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    A indígena Txai Suruí: para ela, a Conferência do Clima da ONU foi decepcionante. “Mais uma vez vimos as pessoas brancas do Norte global escolhendo nosso futuro e o futuro do mundo” CRÉDITO: ARQUIVO PESSOAL

carta de glasgow

A nova cara do ativismo

Txai Suruí quer os povos indígenas no centro das decisões sobre a crise climática

Bernardo Esteves | Edição 183, Dezembro 2021

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No final dos anos 1990, a ativista Ivaneide Cardozo participou de uma manifestação na frente do palácio do governo em Porto Velho, capital de Rondônia. Os manifestantes cobravam a demarcação de terras indígenas e a expulsão de invasores que tinham ocupado suas reservas. Por um instante, Neidinha Suruí – como a indigenista é mais conhecida – perdeu de vista a filha Txai, que tinha então cerca de 5 anos e estava sempre ao seu lado nas passeatas. Encontrou a menina alguns metros à frente, ao lado de Eduardo Valverde, um político do PT apoiador da causa indígena que foi deputado federal por dois mandatos na década seguinte. De mão dada com Valverde e microfone em punho, Txai pedia que ele defendesse o direito das crianças. “Não sei o que ela entendia de demarcação de terras ou o que passou pela cabecinha dela com aquela idade”, disse Cardozo ao relembrar a cena numa entrevista à piauí. “Essa daí sempre foi uma ativista.”

Cardozo não se impressionou quando, duas décadas depois, sua filha apareceu na televisão falando em inglês, dirigindo-se ao premiê britânico Boris Johnson e a chefes de Estado de todo o mundo na abertura da COP26, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, realizada em novembro em Glasgow, no Reino Unido. Txai Suruí, uma estudante de direito de 24 anos, foi a única brasileira e a única representante dos povos originários a discursar na cerimônia. Ela reivindicou seu direito de participar da busca por uma saída para o aquecimento global. “Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática, por isso devemos estar no centro das decisões que acontecem aqui.”

Txai Suruí fez parte da maior delegação indígena que o Brasil já enviou a uma conferência do clima, com mais de quarenta líderes, principalmente mulheres. As ativistas brasileiras estavam nos corredores da conferência e nas ruas de Glasgow, em outdoors que estampavam Sonia Guajajara, Célia Xakriabá e Glicéria Tupinambá, “as verdadeiras líderes pelo clima”, conforme uma campanha de ONGs britânicas. As brasileiras foram à Escócia falar da contribuição dada pelos povos indígenas no combate à crise climática com a conservação das florestas em seus territórios. As terras indígenas são o lugar do Brasil onde as florestas estão mais protegidas. Na Amazônia brasileira, menos de 1% do desmatamento registrado entre 1985 e 2020 aconteceu em terras indígenas, de acordo com um levantamento do MapBiomas. “Os povos indígenas representam 6% da população mundial e sustentam 80% das florestas”, disse Suruí em entrevista à piauí dias depois do seu discurso. “A Amazônia é essencial para o equilíbrio climático e nós estamos lutando com nossas vidas para mantê-la de pé.”

A COP26 tinha entre seus objetivos estabelecer regras para a implementação do Acordo de Paris, no qual quase duzentos países se comprometeram, em 2015, a tentar limitar, até o fim do século, o aumento da temperatura global a no máximo 1,5ºC em relação ao período anterior à Revolução Industrial. No começo do evento em Glasgow foi feito o anúncio de compromissos firmados por alguns países, inclusive o Brasil, em paralelo às negociações da conferência. Um total de 127 nações se comprometeu a zerar o desmatamento até 2030, e 103 delas assinaram um pacto que promete reduzir em 30% no mesmo prazo as emissões de metano, um dos mais poderosos gases causadores do efeito estufa. O Brasil e outros países também anunciaram que alcançariam a neutralidade de carbono até 2050. Mas esses compromissos têm prazos longínquos, e os governantes que os assinaram não estarão mais no poder quando chegar a hora de cumpri-los. “Não é 2030 ou 2050, é agora!”, protestou Txai Suruí, em seu discurso. “Vamos frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis; vamos acabar com a poluição das palavras vazias, e vamos lutar por um futuro e um presente habitáveis.”

