“Foi a primeira vez que necessitei realmente do sus nos meus 28 anos. Sempre defendi a saúde pública, gratuita e de qualidade, por mais que isso pareça deslocado da realidade brasileira” FOTO: ACERVO PESSOAL
Notas soltas de um diário sem apêndice
De maca de um hospital público em Belo Horizonte, uma certeza: 2010 foi um ano ruim
Leonardo Dupin | Edição 51, Dezembro 2010
O ano de 2010 tinha tudo para ser bom para o mineiro LEONARDO DUPIN. Formado em jornalismo pela Universidade Federal de Viçosa, ele encerraria sete anos de formação acadêmica com um mestrado em extensão rural no bolso. Completara 28 anos, morava sozinho, namorava e, seguindo o ciclo natural da evolução, tudo levaria a crer que se daria bem. Mas o ano passou e, aos poucos, ele foi perdendo coisas que lhe eram caras. No mês passado, por fim, ficou sem o apêndice. Da maca de um hospital público em Belo Horizonte, fez um balanço não cronológico dos últimos meses, e concluiu: 2010 foi um ano ruim
02 DE NOVEMBRO DE 2010, TERÇA-FEIRA, 0H30_Meus olhos começam a se acostumar com a luz do ambiente. Aos poucos os objetos e pessoas ganham forma. Sou o centro das atenções no meio de um grupo de desconhecidos. Não sei onde estou. Objetos metálicos e pontiagudos, aventais sujos de sangue, máscaras de pano, toucas de cabelo e uma parafernália eletrônica são toda a informação que começo a processar.
Três médicos estão mexendo dentro da minha barriga e a dor é insuportável. Um deles me manda ficar quieto por duas vezes. Giro meu braço num movimento de autodefesa e atrapalho o trabalho deles. Resmungo algumas palavras. Sou completamente ignorado. Aterrorizado, escuto o diálogo, antes de apagar novamente.
– Segura isso!
– Curioso… não estamos encontrando. Não estamos conseguindo achar.
– Vamos ter que aumentar o corte mais uma vez.
– A operação não está dando certo. Apaga o rapaz.
07 DE MARÇO, DOMINGO_Nesta semana será depositada a última mensalidade da minha bolsa de mestrado e tenho apenas um capítulo da dissertação pronto, do total de seis. Estou devolvendo o apartamento em que moro sozinho há dois anos e acabo de vender todos os meus móveis a preço de banana para um conhecido. Ignorei as reclamações da minha namorada e os conselhos dos amigos, mas percebo que não há outra escolha. Só assim conseguirei me manter financeiramente nos próximos meses.
Pensar nas razões do que muitos consideram atraso de vida não adianta. Também não faz bem. Preciso ser prático. Algo que nunca fui. O interessante é que sempre fui criticado por minha indecisão e agora que tento ser objetivo me condenam mais uma vez. Ora bolas…
Amanhã eu mudo para um quartinho que está sobrando em uma república estudantil no 1º andar desse mesmo prédio onde vivo. O aluguel será três vezes menor. O quarto é bem pequeno, mas não é escuro e acredito que poderei passar alguns meses e resolver provisoriamente meus problemas financeiros. É claro, desde que eu empilhe num canto o que sobrou das minhas coisas encaixotadas.
A mobília do meu novo quarto é composta de peças velhas, quase podres, algumas comidas por cupins. As paredes estão cobertas com traças e muito mofo. Espero não ter problemas alérgicos, nem problemas com os atuais moradores de lá.
02 DE NOVEMBRO, TERÇA-FEIRA, 0H_Primeiro minuto do Dia de Finados. Chove lá fora. “Não existe Dia de Finados sem chuva”, lembra um enfermeiro a alguém que não consigo ver. O teto envelhecido e sujo corre por meu campo de visão enquanto a maca, desviando dos pacientes encostados nas paredes, percorre os estreitos corredores do Hospital das Clínicas, em Belo Horizonte. Estou a caminho da sala de cirurgia.
