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    Era eu quem mais apanhava, porque chegara a beber cerveja com os milicianos, em busca de informação. Um deles brincava de roleta russa com o revólver na minha cabeça. Eu tinha certeza de que seríamos mortos. Eles falavam: vai morrer, vai morrer! ILUSTRAÇÃO: PEDRO FRANZ_2011 / PEDROFRANZ.COM.BR

história pessoal

Minha dor não sai no jornal

Eu era fotógrafo de O Dia, em 2008, quando fui morar numa favela para fazer uma reportagem sobre as milícias. Fui descoberto, torturado e humilhado. Perdi minha mulher, meus filhos, os amigos, a casa, o Rio, o sol, a praia, o futebol, tudo

Nilton Claudino | Edição 59, Agosto 2011

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Não sou bandido, mas tenho medo de polícia. Ando disfarçado por ruas de uma cidade distante de minhas raízes porque acho que estou sob ameaça de morte. Vivo ansioso e tenho dificuldade para dormir. Num laudo médico, minha psicóloga descreveu meu estado desta maneira: “Agitação neurossensorial e fixação mental em imagens que não conseguem se desprender e tomam de assalto a mente.”

Muitas vezes choro sozinho. Tenho pesadelos. Lembro-me de que um dos meus torturadores, quando eu estava ajoelhado, vendado e de mãos atadas, dizia no meu ouvido: “Sua vida nunca mais será a mesma.” Ele tinha razão.

Volta e meia, ainda ouço com clareza, como se estivesse sendo repetida de fato, a música angelical que os bandidos tocaram no cativeiro. O som me lança de volta àquela escuridão – estava encapuzado e ainda não imaginava o que aconteceria depois. Ouvia aquela música, criada para ser agradável aos ouvidos, vinda de um aparelho de som portátil, a poucos metros de distância. Eram sons de flauta, suaves e tranquilos, que a liturgia religiosa associa aos anjos. Uma voz de pastor, no entanto, pregava de forma aterrorizante: “Este homem que está com a faca em seu pescoço vai matá-lo. Entregue sua alma a Deus e arrependa-se dos seus pecados.”

A mensagem durava poucos minutos. Havia um intervalo de silêncio e a gravação recomeçava – de novo a flauta e a fala do pastor, como se fosse um CD em modo de repetição automática. Esta era a parte branda dos suplícios que viria a sofrer. Três anos depois, em muitas madrugadas, ainda acordo sobressaltado, com essa melodia na cabeça.

 

Aproximei-me do jornalismo, em 1977, ao começar a trabalhar como mensageiro da sucursal carioca da revista Veja. Depois, fui promovido a produtor da revista, com tarefas que incluíam pesquisas e envio do material dos fotógrafos para a sede, em São Paulo. Transferi-me mais tarde para a Placar. Passava horas no laboratório, onde aprendi todas as técnicas possíveis. Prestava muita atenção, especialmente no trabalho de Ricardo Chaves, Rodolfo Machado e J. B. Scalco, este último um dos melhores repórteres fotográficos de esportes que conheci.

Num final de semana, sem outro fotógrafo disponível, empunhei a câmera profissional pela primeira vez, para registrar um jogo do Campeonato Brasileiro. Assim ingressei na profissão que abraçaria pelo resto da vida. É engraçado que o futebol tenha me levado a ser fotógrafo. Sonhava ser jogador e cheguei a atuar no Madureira quando muito jovem.

Frequentei a casa de Arthur Antunes de Coimbra, o Zico, em Quintino, na Zona Norte, depois de peladas em chão de terra batida que alimentaram a esperança de seguir os passos do craque já famoso – o maior jogador de futebol que vi atuar. Uma contusão no joelho haveria de interromper minha trajetória, sempre difícil desde que deixei o Pantanal mato-grossense, onde cresci entre dez irmãos, para tentar a sorte no Rio de Janeiro. Nasci em Corumbá, entre o Natal e o Réveillon de 1958, estudei em colégio de padres e achei que seguiria a carreira religiosa. De certo modo, ser repórter fotográfico exigiu uma profissão de fé.