 

O Brasil se comprometeu em Glasgow a zerar o desmatamento ilegal até 2028, dois anos antes do que havia estipulado anteriormente. Na prática, porém, a política ambiental do governo Bolsonaro está levando o país na direção contrária, com a perda florestal em alta pelo quarto ano seguido. A última taxa anual de desmatamento foi de 13 235 km2 de corte raso, um índice que não se via desde 2006. Houve um aumento de 22% em relação a 2020 e de 76% em relação a 2018, antes da eleição de Bolsonaro.

O número oficial foi calculado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e comunicado no fim de outubro ao governo, que não quis divulgá-lo na COP, como o Brasil costumava fazer. Questionado em Glasgow sobre por que não havia divulgado a taxa, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Alvaro Pereira Leite, disse que nos últimos dias estava concentrado nas negociações. “Não vi se saíram ou não os dados.” Mas o governo já tinha conhecimento do número do Inpe fazia quinze dias.

Ao esconder a explosão do desmatamento, o governo se desobrigou de explicar a contradição dos números com o “Brasil real” que Leite tentou vender na COP26, ancorado num plano de crescimento verde sobre o qual ainda não deu detalhes. O “Brasil real” do ministro estava em cartaz no pavilhão do país na conferência, patrocinado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil). Ali, nem sinal da delegação indígena. A algumas dezenas de metros de distância, era possível vê-las denunciando a disparidade entre o discurso e a prática do governo, no pavilhão alternativo do Brasil, bancado por organizações da sociedade civil. “Enquanto esse governo vem aqui anunciar que vai zerar o desmatamento, no Brasil ele está desmontando as políticas de direitos humanos e ambientais e enfraquecendo órgãos de fiscalização e controle”, disse Sonia Guajajara. “São inimigos declarados dos povos indígenas.”

Para os povos originários, o Brasil real é o da Fundação Nacional do Índio (Funai), que proíbe agentes da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de entrarem na terra indígena Yanomami para dar assistência em meio ao colapso sanitário e a um surto de malária, segundo mostrou uma reportagem do Fantástico. É o país que não demarca mais terras indígenas, conforme Jair Bolsonaro prometeu durante a campanha à Presidência, desafiando a Constituição. O Brasil real é também o país do projeto de lei nº 490/2007, que pretende criar um marco temporal para a reivindicação dos povos indígenas por terras, estabelecendo que só aquelas que estavam ocupadas em 1988, ano da promulgação da Constituição, poderiam ser reclamadas. É uma tese que os indígenas refutam, pois não leva em conta que diversos povos foram expulsos de suas terras antes daquele ano.

Quando o STF começou a julgar a constitucionalidade do marco temporal, em agosto passado, cerca de 5 mil pessoas de 172 povos acamparam a 2 km da Praça dos Três Poderes, na maior mobilização indígena já vista na capital. Txai Suruí estava à frente da delegação do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, fundado por ela, que em Brasília contou com representantes de doze povos.

 

Txai é o apelido de Walelasoetxeige Paiter Bandeira Suruí. Seu nome quer dizer “mulher inteligente” em tupi-mondé, a língua falada pelos Paiter-Suruí. “Waled quer dizer mulher, e soetxeige, inteligente”, disse à piauí Almir Narayamoga Suruí, cacique-geral dos Paiter-Suruí e pai da ativista. “Foi minha mãe quem deu o nome, junto com minhas irmãs.” A menina – sua terceira filha – nasceu em Porto Velho em 5 de fevereiro de 1997 e foi criada entre a capital e a Terra Indígena Sete de Setembro, que cobre um trecho da fronteira entre Rondônia e Mato Grosso. O nome da terra não alude à data da Independência do Brasil, mas da instalação do acampamento da Funai que levou ao primeiro contato oficial do governo brasileiro com os Paiter-Suruí, em 1969. “Paiter é como a gente se autodenomina e significa ‘gente de verdade’. Suruí é o nome que deram para o nosso povo quando aconteceu o contato”, explicou Txai.

A jovem ativista é filha de dois dos mais destacados ambientalistas da Amazônia. Quando ela tinha 12 anos, seu pai foi à conferência do clima de Copenhague apresentar um projeto para a venda de créditos de carbono obtidos com o plantio de espécies nativas da Amazônia na terra dos Paiter-Suruí. Eles se tornaram o primeiro povo indígena no mundo a fazer esse tipo de operação. Almir recebeu vários prêmios internacionais e foi declarado Herói da Floresta da ONU.