Sou um socialista. Sempre defendi a saúde pública, gratuita e de qualidade, por mais que isso pareça deslocado da realidade brasileira. Nunca quis pagar ou aceitei que minha família pagasse um plano de saúde em meu nome. Penso que enquanto essas empresas faturarem anualmente bilhões de reais e tiverem um lobby forte no Congresso Nacional, esse bem básico para o desenvolvimento da nação nunca será o que idealizo. Optei pelo SUS, e pedi a minha família que respeitasse.
Há poucos minutos, o modo aleatório do MP3 Player selecionou o disco Funeral da banda canadense Arcade Fire. Uma combinação de muitos instrumentos (guitarra, bateria, baixo, mas também piano, violino, viola, violoncelo, xilofone, teclado, acordeom e harpa) em um rock’n’roll que fala sobre a morte de maneira sutil, nada pessimista.
O título do álbum foi escolhido devido ao falecimento de diversos familiares de integrantes da banda durante o período de gravação. A canção Rebellion (Lies) foi a última que escutei antes que o médico desse sinal positivo para o início da operação. Quando ela apareceu no visor pensei em apertar o botão stop ou mudar a faixa, mas não acredito em superstição. Nem em Deus. Um trecho da canção é emblemático: “As pessoas dizem que você vai morrer.”
É a primeira vez que necessito realmente do SUS nos meus 28 anos. Agora que o meu está na reta essa mistura de idealismo e medo não tem valor algum.
02 DE NOVEMBRO, TERÇA-FEIRA, 7H_Passei a noite no hospital delirando. Estrebuchei com a pior dor que já senti na vida. Como me relatou o médico, a equipe que me operou teve que ser substituída durante a operação por uma mais experiente. Era o caso mais complicado de apendicite que eles já haviam presenciado. Segundo disseram, todos os meus órgãos do abdômen estavam fora do lugar e não foi nada fácil achar o apêndice, que estava colado ao fígado.
Ser esquisito sempre me trouxe problemas, porém, dessa vez foi pior, pois o corte foi longo e tiveram que mexer em muitos órgãos e isso provavelmente acentua minha sensação de dor na cama desta enfermaria. A operação que deveria durar quinze minutos prolongou-se por quase duas horas.
O certo é que a dor que eu sinto é parecida com a dor que os homens sentem quando tomam um chute no saco, só que acentuada e constante. Em delírio e sob efeito da anestesia da barriga para baixo, achei em vários momentos que trocaram o prognóstico e arrancaram meu escroto. Cheguei a pensar que levaria uma vida de menininha, tendo que recorrer ao prazer anal. Na dúvida, levava a cada vinte minutos a mão até o meio das pernas para conferir se estava tudo lá.
10 DE MAIO_Tenho pouco mais de um mês para entregar a dissertação e me falta concentração e disciplina. A pressão é grande, já me avisaram que não vou poder adiar o prazo e a relação com minha orientadora não é das melhores. Meu padrão de vida caiu absurdamente e minha namorada me deixou. Em breve irá para Rennes, na França, preparar o doutorado dela durante um ano.
As contas voltam a me preocupar e prevejo que vou chegar ao fim do semestre com o título de mestre, mas com muitas dívidas, planos afetivos estraçalhados e as amizades enfraquecidas, pois abandonei qualquer tipo de vida social.
23 DE MAIO_Para ajudar a pagar as contas tenho trabalhado como fotógrafo. Ano passado encomendei uma câmera fotográfica modelo Nikon D90 (além de um flash SB-900). Quem trouxe foi meu irmão, que chegou do Japão. Paguei o equipamento economizando parte dos 1 200 reais que ganhava com a bolsa de mestrado e também com o trabalho de consultoria em licenciamento ambiental.
Casamentos, formaturas, festas de criança e bailes de debutantes ocupam meus finais de semana. Algumas empresas de Viçosa me pagam em torno de 100 reais por evento. É uma exploração da minha mais-valia, pois eles nunca cobram menos de 1 000 reais de quem promove esses eventos, mesmo que os clientes sejam pobres, como geralmente são.
