colega de partido Günther Oettinger, após ele declarar que o juiz nazista Hans Filbinger, morto havia pouco, fora um “combatente da resistência”.
Ninguém mais precisa temer a Alemanha, esse gigante da Europa Central. Se vizinhos, em anos recentes, ofenderam-se com o governo de Berlim não foi por causa de desejos de hegemonia, e sim do caminho singular tomado por Merkel na crise dos refugiados, um caminho que a Europa Oriental, sobretudo, não quer trilhar. Acusaram a chanceler de imperialismo moral, um imperialismo, aliás, que nada tem a ver com capacetes e fuzis e que rendeu um bocado de respeito. “Deveríamos aprender com os alemães como tratar refugiados”, afirmou o historiador israelense Tom Segev no auge da crise, no outono de 2015.
A grande questão agora é o que Merkel vai fazer com o respeito do qual desfruta. Como vai empregar o capital político angariado na última fase de seu governo? Durante décadas, a política externa alemã foi pautada pelo fardo do passado. Ninguém queria a volta da antiga potência no centro do continente. Na resistência de François Mitterrand e Margaret Thatcher à reunificação espelhava-se o velho medo da dominação alemã.
Mas, no curso dos anos 90, Hitler foi se tornando cada vez mais um pretexto para que a Alemanha se acomodasse confortavelmente num nicho da política mundial. Em 2011, o então ministro das Relações Exteriores da Polônia, Radosław Sikorski, afirmou: “Hoje, eu temo mais a inação da Alemanha do que seu poder.” Oito anos mais tarde, a incompreensão com a inatividade de Merkel transformou-se em fúria. “É uma vergonha que ela não aproveite a oportunidade que o momento oferece para demonstrar liderança firme”, diz Julianne Smith, a ex-assessora de Biden.
Sou como um sapo hibernando”, Merkel declarou à margem de uma convenção do CDU em Essen, poucas semanas depois da eleição de Donald Trump. E completou dizendo que, nos momentos importantes, acordava. Assim havia sido em 1999, quando de um escândalo no partido envolvendo financiamento ilegal de campanhas. À época, ela escreveu um inesquecível artigo para o jornal Frankfurter Allgemeine no qual se distanciava do então chanceler Helmut Kohl. Agora, estava diante de outro momento decisivo.
Mas, então, por que Merkel não faz nada? Não vai concorrer à reeleição, o que lhe dá liberdade. Tem a seu lado um presidente francês que pressiona por reformas na Europa. E sabe, ao menos em teoria, a resposta para as questões prementes do momento atual.
Em maio de 2017, numa barraca de cerveja no bairro de Trudering, em Munique, ela afirmou que o tempo em que os europeus podiam confiar nos Estados Unidos tinha chegado ao fim. “A Europa precisa tomar seu destino nas próprias mãos.” Praticamente nenhum outro discurso da chanceler jamais encontrou ressonância tão grande, e isso porque ele contém uma verdade profunda.
Não foi somente a partir de Trump que os Estados Unidos perderam o interesse na Europa e se voltaram para outras regiões do globo. Já Barack Obama voltava os olhos na direção do Pacífico. A Otan foi produto da Guerra Fria e visava a impedir que a Europa enfraquecida acabasse sob o controle de Moscou. O primeiro secretário-geral, lorde Hastings Ismay, resumiu assim o propósito da organização: “Manter a União Soviética fora, os americanos dentro e os alemães subjugados.” Hoje, ninguém mais enxerga a Alemanha como ameaça, e os americanos já não sentem vontade de pagar pela segurança de um continente que pode muito bem cuidar de si mesmo. Nesse sentido, a afirmação de Trump de que a Otan é obsoleta não está tão equivocada assim.
