A obra de André Sant’Anna pode ser lida como um aviso precoce da escatologia no centro da vida pública atual, mas também como um tipo de salvaguarda contra a romantização do passado ILUSTRAÇÃO: ANDRÍCIO DE SOUZA_2019
O Brasil banal
André Sant’Anna e o registro da precariedade nacional
Alejandro Chacoff | Edição 156, Setembro 2019
Uma amiga baiana me conta que, em meados da década de 1970, “ali entre Ilhéus e Itabuna”, havia um rapaz cujo apelido era Jipe. Ele passava de vez em quando na rua, fazendo barulhinhos de motor com a boca. De repente, parava no asfalto e começava a gritar: “Tenho que abastecer, vem me ajudar, tenho que abastecer!” A criançada então lhe trazia copos d’água. Jipe usava uma roupa estranha, com espelhos retrovisores acoplados à sua vestimenta: emulava o Jeep que, segundo rezava a lenda, o pai lhe havia prometido caso ele passasse no vestibular. Jipe estudou e estudou, mas não passou. Tornou-se então o maior exemplo do ditado anônimo que, segundo a minha amiga, corria de boca em boca durante a sua infância: o de que “estudar demais endoidece”. O rapaz se transformara no Jeep que nunca tinha ganhado do pai, e agora passava o dia todo dando voltas no seu automóvel invisível. “Tá podendo, hein Jipe”, as crianças sussurravam, com risadinhas maliciosas. “Tchau Jipe, bye, bye!”, diziam depois, com certa ternura, quando ele arrancava para ir embora.
A anedota, que cito de memória, evoca o mundo ficcional de André Sant’Anna: um mundo cômico, às vezes obsceno, absurdo e ao mesmo tempo absurdamente familiar. Um lugar permeado por certa obsessão materialista e tomado por um sincretismo empobrecido – não o sincretismo da autoimagem vaidosa do país, aquele de um multiculturalismo vibrante; mas sim o sincretismo do “Jipe”, da “batata croc-chips”, do “americano no prato”, com muita maionese e guaraná, refeição que Mané, protagonista do romance O Paraíso É Bem Bacana (2006), gosta de comer.
Mané é um garoto pobre de Ubatuba, bom de bola, que é transferido primeiro para o Santos e depois para o Hertha Berlim, na Alemanha, onde ele se converte ao islamismo e vira terrorista. Resumida dessa forma, a sinopse sugere um drama social naturalista, uma história de superação que termina em tragédia. Mas a pobreza episódica do romance (certamente intencional), a banalidade das vidas e da linguagem dos personagens, afugenta essa leitura. De natureza tímida, suscetível, frequentemente atacado com insultos racistas, Mané passa a maior parte de sua infância e adolescência em Ubatuba tentando não apanhar ou ser estuprado nas brincadeiras de troca-troca dos amigos da escola. O livro começa com ele no pátio do colégio, sendo pressionado por outros meninos a bater num “gordinho filho da puta”. Mané se nega a esmurrar o garoto. O narrador então descreve:
“Numa cidade filha da puta de pequena como aquela, um moleque bobão como o Mané, ou como o gordinho filho da puta, que arrega numa briga na saída da escola, passa a ter uma vida filha da puta. O Mané arregou para o gordinho filho da puta e o filho da puta do Levi decidiu que o Mané era viado e filho da puta. Viado, porque o Mané tinha arregado para o gordinho filho da puta. Filho da puta, porque a mãe do Mané era largada e bebia pinga.” Algumas linhas depois, o narrador segue: “Numa cidade pequena filha da puta como aquela, todo filho da puta precisa ter um filho da puta para chamar de viado.”
O uso excessivo de palavrões aqui não parece ter nenhum intuito transgressor: é apenas reflexo do comprometimento do autor com os ritmos da oralidade, com a língua falada. Qualquer escritor pode vociferar esse comprometimento, mas poucos têm o ouvido de Sant’Anna, ou a radicalidade de sua diligência. A repetição incessante de “filhos da puta” e “viados” no parágrafo elimina, na verdade, qualquer frisson transgressor mínimo que essas expressões porventura ainda possuam, trazendo o leitor, num efeito reverso poderoso, a uma linguagem adolescente que é imediatamente reconhecida por qualquer pessoa que viveu ou cresceu no interior do Brasil (e provavelmente também nas grandes capitais). Essa banalidade linguística emula a banalidade existencial da infância e adolescência pobres de Mané, cujos maiores objetivos são comer “americano no prato”, aprender a se masturbar e não deixar os colegas de escola passarem a mão na sua bunda ou o estuprarem.
Personagens como Mané, personagens no sentido mais tradicional da palavra, são, porém, raros na obra de Sant’Anna. Frequentemente, nos seus contos, um narrador sem nome entoa um discurso desconexo e confuso, cheio de clichês, xingamentos, bordões. O personagem mais frequente nessas histórias talvez seja o senhor direitos humanos, uma abstração citada pelos narradores como se fosse pessoa de carne e osso. “O direitos humanos não quer que o cidadão de bem tenha a própria arma pra se defender contra as drogas”, diz o narrador de um dos contos de O Brasil É Bom (2014), a última coleção de contos do autor, “mas deixa essas meninas usar pulseira de plástico pra fazer sexo e aí os tarados vêm e estupram elas e o direitos humanos quer deixar elas usarem essas pulseiras de plástico”. O direitos humanos, segue o narrador, “não leva em consideração que esses tarados que estupram também ficam vendo as meninas aí andando praticamente indecentes, de pulseira de plástico que pode até fazer sexo oral, quando é amarelo, eu acho”.