Viçosa é uma cidade universitária localizada na Zona da Mata mineira. A população é de cerca de 80 mil habitantes, sendo que pelo menos 30% é flutuante. Não existem grandes e nem médias indústrias no município. Quem ganha dinheiro são as poucas famílias que detêm a prestação de serviços para os estudantes. Com a ampliação do número de vagas na Universidade Federal de Viçosa, o preço do aluguel disparou e o custo de vida na cidade subiu.
Não há muitos lugares bonitos por aqui, exceto a Universidade Federal. É geralmente nela, especificamente em frente ao prédio da reitoria – um casarão de dois andares, bem conservado, em estilo colonial –, que os noivos gostam de fazer suas fotos. Há três anos, antes de me formar, eu era frequentador de manifestações estudantis no local. Cheguei a ocupar (não gosto da expressão “invadir”) a reitoria algumas vezes. Agora isso parece distante.
Hoje fiz uma longa sessão fotográfica no gramado usando a reitoria como cenário. A noiva, uma negra, que devia pesar aproximadamente 120 quilos, usava um vestido branco com um longo véu, gerando forte contraste. Pedi aos noivos que assumissem várias poses: abraçados, ele ajoelhado aos pés dela, apoiados na fachada da reitoria, deitados na grama etc. Um espetáculo para a plateia catedrática que circula pelo local.
30 DE JUNHO_Defendi ontem minha dissertação de mestrado. Não foi o fracasso que previ há alguns meses, mas também não há motivo para comemoração, apenas alívio. A saber, realizei um estudo antropológico, enfocando política e violência no sertão pernambucano.
Nesse momento me encontro num ônibus rumo ao Rio de Janeiro onde trabalharei por algumas semanas para uma empresa carioca de consultoria em licenciamento ambiental. Consultoria e licenciamento ambiental são nomes bonitos para duas coisas escrotas. O primeiro está na ordem da precarização das relações de trabalho. Eles te pagam uma grana para fazer um serviço, mas não te oferecem direito algum. Terminado o serviço, que é de curta duração, você está novamente desempregado. Já o segundo nome significa uma empresa gastar pouco para conseguir a liberação da obra pelo estado, mesmo que para isso almas tenham que ser vendidas. Nesse contexto existe uma luta entre atingidos versus empreendedores (mais um nome bonito para outra coisa escrota) e você é pago pelo segundo grupo.
Meu serviço será visitar donos de propriedades que serão cortadas por uma linha de transmissão (LT) de 345 quilovolts. Eles geralmente estão insatisfeitos. A empresa diz que a linha não incomoda muito, apenas faz um zumbido que se acentua em dias de chuva. Pode também provocar interferência na tevê e no rádio, além de um leve choque em quem estiver trabalhando dentro da chamada faixa de servidão, mas isso só se o solo e a vegetação estiverem úmidos. Às pessoas que usam marca-passo, é recomendado ficarem distantes.
Contudo, os problemas giram geralmente em torno da indenização paga pela empresa, que costuma ser proporcional ao grau de instrução da pessoa. Quanto maior a possibilidade de que ela recorra à Justiça, mais alto será o valor que receberá. Definitivamente, não é um trabalho que me agrade, mas preciso pagar minhas contas.
02 DE NOVEMBRO, TERÇA-FEIRA, 22H_No final da tarde fui avisado pelo médico que seria transferido para uma enfermaria “um pouco pior” do que aquela em que fiquei alojado depois da operação. Não vou me alongar sobre o local em que passarei minha segunda noite neste hospital, pois estou sem paciência e esse relato já me é muito doloroso. Apenas alguns detalhes sobre a nova vizinhança, que não é tão pacífica quanto a anterior.
Meu novo vizinho da esquerda agora é um senhor gordo e negro que passou por um derrame e fica deitado o tempo todo de barriga para cima olhando para o teto. Após o trauma, o lado direito do seu corpo parou de funcionar e, pelo que parece, o intestino deve ficar desse lado, pois ele está o tempo inteiro cagado e o cheiro não é nada agradável.