Já Ivaneide Cardozo é historiadora e fundadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, uma ONG criada nos anos 1990. Filha de um cearense que fugiu da seca para virar seringueiro no Acre, ela encontrou Almir Suruí no ativismo indígena, se casou com ele e teve duas filhas. A Kanindé foi criada para atuar junto ao povo Uru-Eu-Wau-Wau, que vive sob intensa pressão de invasores. “É a terra indígena de Rondônia sob maior ataque de grileiros, madeireiros e garimpeiros”, afirmou a ativista. Ao lado da mãe nas palestras e expedições para expulsar os invasores, Txai Suruí passou boa parte da infância com os Uru-Eu-Wau-Wau, que ela considera sua família.

Um de seus melhores amigos era o professor Ari Uru-Eu-Wau-Wau, que atuava também como um dos guardiões da floresta, grupo dedicado à proteção do território. “Eles fazem um monitoramento supertecnológico, usando drone, GPS, celular, aliado ao conhecimento tradicional”, disse Suruí. Em 18 de abril do ano passado, Ari foi assassinado, aos 33 anos. Em seu discurso em Glasgow, a ativista lembrou do crime, que ela atribui a invasores. Vinte meses depois, ainda não há explicação oficial para o assassinato; investigado a princípio pela Polícia Civil, o caso está nas mãos da Polícia Federal.

Txai Suruí estuda direito no Centro Universitário São Lucas, em Porto Velho, onde mora com o marido, um fotógrafo e jornalista paulista radicado em Rondônia. Ela trabalha no núcleo jurídico da Kanindé, a ONG fundada por sua mãe. Incorporou as mudanças climáticas ao seu ativismo em 2019, quando foi convidada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) para ir à COP25, em Madri. Foi a Glasgow também como representante da Apib, com apoio da ONG Engajamundo e de outras organizações.

Suruí ficou orgulhosa de falar na cerimônia de abertura, mas acha que os povos indígenas demoraram a conquistar espaço na conferência. “Esta é a COP vinte e seis!”, provocou. Estar ali não lhe interessa se a única preocupação for a inclusividade. “A gente não quer só discursar, a gente quer participar do processo decisório”, afirmou. “Temos que decolonizar todos os espaços, e isso se faz incluindo pessoas indígenas, negras, quilombolas, da favela.” A estudante notou que naquela noite falou principalmente para homens brancos engravatados. “Se só eles decidirem pela gente, não vai dar certo.”

 

Txai Suruí perdeu o controle das suas mensagens no celular depois de discursar na abertura da COP26. Quando falou pela primeira vez à piauí, em Glasgow, ela sacou o aparelho e mostrou o WhatsApp com as páginas e páginas de mensagens não lidas. A entrevista foi interrompida várias vezes por jovens que queriam fotos ou algumas palavras de Suruí. Depois da cerimônia de abertura, passou a ser disputada por ativistas, políticos, empresários e jornalistas. “Saí no New York Times, fio!”, ela comemorou, com um sorriso de incredulidade.

Suruí tomou café da manhã com CEOs de grandes empresas e encontrou um ministro da Holanda. “Fomos cobrar que os acordos comerciais entre os países não sejam derivados da destruição das florestas e das terras indígenas”, disse. Foi convidada a escrever um livro e participar do programa de tevê Roda Viva ao lado do pai; também foi procurada por um emissário do Vaticano e pelo ex-senador Eduardo Suplicy. Ao final da conferência, viajou à Suécia para conversar com políticos e ambientalistas e encontrar Greta Thunberg, o rosto mais conhecido do jovem ativismo climático.

Os holofotes lançados sobre a ativista brasileira atraíram os ataques das hostes bolsonaristas e do próprio presidente. Numa conversa com apoiadores na saída do Palácio do Planalto, Bolsonaro ironizou a participação de Txai Suruí na conferência internacional, sem nomeá-la. “Estão reclamando que eu não fui para Glasgow. Levaram uma índia para lá, para substituir o Raoni, para atacar o Brasil”, afirmou. “Ninguém critica o próprio país. Alguém já viu americano criticando as queimadas lá no estado da Califórnia? Não. É só aqui, pô.”