Se, no discurso em Trudering, Merkel falava sério, então ela precisaria explicar aos eleitores que a Alemanha – juntamente com os demais países da Europa – tem de assumir a responsabilidade por seu próprio entorno, ou seja, pela África Setentrional e pelo Oriente Médio. Precisaria, pois, acostumar os alemães à ideia de que suas Forças Armadas necessitam de mais dinheiro e de que, no futuro, soldados alemães terão de ser enviados com mais frequência em missões perigosas. Depois da crise dos refugiados, quem ainda tem dúvida de que, quando países como a Síria ou a Líbia mergulham numa guerra civil, isso acarreta consequências imediatas para a Alemanha?
Merkel sabe disso tudo. Embora, em teoria, ela diga que a Alemanha precisa fazer mais, a chanceler quase não diz uma única palavra sobre o que isso significa na prática.
Um primeiro passo na direção dessa maior responsabilidade seria a reforma da lei que determina que toda operação militar do país precisa ser antes aprovada pelo Parlamento, o que dificulta a pronta reação em momentos de crise. Merkel, contudo, está ciente de que o assunto é controverso e prefere ficar longe dele.
O mesmo vale para o orçamento militar. A ministra da Defesa, Ursula von der Leyen, pretendia elevá-lo pelo menos a 1,5% do PIB até 2024. Mas Olaf Scholz, o ministro das Finanças, planeja um aumento de apenas 1,25% do PIB até 2023. “Nos Estados Unidos, já não é possível explicar esses números nem mesmo aos que têm simpatia pela Alemanha”, afirma Julianne Smith.
Em teoria, Merkel acredita que a Europa precisa se unir, e não apenas no plano militar, mas também para fazer frente à concorrência dos chineses. O presidente francês Emmanuel Macron anunciou em 26 de setembro de 2017, num discurso na Sorbonne, a necessidade da “refundação de uma Europa soberana, unida e democrática”.
Macron esperou até depois das eleições parlamentares alemãs para fazer seu discurso, porque queria ter Merkel a seu lado. Na verdade, espera por ela até hoje. As respostas são, na melhor das hipóteses, escassas. No governo francês, a impaciência já se transformou há muito tempo em incompreensão ante uma chanceler que simplesmente se recusa a liderar o debate sobre o futuro da Europa.
“É um fim de governo sonolento, com Merkel apagando a luz e dando boa-noite”, diz o historiador berlinense Henning Köhler, que se ocupou ao longo de toda sua carreira do legado dos chanceleres alemães. Escreveu duas alentadas biografias: uma dedicada a Kohl, a outra, a Adenauer. Considera ambos grandes chanceleres, avaliação que não estende a Merkel. Na opinião dele, o que vai ficar da chanceler é o fato de, durante seu governo, um partido populista de extrema direita ter se instalado no Parlamento.[14]
O poder de Angela Merkel tornou-se frágil. Se o SPD perder a calma depois das eleições europeias, tudo pode terminar muito rapidamente.[15] Ela sabe disso. Não se apega ao cargo. Muitos querem convencê-la a permanecer na política. Uma mulher com tamanha experiência não pode se transferir para Bruxelas? Volta e meia, outros chefes de governo a pressionam para tanto. Mas ela não quer.
Às vezes, parece que já a satisfaz desfrutar do brilho da glória conquistada. Desde a crise dos refugiados, acumulam-se na chancelaria os prêmios recebidos pelos serviços prestados à humanidade.
Em maio de 2018, o ex-presidente colombiano Juan Manuel Santos – Prêmio Nobel da Paz – entregou a Merkel a Lâmpada da Paz de São Francisco, honraria anual concedida pelos franciscanos, em Roma. “Com decisões acertadas e nem sempre populares”, disse Santos, a chanceler mostrou o significado da solidariedade na política.
Seis meses mais tarde, coube à rainha Rania da Jordânia fazer o discurso de saudação a Merkel na entrega do Goldene Victoria, prêmio da Associação Alemã dos Editores de Revistas. “Desde a sua posse, a chanceler conquistou a admiração e o respeito do mundo todo por seu inabalável compromisso com a estabilidade, a prosperidade, a liberdade e a paz”, afirmou a rainha.
Merkel é detentora também do Prêmio Internacional Carlos Magno, da cidade alemã de Aachen, da Medalha Presidencial da Liberdade, recebida das mãos de Barack Obama, e de quinze doutorados honorários.