O vizinho da direita tem paralisia e, quando não está sedado, urra em altos decibéis palavras pouco polidas. Suas pernas são atrofiadas, por isso não pode se levantar. Um dos braços também é assim, um olho é arregalado e não fecha nunca. O outro parece normal. Acho que ele não gosta de mim. Em um de seus acessos de fúria jogou bem longe meu jantar, que estava sobre a mesinha de cabeceira, e depois soltou um som tribal feliz para a enfermeira. Faz quatro dias que não como uma refeição verdadeira e ainda assim estou sem fome.
23 DE AGOSTO_Eu queria ser jornalista, mas, como não entrei no mercado de trabalho, devo tentar o doutorado em ciências sociais.
Acabo de chegar de uma série de mais de 400 visitas a proprietários de terra no Nordeste do país. Em vinte dias percorri 4 200 quilômetros, que abrangem dezoito municípios em três estados diferentes (Tocantins, Maranhão e Piauí). É verão no sertão nordestino e não chove há muitos meses. Enfrentei um calor medonho, cerca de 40 graus à sombra, com direito a diarreia e uma ligeira parada num posto de saúde. À trepidação do carro, que pula feito um cabrito nas péssimas estradas, soma-se a poeira que impregna na pele. Com o passar do tempo, é inevitável sentir vontade de vomitar.
O serviço que realizo é intenso, porém não exige grande reflexão, nem cuidados pessoais. Apenas entregar papel e anotar reclamações. Os pequenos proprietários geralmente aceitam as obras sem reclamar, já os latifundiários são pedantes e costumam descontar sua fúria em nós, consultores. Em todo esse período, não aparei uma única vez a barba, e meus cabelos completam três meses sem corte. Minhas roupas estão todas emboladas e sujas dentro da mochila e no meu único par de tênis já não cabem mais terra ou buracos.
A propósito, fui obrigado a me desfazer do quarto na república do 1º andar e agora voltarei a morar com minha mãe em Belo Horizonte, depois de oito anos longe de casa. Mas, antes disso, estourei 250 reais no cheque especial. A dívida é motivada pelo atraso no pagamento de 4 mil reais do último serviço que fiz. O carro, que deixei na casa do meu pai, foi vendido e ele ainda não me repassou o dinheiro. O velho optou por fazer o negócio sem falar comigo, uma vez que estava no nome dele. Argumentou que o veículo estava parado e disse que tentou me ligar, mas sem crédito o celular não recebe chamadas em outros estados.
03 DE NOVEMBRO, QUARTA-FEIRA, 10H30_A enfermaria foi aos poucos se enchendo de estudantes e professores dos cursos de medicina e enfermagem. Para quem não conhece, o Hospital das Clínicas pertence à Universidade Federal de Minas Gerais e é utilizado como hospital-escola. Aqui dentro você descobre o quanto essa situação pode ser bizarra. Os alunos querem aprender e nós somos a vitrine de carne, osso, gordura e sangue. Com seus estetoscópios e suas pranchetas, eles param em volta das camas, fazendo pequenos círculos, iniciam uma série de perguntas e realizam exames e mais exames, anotados detalhadamente.
A vontade, o cansaço e o constrangimento dos pacientes que estão seminus – alguns estão somente de fralda – não conta muito diante do desenvolvimento da ciência médica. Felizmente eles não se interessaram muito por mim, há espécies mais exóticas no local e, ao que parece, a máxima do “quanto pior melhor” vale no recinto. Apenas me cobri com um lençol e desejei que o tempo passasse rapidamente.