Em 1990, comecei a trabalhar no Jornal do Brasil, no qual conquistei reconhecimento profissional e prêmios internacionais. Em 1992, transferi-me para o jornal O Dia, onde fui editor de fotografia por seis anos. Ganhei uma menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog com a foto Na Mira da Lei, depois de morar, com o repórter Aloísio Freire, por duas semanas na favela da Maré, investigando denúncias sobre o chamado Comando Azul, um grupo de policiais militares metidos a justiceiros que cometiam atrocidades contra moradores e outros bandidos.

 

O jornalismo me levaria a outra situação de risco, em Capitán Bado, no Paraguai. Acompanhado de um guia, chegara a uma grande plantação de maconha e começara a fotografar com uma minicâmera quando percebi a aproximação de traficantes. Escondi a máquina na cueca e peguei uma abóbora enorme. Disse que estava roubando para comer. Sob a ameaça de fuzis AR-15, eu e o guia, que falava guarani, levamos um tempão negociando a liberdade. Foi um susto que não me impediu de assumir outra pauta arriscada: passei 28 dias viajando em uma investigação sobre o tráfico de cocaína para o Brasil, a partir do Peru e da Bolívia. O que mais me impressionou ali foi a miséria e o trabalho escravo de crianças nas plantações de coca.

O incentivo para o jornalismo investigativo veio do amigo Tim Lopes, repórter com quem trabalhei na Placar, no JB, n’O Dia e na Rede Globo. Tim foi chacinado em 2002 por traficantes do Complexo do Alemão ao fazer uma reportagem sobre venda de drogas a céu aberto numa favela, e apurava a realização de bailes funks com exploração sexual de menores de idade.

Eu e os repórteres Alexandre Medeiros e Marcos Tristão tínhamos começado a pedir ajuda nas favelas, em busca de uma pista que levasse ao paradeiro do Tim. Um dia, fui abordado por uma pessoa que se aproximou por trás e não se deixou ver: “Sobe o Complexo do Alemão, vai até um lugar chamado Pedra do Sapo e manda cavar na sombra do bambuzal. O corpo está lá”, disse. Não pude voltar meu rosto em sua direção. Se o fizesse, poderia morrer.

O coronel Venâncio Moura, então comandante do Bope, a tropa de elite da Polícia Militar do Rio, investigou a informação. Entrei mato adentro com os policiais, ao lado da repórter Albeniza Garcia. Os bombeiros fizeram a escavação. No segundo movimento da enxada, começaram a aparecer ossos e a plaqueta de controle de patrimônio da câmera da Globo. Foi muito duro, mas eu tinha que fotografar. Começamos todos a chorar. Era a ossada do amigo Tim Lopes. Tenho sempre comigo no bolso um livro de Salmos e comecei a ler o de número 23, para tentar amenizar o desespero: “O Senhor é meu pastor; nada me faltará.”

 

No começo de 2008, fui chamado pelo diretor de redação de O Dia, Alexandre Freeland, para uma pauta que tinha que ser cumprida sigilosamente: investigar um grupo de milicianos (policiais militares e civis, bombeiros, funcionários do sistema penitenciário) que atuava no Jardim Batan, uma favela encravada em Realengo, na Zona Oeste.

O Batan foi uma grande fazenda, onde havia criação de gado. Seu nome se origina de árvore típica, o ubatã ou chibatã. Foi local de muitos confrontos violentos entre facções criminosas, que procuravam controlar o tráfico de drogas por lá. Em 2007, milicianos se juntaram e expulsaram os traficantes, assumindo negócios como a venda de gás e a tevê a cabo pirata, o transporte de vans, e cobrando “taxa de segurança” dos moradores.

Para investigar essa realidade, eu, uma repórter de O Dia e um motorista do jornal nos mudamos para o Batan, onde conseguimos alugar uma casa. Chegamos lá no dia 1º de maio de 2008, pela manhã. Fomos direto até a padaria das imediações, que era do proprietário da casa que alugamos. Tomamos café da manhã ali, pegamos a chave de onde íamos morar e fomos nos instalar.