Só lhe falta o Prêmio Nobel da Paz.
O último alemão a recebê-lo foi Willy Brandt. A cerimônia de entrega em Oslo, em dezembro de 1971, contribuiu para alçar os sociais-democratas à condição de santos seculares na Alemanha. Antes dele, somente três alemães haviam sido considerados dignos da honraria pelo comitê do Nobel: Gustav Stresemann, Ludwig Quidde e Carl von Ossietzky.[16]
Na chancelaria, diz-se que Merkel nem perde tempo pensando no Nobel. Por outro lado, ela consta há anos da lista de favoritos, e o prêmio naturalmente coroaria seu período de governo – uma consagração que sacramentaria a injustiça cometida por todos aqueles que discursaram e gritaram contra a política para os refugiados por ela adotada, caracterizando-a como um deslize sentimental.
“Ainda vamos sentir saudades dela”, diz Herfried Münkler, o cientista político com quem Merkel insistiu em conversar. Que legado deixa a chanceler? O fim da obrigatoriedade do serviço militar e também, talvez, o adeus à energia nuclear, ele diz. Mas, ao falar, Münkler hesita. São feitos que resistirão ao tempo? “Para Merkel, a política consistiu em evitar o erro”, continua, e foi isso que conferiu a ela um aspecto tão vacilante. Além disso, conclui, nunca foi grande oradora.
Políticos dotados de talento retórico sempre exercem pressão sobre si mesmos, porque o discurso inflamado obriga à ação. Esse problema Angela Merkel nunca teve.
Em 30 de maio, a chanceler discursou para formandos da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Para divulgar o evento, a escola mandou produzir um vídeo pomposo, com cenas da história recente da Alemanha, acompanhadas por uma trilha musical dramática. Ao final, a silhueta de Merkel emerge da escuridão e surgem as seguintes palavras: “A mulher mais poderosa do mundo.”
O filme tem tanto a ver com ela quanto uma Ferrari com um Fusquinha. Na chancelaria, as pessoas se divertiram com ele: acharam tipicamente americano, com sua dose exagerada de emoções.
Mas um pouco de emoção, alguma grande ideia, talvez até beneficiassem a chanceler na reta final de seu governo. Seria uma novidade. No momento, porém, parece que ela vai continuar sendo a mesma de sempre, correndo, correndo e correndo os metros finais até a linha de chegada, no mesmo ritmo monótono.
[1] Angela Dorothea Kasner, mais conhecida como Angela Merkel, nasceu em 17 de julho de 1954, em Hamburgo, mas cresceu em Templin, para onde seu pai, pastor luterano, tinha sido transferido. A cidade fazia parte da antiga Alemanha Oriental, país onde Merkel viveria até a reunificação. Em Leipzig, graduou-se em física, fez doutorado e trabalhou na Academia de Ciências. Envolveu-se com a política e em 1990 foi porta-voz do último governo da República Democrática Alemã.
[2] O prêmio da Fundação Fulbright foi entregue a Merkel em 28 de janeiro deste ano.
[3] Helmut Kohl (1930-2017) foi chanceler da Alemanha por dezesseis anos, de 1982 a 1998, pela União Democrata-Cristã (CDU), o mesmo partido de Merkel.
[4] Konrad Adenauer (1876-1967) foi o primeiro chanceler da Alemanha Ocidental (República Federal da Alemanha), tendo governado de 1949 a 1963.
[5] CDU (União Democrata-Cristã) e CSU (União Social-Cristã) são partidos de centro-direita e formam uma só bancada no Parlamento alemão. O segundo atua apenas na Baviera, região predominantemente católica.
[6] A chamada “defenestração de Praga” foi o evento que deslanchou a Guerra dos Trinta Anos. Nobres tchecos protestantes lançaram pela janela do Castelo de Praga os condes Jaroslav Bořita e Vilém Slavata. Eram ambos representantes de Fernando II, imperador católico do Sacro Império Romano-Germânico, arquiduque da Áustria e rei da Hungria, da Croácia e da Boêmia – desta última região, Praga era a principal cidade. Os condes sobreviveram.