Os ataques do governo não vieram só do presidente. Enquanto dava entrevistas para uma tevê belga, depois do discurso, Suruí era observada de perto por um funcionário do Ministério do Meio Ambiente que integrava a delegação brasileira oficial na COP26. “Quando terminei a entrevista ele veio meio que me intimidar, dizendo que não era para falar mal do Brasil e que o Brasil estava aqui para ajudar”, ela contou à piauí. O funcionário estava identificado pelo crachá: era Luiz Vicente Vicentin Aguilar, um engenheiro metalúrgico de 61 anos, filiado ao Partido Novo e que ocupa o cargo comissionado de gerente de projetos da Secretaria de Clima e Relações Internacionais do ministério.

A ativista foi também alvo de uma enxurrada de notícias falsas e ataques nas redes sociais. Criticaram o fato de ela ser indígena e ao mesmo tempo ter um estilo de vida parecido com o de qualquer mulher da sua idade. Nas redes sociais, viralizou uma mensagem que apresenta a foto de uma jovem na balada como se fosse Suruí. “Olha aí a ‘índia brasileira’ que foi falar mal do seu país lá fora, fantasiada de ‘indígena VIP’”, dizia o texto. Uma foto que Suruí publicou na qual aparece beijando o marido recebeu dezenas de comentários preconceituosos. “Humano gosta de conforto e segurança. Pode transformar a floresta em cidades modernas, todos nós apoiamos”, diz um deles. O delegado Éder Mauro, deputado federal pelo PSD do Pará, foi um dos que ironizaram a foto nas redes sociais.

“É como se não tivéssemos o direito de ter celular, de nos comunicar, de vestir roupas e amar quem a gente quiser só por sermos indígenas”, rebateu Suruí. A ativista ressaltou que trabalha desde os 17 anos, quando começou um estágio na Defensoria Pública do Estado de Rondônia, ganhando 400 reais por mês. “Isso é um estereótipo racista de colonizador”, ela afirmou. Após jantar num restaurante italiano e tomar cerveja do tipo IPA (India Pale Ale, de cor avermelhada e sabor amargo) em Glasgow, Suruí contou que aproveitou a viagem para trocar de celular. “Eu já era chamada de índia de iPhone, agora tenho um.”

 

Os ataques não são novidade para a estudante e sua família. Almir e Neidinha Suruí já foram ameaçados de morte várias vezes por causa da sua ação incisiva contra os invasores de terras indígenas. No começo da década passada, o casal e sua família precisaram ser escoltados durante quase dois anos por agentes da Força Nacional. “Eles me levavam à escola e acompanhavam a gente em todo canto”, disse Txai. Este ano, Neidinha ficou dois meses fora de Rondônia após receber ameaças de invasores da terra dos Uru-Eu-Wau-Wau. A corda esticou durante o governo Bolsonaro, especialmente em Rondônia, a unidade da federação em que o presidente teve a terceira maior votação proporcional no segundo turno (ganhou ali com 72% dos votos), atrás apenas de Acre e Santa Catarina.

Em abril, a Polícia Federal abriu um inquérito, a pedido da Funai, para investigar supostas críticas de Almir Suruí a Bolsonaro, conforme mostrou uma reportagem do UOL. O caso acabou arquivado. Três meses antes, Almir e Raoni haviam denunciado o presidente ao Tribunal de Haia por crimes contra a humanidade. Para Almir, a luta pelos direitos dos povos originários ficou ainda mais difícil com Bolsonaro no poder. “O discurso do governo incentiva o preconceito e cria a expectativa para os invasores de que um dia tenham terras dentro das terras indígenas.”

Em setembro deste ano, Almir foi eleito cacique-geral dos Paiter-Suruí – ou labiway esagah, como é chamado o líder que comanda as 28 comunidades desse povo. Pela primeira vez o labiway esagah foi escolhido por voto, com urnas cedidas pelo Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia, que também mobilizou fiscais para monitorar o processo. Almir concorreu com outros dois candidatos e recebeu 56% dos 919 votos. Foi eleito para um mandato de dois anos que começa em janeiro de 2022. “A eleição é simbólica, neste momento de ataques à própria democracia, com nosso presidente ameaçando dar um golpe quase toda semana”, disse Txai – e voltou ao celular para mostrar uma foto da cédula de votação. “O povo Suruí está dando uma aula de democracia e mostrando como é que se faz.”