O vaivém permaneceu por umas duas horas até que, de repente, como num passe de mágica, a sala se esvaziou e só sobraram os pacientes. Aliás, os pacientes e o pessoal da limpeza, que espalhava um produto chamado Lysoform pelo local. Nunca estive em uma guerra química, provavelmente por isso nunca vi nada parecido. O Lysoform é um desinfetante utilizado em hospitais – mas desconfio que tenha sido desenvolvido pelos militares norte-americanos para matar os vietcongues. De cheiro fortíssimo, é capaz de deixar o nariz, os olhos e a boca ardendo, fazendo qualquer um ver estrelas. Ignorei as dores, a barriga costurada e saí manquitolando com o postezinho de soro em direção ao corredor. Tive saudade do cheiro de merda do meu vizinho da esquerda. Pobre daqueles que foram obrigados a ficar.
03 DE NOVEMBRO, QUARTA-FEIRA, 19H_Descobri que sou claustrofóbico, agora que posso andar, ou melhor, mancar. Não consigo mais permanecer uns míseros minutos dentro da enfermaria. Tirei o pijama hospitalar e coloquei a roupa que minha mãe deixou por aqui. Percebi que a hierarquia dentro do hospital se dá pelo vestuário e, talvez, vestir uma cueca e uma calça me empreste um pouco mais de respeito.
Os médicos utilizam o branco na calça e na blusa. As enfermeiras-chefes vestem o jaleco dessa mesma cor e as enfermeiras menos graduadas usam um pijama verde com bolinhas escuras. O pessoal da limpeza tem um uniforme próprio. Abaixo na hierarquia estamos nós, pacientes, com a fardagem larga e puída, cobrindo a total ausência de roupas íntimas.
São 19 horas e o médico prometeu que eu teria alta após o almoço, mas ainda nem sinal dele. As enfermeiras todas dizem que ele está na sala de cirurgia, mas esse deve ser o combinado dentro do hospital para evitar que pacientes, chatos como eu, o atormentem. O jeito é esperar, sentado no corredor.
02 DE OUTUBRO_Resolvi passar um final de semana fora e perdi o quarto no apartamento da minha mãe. Meu irmão mais velho, que morava fora do país, chegou de viagem e ocupou o espaço, tirando minhas coisas que estavam no armário. Ele é engenheiro de uma multinacional e tem um apartamento em um bairro nobre da cidade, mas está alugado. Em poucas palavras me disse que quer economizar e me sugeriu fazer o mesmo.
Faz cinco dias que estou dormindo no sofá da sala e o assunto virou um tabu no apartamento. Todos fingem que nada aconteceu, inclusive eu. A minha coluna não é o meu maior problema, perto do meu irmão. Ele tem certa compulsão por organização e limpeza e minhas coisas, espalhadas por todos os cantos do apartamento, começam a incomodá-lo. Pela manhã me fez uma longa propaganda de um boxe que ele alugou. Em uma bela explanação, falou da organização e da praticidade do espaço, que deve ficar do outro lado de Belo Horizonte, e sugeriu que eu levasse parte das minhas coisas para lá.
Não encarei o fato bem e resolvi deixar o apartamento. Segui, com toda minha bagagem, para a casa do meu pai. Ele estava com pressa e não perguntou sobre minha visita ou mesmo sobre minha bagagem. Apenas me entregou um molho enorme de chaves e disse que não voltava hoje.
Saí para comer alguma coisa e, ao retornar e enfiar a chave, a fechadura quebrou. Faz quatro horas que estou trancado do lado de fora do portão, com apenas seis reais na carteira e sem conhecer nada ou ninguém nesse bairro. O número do celular do meu pai eu perdi quando meu aparelho foi roubado na última semana.
04 DE OUTUBRO_Em menos de 48 horas é a segunda vez que fico trancado do lado de fora. Permaneci por pouco mais de um dia na casa do meu pai e vim para um novo trabalho de licenciamento no Rio de Janeiro. Passei a noite toda tentando inutilmente dormir dentro do ônibus e, finalmente, cheguei ao apartamento de um amigo, onde combinei de me hospedar por alguns dias. Ele mora sozinho no bairro da Lapa e, apesar de eu ter ligado na noite anterior, ele bebeu todas e se esqueceu de mim.