Era uma casa de três andares. Ficamos no terceiro. Descobrimos que não havia nada dentro. Começamos contatos com moradores para que nos ajudassem a mobiliá-la. O vizinho do 1º andar nos apresentou a outros da comunidade, quando tivemos a oportunidade de arrematar uma televisão usada. No comércio de Bangu, compramos colchonetes e comida.

Para me apresentar aos moradores, eu dizia ser do Pantanal, e que aguardava ser chamado para trabalhar em Macaé, numa prestadora de serviço da Petrobras. Aproximei-me das pessoas com esse discurso porque os milicianos não querem por perto os que chamam de “vagabundos”: desempregado não é tolerado. Fui ganhando confiança dos vizinhos. Fiquei amigo do morador do 1º andar, que havia sido criado nas proximidades, onde também crescera o motorista que trabalhava para o jornal. Fiz churrasco na esquina de casa, como forma de ampliar nosso relacionamento.

Fingia ser marido da repórter. Dizia que ela era evangélica, tinha vindo de Minas Gerais e que o casamento me livrara do alcoolismo. Ela começou a frequentar uma igreja próxima de casa. Fomos vivendo desta forma: eu era um cara em busca de recuperação, ela arrumou um emprego de cozinheira. Todos acreditaram, o que nos permitiu começar a recolher informações, discretamente.

Todo dia passávamos um boletim para a redação do jornal, por e-mail, enviado de uma lan house. Poucas pessoas do jornal sabiam que estávamos nessa pauta. Para que ninguém desconfiasse, dissemos na redação que estávamos em férias.

Tudo parecia correr perfeitamente bem. O Dia das Mães caiu em 11 de maio. Fizemos um almoço comemorativo para umas dez pessoas próximas. Minha “mulher mineira” fez feijão-tropeiro. Cozinhei talharim e dei rosas para as mães em homenagem à data. A cada dia tínhamos mais amigos, e um deles nos deu um sofá de presente. Pessoas comuns, realmente do bem.

Sou muito cristão. Oro todos os dias. Comecei a sentir que meu anjo da guarda queria me avisar de alguma coisa. Eu disse para a repórter que tinha tido visões de que seríamos descobertos. Lia muito as páginas de Habacuque, um dos profetas do Velho Testamento. Tinha tido a visão de que os milicianos arrombavam nossa porta. “Que nada, está tudo bem”, ela me respondia.

 

Havia feito fotos importantes, como as que mostravam o castigo que a milícia impunha a usuários de drogas. “Maconheiros” eram pintados de branco e mandados capinar e desfilar pelas ruas, para ficarem marcados pela comunidade. Outros tinham de ficar sentados por horas sobre tijolos quentes. O chefe da milícia, que todos chamavam de 01 (Zero Um), usava um caibro, que chamava de Madalena. Os moradores tinham muito medo da Madalena, usada em surras públicas. Outro cassetete era jocosamente apelidado de “Direitos Humanos”.

Havia guardas penitenciários e muita polícia pelas ruas, o tempo todo. Polícia com farda e sem farda. Eles bebiam com o carro da polícia na porta do botequim. Fotografei isso também. Nunca vira, como vi lá, uma integrante da tropa feminina da Polícia Militar atuar como miliciana. A PM loura do Batan, que andava com desenvoltura entre tantos outros fardados, foi uma das surpresas naquela apuração.

Já havia combinado com um motorista de Kombi que servia à comunidade para que me levasse no dia seguinte até a rodoviária. Achava que o trabalho estava acabando. Todo o material que fotografava eu levava para a casa da mãe do motorista, que ficava do outro lado da avenida Brasil. Não havia nenhum material jornalístico onde morávamos. Nunca usei flash. Eram fotos de luz natural, tiradas com velocidade baixa e modo de alta sensibilidade para ter boas imagens. Havia fotografado muito: a movimentação pelas ruas, PMs bêbados, castigos, punições, carcaças de carros roubados acumuladas dentro de um terreno do Exército, o depósito clandestino de gás.

Às 21h30 da quarta-feira, dia 14, falamos com o diretor de redação. Eu sempre me reportava a ele. A possibilidade de envolvimento de um deputado e um vereador com a milícia fez com que decidíssemos estender nosso período por lá. Queríamos provas indesmentíveis.