Ela própria está predestinada a se tornar labiway esagah, a julgar por uma previsão feita por seu avô há mais de duas décadas. Numa cerimônia que celebrava os quarenta anos do contato dos Paiter-Suruí com o governo brasileiro, Almir colocou a filha em cima de um tronco cortado e, traduzindo para o português as mensagens que seu pai lhe dizia, anunciou que a menina seria uma grande líder. O avô sabia que ela e seus irmãos falariam um português melhor que o seu, e que estariam mais preparados para defender os direitos de seu povo. “A gente precisa muito dela no espaço político”, disse Almir.

 

As negociações diplomáticas em que representantes de quase duzentos países discutem soluções para o aquecimento global são o principal elemento das conferências do clima da ONU, mas estão longe de serem o único. Ao longo de duas semanas, ambientalistas, pesquisadores, empresários e representantes de várias esferas de governo participaram de debates e atividades em torno da crise climática. Mais de 23 mil participantes inscritos foram a Glasgow, incluindo centenas de lobistas representando a indústria dos combustíveis fósseis, a maior delegação do gênero da história das conferências do clima, mais numerosa que qualquer representação nacional na COP26. (Como notou o jornalista Matthew Shirts no site Fervura no Clima, seria o mesmo que receber uma grande comitiva da indústria do cigarro em um congresso de oncologia.)

Foi nas atividades paralelas da conferência do clima que os representantes dos povos indígenas brasileiros marcaram presença na COP26. As líderes se reuniram com representantes de ONGs, empresas e governos e encontraram personalidades como o príncipe Charles, herdeiro da Coroa britânica, e o ator norte-americano Leonardo DiCaprio. As indígenas brasileiras estiveram também na linha de frente de uma marcha por justiça climática que levou centenas de milhares de pessoas às ruas de Glasgow. “O colonialismo causou a mudança do clima, os povos indígenas são a solução”, dizia uma das faixas levadas pelos manifestantes.

A apropriação das tecnologias é uma das marcas registradas do novo ativismo indígena, que recorre às plataformas digitais para amplificar sua voz. “As redes sociais são uma ferramenta de resistência para a juventude e representam uma renovação da nossa luta, que continua a mesma”, disse à piauí Samela Awiá, uma estudante de biologia de 25 anos, do povo Sateré Mawé, no Amazonas. De Glasgow, Awiá enviou para seus 34 mil seguidores no Instagram fotos e vídeos sobre sua participação na COP26, onde encontrou a princesa Maria Esmeralda, da Bélgica, a quem entregou uma carta com reivindicações das indígenas brasileiras.

Mesmo com o destaque sem precedentes obtido numa conferência do clima, a voz dos indígenas ainda tem alcance limitado. “Muitas discussões que aconteceram na COP são fechadas para a sociedade civil”, queixou-se Txai Suruí. “Temos que estar nesses espaços de discussão.” Para tanto, é preciso que os povos indígenas tenham mais participação na política institucional do país – e por isso estão sendo articuladas candidaturas de mulheres indígenas para o Congresso nas eleições de 2022.

Na legislatura atual, a única representante dos povos indígenas é Joenia Wapichana, deputada federal pela Rede de Roraima. Frequentadora há alguns anos das conferências do clima, ela lamentou que a maior visibilidade dos povos indígenas não tenha impulsionado a demarcação de novas terras ou a obtenção de recursos para a conservação das reservas existentes. “Está faltando chegar o financiamento climático para os povos indígenas”, afirmou Wapichana.

Com o destaque do discurso de Txai Suruí, não faltaram seguidores que estimulassem sua candidatura a algum cargo eletivo no ano que vem. A estudante reconhece a importância da maior participação das mulheres indígenas na política partidária, mas disse que não pretende se candidatar no momento. “Acho que consigo fazer mais no ativismo.”

Para Alessandra Korap Munduruku, que foi a Glasgow denunciar os impactos das hidrelétricas e do garimpo ilegal nas terras indígenas, o retorno ao Brasil significou a retomada da rotina de perseguições. De volta a Santarém, no Pará, ela teve sua casa invadida por desconhecidos que reviraram objetos pessoais e levaram uma pasta com documentos e os registros das câmeras de segurança – deixaram, porém, o laptop, a tevê e outros objetos de valor. “Tudo indica que não foi roubo”, afirmou. Para Munduruku, que estuda direito na Universidade Federal do Oeste do Pará, tratou-se de mais uma tentativa de intimidação, depois das denúncias feitas por ela. “A gente não vai se calar.”