Pelo celular emprestado que consegui, descobri que ele havia acabado de acordar na Barra da Tijuca e que iria demorar um pouco até atravessar de ônibus toda a Zona Sul do Rio em um dia de trânsito intenso.
Após algumas horas de espera, no exato momento em que finalmente entrei no apartamento do meu amigo, recebi um telefonema da empresa dizendo que o trabalho foi adiado por aproximadamente trinta dias. Dessa forma, com o rabo entre as pernas, vou-me embora do Rio hoje mesmo. Porém, me pergunto, para onde?
09 DE OUTUBRO_Voltei a morar em Viçosa na mesma república estudantil do 1º andar, com os mesmos carinhas estranhos. Recebi o dinheiro de alguns trabalhos anteriores e isso me tranquilizou. Hoje pela manhã acordei com um companheiro de república soltando a voz no violão. O problema é que ele não tem talento algum. Mas ele insiste.
O som de Alvarenga e Ranchinho faz coro para minha ressaca. Continuei deitado numa tentativa de sofrer menos. A cada cochilo que eu dava ele subia o tom. Era ele e um acompanhante, que fazia a segunda voz também de maneira medonha. A dupla continuou por quarenta minutos até minha bexiga encher. Fui ao banheiro, fiz xixi com a porta aberta e depois segui até o quarto dele. Estava sozinho. Soltei alguns palavrões e comentei: “Você canta mal, mas esse cara que estava aqui com você consegue cantar pior.”
Tive a surpresa do ano. Todo aquele ruído foi produzido por apenas uma voz e um violão. Aliás, duas. Com a ajuda de um programa de computador, ele havia gravado a segunda voz que tocava simultaneamente enquanto gravava a primeira, quer dizer, ele fazia uma dupla sertaneja com ele mesmo. Ser esquisito tem limite. Penso em me mudar novamente.
30 DE OUTUBRO_Encerrei um trabalho de pouco mais de uma semana no Rio de Janeiro. Me despedi da minha companheira de trabalho no aeroporto Santos Dumont e segui rumo ao bairro da Glória. No caminho comecei a sentir algumas fincadas na barriga, nada que preocupasse, pois já me acostumei a trabalhar viajando e a me alimentar na beira de estradas, porém elas aumentaram muito e nessa mesma noite procurei uma Unidade de Pronto Atendimento em Botafogo.
Lá a médica me pediu alguns exames, realizados na hora, mas não identificou meu problema, apenas me receitou uma caixa de Buscopan e recomendou que, se as dores continuassem, eu deveria procurar um hospital público no Rio. Como as dores não passaram, amanhã à noite pegarei um voo (com preço promocional) para Belo Horizonte, onde mora minha família. Imagino que um hospital público na Cidade Maravilhosa pode não ser tão maravilhoso.
31 DE OUTUBRO_Um primo distante é um dos comissários de voo do avião. Eu o encontrei por acaso ao subir na aeronave. Não sabia que ele trabalhava numa companhia aérea e não me lembro nem mesmo do nome dele. Me chamou de primo e depois pelo meu primeiro nome; retribuí o primo. Após a decolagem ele veio até minha poltrona e perguntou se eu estava com medo. Respondi que não. Desde então, decidi conter minhas caretas, mesmo que as dores aumentassem.
Quando saí do apartamento da minha mãe, há menos de um mês, prometi que este ano não voltaria para lá. Engulo a seco o orgulho e volto, provisoriamente. Espero que a hospedagem seja de um ou dois dias no máximo, apenas o tempo necessário para fazer uns exames e descobrir a origem da dor. A ideia de voltar a dormir no sofá da sala não me agrada nem um pouco.
1º DE NOVEMBRO, SEGUNDA-FEIRA, DAS 17H ÀS 19H_As dores na barriga continuam. Minha mãe marcou uma consulta particular em uma clínica especializada em gastroenterologia. Relutei um pouco, mas decidi aceitar. Coloquei os gastos no papel e ela disse que me ajudaria. No consultório, uma senhora de pele alva, óculos de aros grossos e postura autoritária me fez contar profundamente toda minha vida nos últimos anos.