Quinze minutos depois desse telefonema, fui pego em frente à pizzaria vizinha da nossa casa. Já comecei apanhando muito. Gritavam que sabiam que eu era jornalista. Mandaram trazer a repórter, que estava no 3º andar. Ela resistiu, e eles a agrediram fortemente, forçando-a a descer a escada aos tapas e pontapés. Eu era quem mais apanhava, porque chegara a beber cerveja com os milicianos, em busca de informação. Demonstravam ódio por terem sido enganados durante catorze dias.

Fomos algemados, encapuzados com toucas pretas e enfiados no banco traseiro de um carro. Rodamos alguns minutos atrás da chave de onde seria nosso cativeiro. Para evitar a avenida Brasil, nossos sequestradores entraram em uma estrada vicinal com muitos quebra-molas. No caminho, apanhamos mais. Um deles brincava de roleta russa com o revólver na minha cabeça. Eu tinha certeza de que seríamos mortos. Ao chegarmos, notei que a casa que serviu de cativeiro parecia estar em construção. Havia brita espalhada pelo chão. Eles falavam: vai morrer, vai morrer!

O chefe, o chamado 01, sentou na minha frente. Tentei negociar. Disse: “Tenho moral no jornal. Vamos esquecer as porradas todas. Você libera a gente, e não falamos mais disso. Não se mata jornalista. Veja o caso do Tim Lopes. Era meu irmão, era um amigo muito ligado.”

“Então parece que o problema é com a família”, respondeu 01. “Você vai morrer e precisa saber que foi alcaguetado por amigos de dentro do jornal. Vou provar: você tem na sua baia de trabalho as fotos de um de seus dois filhos tocando guitarra. Seus filhos são lindos. Você mora na Zona Sul”, disse, completando em seguida com meu endereço exato.

Gelei, e ele continuou: “Vocês são uns bundões. Foram alcaguetados por seus amigos. Temos informantes em tudo o que é jornal e televisão.”

Ele então deu uma ordem: “Chama o cinegrafista.” Nossa tortura foi filmada. Alguém, um dia, vai obter essa fita da tortura que sofremos. O que passamos lá, eles fizeram questão de gravar.

 

Fiquei encapuzado a maior parte do tempo. Mas sabia que havia em volta muitos policiais. Sentia os chutes vindos de coturnos. O Zero Um saiu. À distância, bois mugiam. E começou o som da flauta e a voz de pastor pregando: “Este homem que está com a faca em seu pescoço vai matá-lo. Entregue sua alma a Deus e arrependa-se dos seus pecados.” Teatralmente, um homem colocava a faca em meu pescoço cada vez que tocava a gravação.

Entre as sessões de torturas, havíamos passado por cinco “tribunais”, as ocasiões em que os milicianos se reuniam e julgavam qual seria o nosso destino. Nos cinco, anunciaram nossa sentença de morte. Pretendiam nos levar para a favela do Fumacê, ali do lado, queimar nossos corpos e dizer que haviam sido os traficantes que nos mataram. Discutiram também convocar moradores do Batan para que fôssemos apedrejados em praça pública, como traidores. Não tenho dúvida de que, se mandassem, os moradores, tiranizados por eles, poderiam nos apedrejar.

Aí chegou aquele que todos chamavam de “Coronel”. Pegaram as senhas de meu e-mail e do da repórter. Leram todos os relatórios que passáramos para o jornal. Eu falava das fotos que tinha tirado, descrevia-as com detalhes; a repórter contextualizava as informações que recolhera. A par de tudo, o Coronel decidiu que iríamos sobreviver. Mas tomamos mais porradas. Os milicianos ainda se referiam a outro chefe, a quem chamavam de “Comandante”.

Durante a tortura, estávamos lado a lado, eu, a repórter e o motorista. Num quarto escuro, só iluminado por telas de celulares, que usavam para que pudéssemos assistir uns aos outros serem subjugados. O motorista pedia para que eu afastasse escorpiões que subiam por suas costas. Não podia ajudá-lo. Ouvíamos passos de muitos PMs. Tiraram nossos capuzes e substituíram por sacos plásticos, parecidos com os de supermercados. Com eles, produziam asfixiamentos temporários. Mas dava para ver as fardas quando olhava por baixo do plástico.