[7] Prevendo a derrocada do Império Otomano ao fim da Primeira Guerra Mundial, os governos britânico e francês assinam em segredo, em 1916, o Acordo Sykes-Picot, que previa a divisão das terras ocupadas pelos turcos no Oriente Médio e no norte da África em áreas de influência da Grã-Bretanha e da França.
[8] Em 2015, milhões de refugiados, sobretudo sírios, iraquianos e afegãos, buscaram asilo na Europa – atravessaram a Turquia, cruzaram os Bálcãs e estacionaram na Hungria. Merkel, então, adotou uma política de “portas abertas” para recebê-los, apoiada por grande parte da opinião pública alemã, mas contrariando muitos outros, inclusive membros de seu próprio partido.
[9] Termo alemão para designar a satisfação de alguém com o infortúnio alheio.
[10] No final de 2013 e início de 2014, a Ucrânia foi palco de uma série de protestos, depois que o presidente Viktor Yanukovytch, alinhado a Putin, decidiu não assinar um acordo de cooperação com a União Europeia. O acordo poderia resultar na inclusão do país como um dos membros do bloco. A crise levou à queda de Yanukovytch e à ocupação da Crimeia – região ucraniana formada majoritariamente por descendentes de russos – pelas forças militares de Putin. Sucederam-se conflitos separatistas no sudeste da Ucrânia, promovidos por rebeldes pró-Rússia. Em setembro, foi assinado em Minsk um acordo de cessar-fogo, que logo fracassou. Um novo acordo foi assinado em fevereiro de 2015, na mesma cidade, com a participação de Angela Merkel e do então presidente francês, François Hollande.
[11] O termo “guerra híbrida” designa uma estratégia militar que reúne diferentes táticas de guerra, desde as convencionais até as cibernéticas (com hackeamentos e a proliferação de fake news, por exemplo).
[12] A inauguração do Aeroporto Berlim-Brandenburgo Willy Brandt, prevista para 2011, foi adiada várias vezes, por causa de erros na construção. Só deve ocorrer em outubro do ano que vem.
[13] Wolfgang Schäuble (1942), atual presidente do Parlamento alemão, filiado ao CDU, foi ministro do Interior de 1989 a 1991 (governo Kohl) e de 2005 a 2009 (governo Merkel). Também foi ministro das Finanças entre 2009 e 2017.
[14] O partido Alternativa para a Alemanha (AfD), fundado em 2013, é hoje, com 92 deputados, a terceira maior bancada do Parlamento alemão, depois da coligação CDU-CSU (União Democrata-Cristã/União Social-Cristã) e do SPD (Partido Social-Democrata).
[15] Nas eleições europeias realizadas em maio deste ano, a coligação CDU-CSU conquistou 28,9% dos votos, uma expressiva queda em relação aos obtidos no pleito de 2014 (35,3%). Pior ainda foi a performance do SPD, que em 2014 conseguiu 27,3% dos votos, mas neste ano apenas 15,3%. A surpresa do pleito foi a ascensão dos Verdes, que em 2014 tinham alcançado 10,7% dos votos e agora obtiveram 20,5%, conquistando o terceiro lugar nas eleições alemãs para o Parlamento Europeu, em Bruxelas. O AfD teve 11% dos votos, um aumento significativo em relação aos 7,1% obtidos em 2014.
[16] Gustav Stresemann (1878-1929) foi chanceler e ministro das Relações Exteriores da Alemanha. Ganhou o Nobel da Paz de 1926, juntamente com o primeiro-ministro francês Aristide Briand. O historiador, político e pacifista Ludwig Quidde (1858-1941) foi agraciado com o prêmio em 1927. Carl von Ossietzky (1889-1938), jornalista que revelou as estratégias de rearmamento do Exército alemão no final dos anos 20, recebeu o Nobel da Paz de 1935.