Na primeira meia hora de consulta eu me mostrei equilibrado e fiz um claro e pausado relato, tentando me mostrar superior. Na segunda parte, me desequilibrei, não contive as lágrimas e embolei toda a narrativa. Acho que ela queria achar um fundo psicológico para uma possível gastrite, o que não foi difícil. Porém, terminada a sessão, ela não me deu um diagnóstico preciso e apenas pediu mais exames.
Estou indo agora para um hospital público com a esperança de conseguir ser atendido em véspera de feriado. Tentarei em um ou dois hospitais. Se não conseguir, volto para Viçosa e tento atendimento lá.
02 DE NOVEMBRO, TERÇA-FEIRA, 07H30_Amanheceu e eu não dormi nada. Às seis horas da manhã um rádio começou a tocar antigas baladas sertanejas em alto volume e eu finalmente conheci minha vizinhança. Não são muitas pessoas, apenas meia dúzia de pacientes que devem estar aqui há vários dias e também estrebuchavam, fazendo meu problema parecer bem pequeno. Uma enfermeira entrou no quatro e reclamou:
– Que boate é essa, seu Joaquim? Abaixa esse volume!
O seu Joaquim, um senhor de idade bem avançada, fica na minha frente, do outro lado da sala, próximo à porta. Ao seu lado esquerdo, na diagonal direita da minha cama, há um jovem magro e com dentes amarelos que se coça o tempo inteiro, com quem me preocupei apenas por alguns instantes, até conhecer meu vizinho de cama.
À minha direita há um senhor também magro e sem camisa, com um aparelho de sucção que entra por dentro da sua traqueia, fazendo um barulho medonho. Ao que me parece ele está com pneumonia, eu não sei se há risco de contágio. Há poucos dias ouvi falar de uma superbactéria – Klebsiella pneumoniae carbapenemase (KPC) – que tem matado gente nos hospitais brasileiros. Pensando nela ou em qualquer outra possibilidade de infecção hospitalar, um pouco da minha dor se transforma em medo, o que é bom porque a torna mais suportável.
08 DE NOVEMBRO_Estou de volta ao sofá da casa da minha mãe. O médico prescreveu milhões de remédios para eu tomar e isso tem me dado tonteira e enjoos constantes. Cada trecho escrito é precedido por uma forte náusea, por isso vou encerrar este diário por aqui.
No sábado tossi algumas vezes na frente da minha mãe e bastou para ser dado o alerta vermelho aqui em casa. Ela tirou minha temperatura, queria acrescentar alguns remédios aos já prescritos pelo médico e quase chorou ao pensar que pudesse se tratar de uma infecção hospitalar.
Desde que saí do hospital não tenho dormido bem. As últimas duas noites acordei no meio da madrugada com o vento frio da janela, tendo a sensação de que uma figura mitológica de capa preta, montada num cavalo de três pernas e segurando uma foice está me chamando para dar uma voltinha na enfermaria. Enfim, nada que me assuste nesse incomum 2010.
15 DE NOVEMBRO_Daqui a algumas horas voltarei ao Hospital das Clínicas para retirar os pontos que tanto coçam na minha barriga. A cicatriz e este diário serão as únicas marcas desse período de internação. Será estranho rever a enfermaria e temo pelo tempo de atendimento, que pode se prolongar por algumas horas.
A carta de crédito da pessoa a quem meu pai vendeu o carro não foi aprovada. Com isso, recuperei o automóvel. Tento acreditar que as coisas estão melhorando, mas efetivamente ainda não aconteceu nada que me prove isso. O carro, por exemplo, voltou cheio de novos defeitos e vou gastar uma grana alta para consertá-lo. Tive que trocar os quatro pneus, dois amortecedores traseiros e um monte de outras peças que não faço ideia do nome, mas sei bem que o valor é alto.
Amanhã, se tudo der certo com a retirada dos pontos e com o carro, volto nele para Viçosa.
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