 

O sucesso ou fracasso de uma conferência do clima depende do prisma pelo qual é avaliada. Se for julgada estritamente do ponto de vista das negociações, a COP26 produziu o que se poderia esperar dela dentro dos limites do multilateralismo: um livro de regras para o Acordo de Paris, incluindo as normas para o mercado internacional de carbono. “O Acordo de Paris está vivíssimo, vamos agora para a implementação a pleno vapor”, disse Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, think tank que monitora políticas públicas ambientais.

Dentre os motivos para otimismo, na avaliação de Unterstell, está o fato de os signatários do acordo terem renovado a intenção de limitar o aquecimento a 1,5ºC. Contudo, os novos compromissos apresentados pelo Brasil, como cortar pela metade suas emissões de gases-estufa até o fim da década, e pelos demais países em Glasgow continuam colocando o mundo na rota de um aquecimento de 2,4ºC até o fim do século. Esse aumento de temperatura será fatal para pequenos países insulares, como a República das Maldivas, e terá consequências potencialmente desastrosas para muitos outros, incluindo o Brasil.

Já do ponto de vista do financiamento climático, a conferência de Glasgow naufragou. Os países desenvolvidos ainda não disponibilizaram os 100 bilhões de dólares por ano que haviam prometido empenhar a partir de 2020 para ajudar os países em desenvolvimento a reduzir suas emissões e se adaptar a um mundo que já está 1,1ºC mais quente. O Pacto Climático de Glasgow adotado ao fim da conferência reconhece a importância dos recursos, mas não explicou de onde virão. “É uma espécie de ‘devo, não nego, pago quando puder’ por parte dos países ricos”, afirmou a advogada Suely Araújo, do Observatório do Clima, uma coalizão de ONGs da área ambiental.

É verdade que o pacto inclui, pela primeira vez na decisão de uma COP, menção nominal aos combustíveis fósseis, como o petróleo e o carvão, principais fontes da emissão dos gases do efeito estufa que estão aquecendo o planeta. Mas o trecho histórico acabou ganhando uma forma muito atenuada em relação à redação original, que falava em “eliminação gradual”, e não em “redução gradual do uso” desses combustíveis, como fixou a versão final, aprovada depois de uma oposição de última hora da Índia, feita na plenária de encerramento. Representantes da União Europeia e da Suíça protestaram. Mas os países ricos não haviam posto na mesa o dinheiro prometido desde 2009, e a reivindicação do governo indiano, endossada também pela China e por outras nações, acabou passando.

Para Txai Suruí e os ativistas que foram a Glasgow, os resultados da conferência foram decepcionantes. “Com as decisões que saíram da COP, a gente não vai alcançar o objetivo de 1,5ºC”, disse ela, de Estocolmo, às vésperas de voltar para o Brasil. Mas o resultado não a surpreendeu. “Mais uma vez vimos as pessoas brancas do Norte global decidindo pelo nosso futuro e pelo futuro do mundo. Não teremos resultados melhores enquanto não tivermos vozes diferentes participando do processo decisório.”

Se os resultados não foram bons para Suruí, ao menos o ambiente de Glasgow lhe trouxe algum otimismo. “Vimos na COP um monte de jovens engajados lutando, e isso para mim é o maior símbolo da esperança de que a gente pode, sim, conseguir reverter tudo isso”, disse. Seu discurso na abertura foi esperançoso. “É necessário acreditar sempre que o sonho é possível”, ela disse, repetindo o verso de uma canção de 2002 dos Racionais MC’s.

Não foi a única citação em seu discurso. Quando disse que “Nós temos ideias para adiar o fim do mundo”, a estudante estava aludindo ao título de um livro de 2019 do pensador Ailton Krenak que mostra como a perspectiva dos povos indígenas pode ajudar a atravessar a crise ambiental. Ao evocar as ideias de Krenak numa entrevista, Suruí contou que os povos originários viveram o fim do mundo com a invasão da América pelos europeus, no século XVI, e o vivem de novo quando são invisibilizados pela sociedade brasileira. “A gente superou todos esses fins do mundo, e continuamos aqui”, afirmou. “Bolsonaro vai passar. Independentemente dele ou do resultado da COP, seguiremos resistindo.”

Bernardo Esteves
Bernardo Esteves

Repórter da piauí, é autor do livro Domingo É Dia de Ciência (Azougue Editorial)

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