A repórter reconheceu a voz de um vereador, filho de um deputado estadual. E ele a reconheceu. Recomeçou a porradaria. Esse político me batia muito. Perguntava o que eu tinha ido fazer na Zona Oeste. Questionava se eu não amava meus filhos. Os agressores estavam com toucas do tipo ninja. Houve um momento em que achei que tinha morrido. Senti como se estivesse subindo para o céu, mas não era minha vez. Tive que voltar para contar. Deus fez que eu voltasse.

Cada vez chegavam mais camburões. Depois que apanhamos muito, levaram-nos para a sessão de choque. Era um instrumento que tinha o formato de uma pizza com um cano no meio. Tiraram minha roupa e me davam choques na região baixa e nos pés. Não posso, não devo, não quero entrar nos detalhes das brutalidades e das humilhações que sofremos.

Fomos levados para a casa dos pais do motorista, para que os milicianos pudessem pegar os cartões de memória e a máquina fotográfica. Não havia deixado a máquina dentro da comunidade em nenhum momento. Usava escondido e guardava em área vizinha para que não nos comprometesse a segurança. Chegamos em comboio, durante a madrugada.

Os pais do motorista saíram de casa assustados. Os milicianos pediram para que eu os ensinasse a fotografar. Eles nos retrataram. Ensinei a mudar a ASA da máquina (aumentar ou diminuir a sensibilidade à luz). Fotografaram-me como a imprensa policial faz com os bandidos, forçando-nos a levantar o queixo com as mãos. Eles têm nossas fotos como prêmio. Por isso, não posso voltar para o Rio até hoje.

 

Fomos soltos às quatro e meia da madrugada, na avenida Brasil, depois de mais de sete horas de tortura e sevícias. O pai do motorista dirigiu o carro que nos tirou da favela. Eu queria ir para um quartel do Exército. Mas queria falar primeiro com a direção do jornal.

Quando estávamos na altura da Estação Leopoldina, logo após a saída da avenida Brasil, entramos numa grande discussão. A repórter revelou que os torturadores a chamaram por um apelido pelo qual ela só era conhecida na redação. A certeza da traição nos deixou inseguros. Fomos para minha casa. Minha mulher disse: “Não falei que isso iria acontecer?” Abracei meu filho, que acabara de acordar. Eram quase seis horas. Estávamos descalços, feridos, destruídos. Tomamos banho na minha casa. Meu filho foi para a escola. Começou a pior tortura: a família conviver com o medo, para o resto da vida.

 

Chegaram à casa o diretor de redação e uma editora-executiva. Ligaram para a dona do jornal, a Gigi Carvalho, filha do antigo dono de O Dia, Ary Carvalho. Um ano e meio depois, ela venderia o jornal para um grupo português. Eles falaram com o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame.

Naquela manhã, depois de liberados pelos sequestradores, estranhamente, não me levaram para fazer exame de corpo de delito. Fui para o Hospital Copa D’Or, onde, mais estranho ainda, fui instruído a falar que havia caído do cavalo. Não podia contar que tinha sido torturado. Em casa, vi que havia uns caras na porta, com jeito de policiais. Estávamos sendo vigiados.

Começou a nossa fuga. Eu, meus filhos e minha mulher fomos primeiro para a serra fluminense. Na edição de domingo, 1º de junho, duas semanas depois de cairmos nas mãos da milícia, o jornal enfim trouxe o caso a público. “Tortura – milícia da Zona Oeste sequestra e espanca repórter, fotógrafo e motorista de O Dia”, era o enunciado.

Nessa altura, eu estava num quartel dos fuzileiros navais, longe de tudo. Recebi um telefonema dizendo que havia fuzileiros navais entre os milicianos do Rio, e que minha vida estava em risco. Não sei como me acharam lá.

Foi quando minha sobrinha, uma adolescente, foi vítima de uma tentativa de sequestro. Tentaram pegá-la na saída da escola e só não conseguiram porque um senhor de 70 anos conseguiu tirá-la das mãos dos sequestradores. Só Deus sabe onde ele arrumou forças para tal. Minha sobrinha está traumatizada até hoje. Ligaram para a mãe dela e disseram que era “muita coincidência” ter ocorrido a minha fuga e a tentativa de sequestro da sobrinha no mesmo momento. Falaram que não me deixariam em paz. Afirmaram que me matariam.

O Brasil não era seguro para mim. Decidi fugir para a Bolívia. Escondi-me numa cidade de 20 mil habitantes na região de Santa Cruz. Passadas as primeiras semanas, sentia saudade de minha família, que estava em uma cidade praiana no sul do Brasil. Fui encontrá-los num hotel de frente para o mar.

Minha mulher e meus filhos não falavam comigo. Ver o sofrimento deles foi a dor maior que senti. Tive vontade de me matar, de me jogar do 20º andar do hotel. Aquilo foi me consumindo. O único que me entendia e me dava carinho era Sávio, meu cachorro. Como se não bastasse tudo que passara, Sávio morreu.

Abandonei minha família. Fiquei quinze dias sumido. Voltei para pegar minhas coisas e anunciar que os deixaria viver em paz, o que não seria possível comigo por perto.

Mudei para uma cidade distante onde vivo hoje. Sofro sozinho. Meus amigos do Rio não podem falar comigo, nunca mais os vi. Com a possibilidade de ter sido traído por algum companheiro de trabalho, não posso falar com ninguém da redação d’O Dia. O ministro da Justiça chegou a propor que uma nova identidade me fosse fornecida, o que nunca ocorreu.

No Rio, correu o inquérito. Descobriu-se quem eram os líderes dos milicianos. Zero Um era o policial civil Odinei Fernando da Silva, também chefe de um grupo paramilitar denominado Águia. Zero Dois era Davi Liberato de Araújo, um presidiário que vivia fora da cadeia graças ao envolvimento de guardas penitenciários com a milícia. Os dois foram sentenciados pela Justiça a 31 anos de prisão, mas recentemente a pena foi reduzida para vinte anos. No Batan, criou-se uma Unidade de Polícia Pacificadora.

E não aconteceu nada com o vereador e o deputado estadual cujas vozes minha companheira repórter reconheceu no cativeiro. Eles negaram envolvimento com a milícia e nunca foram punidos. Agora mesmo, em julho passado, o deputado apareceu ao lado do governador do Rio numa foto de inauguração, não muito longe de onde fomos torturados.

Alguns dos bandidos estão na cadeia, mas parece que o bandido sou eu. Imagino que, a cada dia deles na prisão, mais me odeiem. Imagino quantos milicianos perderam dinheiro quando a quadrilha do Batan foi desmantelada, e quantos querem minha morte por isso, até hoje.

 

Retomar a vida é difícil. Faço tratamento psicológico e psiquiátrico, tomo uma dúzia de remédios. Quase não vejo meus filhos, que estão crescendo longe de mim. Tenho agora um neto que mal conheço. Não soube mais nada da repórter e do motorista, sumiram. Esqueci dos amigos. Preciso de fotos para me lembrar do rosto de quem gosto. Mas me lembro nitidamente dos que me torturaram.

Valeu a pena? Foi a profissão que escolhi. Mas o que mais dói é que fomos delatados por colegas da redação. Eu achava que nunca tinha tido inimigos.

Não fotografei durante o período que fugia. Voltei a tirar fotos não faz muito tempo. Antes, eu mandava ajuda para algumas crianças da favela da Rocinha. Uma família com nove meninos. Nas festas de Nossa Senhora Aparecida, no Pantanal, também dava presentes para crianças. Uma vez por mês, participava da distribuição de sopa para quem vive nas ruas.

Hoje não faço mais nada disso. Também perdi o Rio, a praia, o sol, o futebol e a cervejinha com os amigos. De vez em quando, alguém me diz que tudo já acabou. Acabou para quem? Para mim, não. A tortura continua. Tudo culpa daqueles filhos da puta.