Em Rush, um conto famoso do início de sua carreira, um taxista-narrador discorre um pouco sobre métodos de tortura na ditadura (“cassetete lá mesmo”; “alicate no bico dos seios”), enquanto um passageiro ou uma passageira o escuta em silêncio. “Que nem esses canadenses que sequestraram o Diniz do Pão de Açúcar”, o taxista diz. “Se fosse na época da ditadura eles pegavam aquelas mulher do sequestro e estuprava tudo. […] Agora vem o direitos humanos e solta tudo. E dia de sexta-feira é pior que os amador vem tudo pra rua pra ficar atrapalhando o trânsito. Fica tudo sem deixar a gente ultrapassar. É. A lá. A lá os trombadinha. Finge que tá com fome e as mãe fica tudo lá escondida.”
O pulo da anedota de orelhada (“Diniz do Pão de Açúcar”; “pulseira de plástico”) para a generalização categórica; a mistura blasé entre um saudosismo pouco elaborado (“Bom era no tempo da ditadura”) e a dispersão mundana (“A lá os trombadinha”) – essas vozes são tão imediatamente reconhecíveis que dispensam conflitos ou situações romanescas. Sant’Anna prende o leitor menos pela narrativa do que pelos ritmos hipnóticos e aliterativos de sua prosa, e pela evocação precisa da atmosfera desses falatórios. Esses discursos confusos – bem como os personagens de um romance como O Paraíso É Bem Bacana – são parte de uma massa amorfa que é frequentemente escanteada não só pela literatura, mas também pela tradição difusa do ensaísmo que busca decifrar o enigma nacional. Há mais ou menos vinte anos, desde a publicação de seus primeiros dois livros, Amor (1998) e Sexo (1999), Sant’Anna parece estar numa expedição longa e solitária, catando esses detritos com um misto de exaspero e fascínio infantil. Um enigma nacional pressupõe um segredo complexo a ser desvendado pela observação minuciosa. Sant’Anna é um observador dos mais minuciosos, mas o que ele constantemente registra nos seus escritos é a força avassaladora da precariedade. Como dar respostas quando não se consegue nem formular perguntas?
O conto em que o narrador discorre sobre direitos humanos e pulseiras de plástico promíscuas se chama Comentário na Rede Sobre Tudo o Que Está Acontecendo por Aí. O título, por si só, parece extraído de alguma fala presidencial recente, e não é difícil imaginar o narrador saltando das divagações sobre pulseiras que atraem estupradores para a questão das amputações penianas país afora. As relações entre o momento político atual e os escritos de Sant’Anna são tão gritantes quanto as vozes que ele mimetiza – a escatologia que outrora parecia difusa pela sociedade, mas sem presença institucional, agora domina o noticiário.
O Brasil É Bom foi publicado em 2014, mas boa parte do material do livro é anterior a essa data, e é improvável que o autor tenha se inspirado especificamente em Jair Bolsonaro e seu círculo para compor esses textos. Naquela época, o país tentava absorver o impacto das manifestações de 2013 – ainda tenta, na verdade – e a dicotomia PT-PSDB, apesar de mostrar as primeiras fissuras, ainda parecia relativamente resiliente.
É tentador, sob essa ótica, ler Sant’Anna como alguém que previu a onda reacionária atual. Mas o termo “reacionário” é problemático no contexto de sua obra. Pois embora muitos dos seus narradores vociferem bordões conservadores, a estética criada pelo autor ressalta, sobretudo, o caráter desarticulado desses discursos. Certo conservadorismo predomina simplesmente porque esse é o estado inercial, o estado mais básico de articulação emocional e cognitiva, e não porque esteja em marcha uma grande contrarrevolução dos costumes. A confusão – mental, linguística – é sempre maior do que qualquer espécie de disciplina ideológica.
É uma confusão que se estende para além de um segmento específico da sociedade ou de um espectro político. “Jesus nasceu num barraco bem pobrinho”, diz o início de Deus É Bom Nº 8, o primeiro conto de O Brasil É Bom, “num lugar bem pobrinho, cercado por vaquinhas, estrelinhas, uma lua sensacional. Jesus nasceu nesse clima e a Gloria Pires falou: esse menino vai se chamar Jesus. Jesus Cristinho.” O conto não apenas fere sensibilidades religiosas, mas é uma espécie de alegoria torta da história de Jesus e Judas, com um “bem bolado” entre os dois, acordos com o Centrão, o PCdoB e a Arena (o antigo partido Aliança Renovadora Nacional, criado em 1965 para reunir os apoiadores da ditadura militar), repleto de referências sarcásticas e pouco sutis ao triunfalismo lulista (“o camelo passou pelo buraco da agulha e nunca na história deste Império Romano os bancos lucraram tanto e tanto pão foi multiplicado”). Em Pra Ser Sincero, o telefone toca, e o narrador – imaginando se tratar de uma empresa de cartão de crédito – começa a discorrer sobre os grandes bancos, sobre o dinheiro que será aplicado em “negócios sujos e lucrativos internacionais do tipo indústria automobilística, fabricação de armas ou alguma outra coisa suja que polua, mate ou escravize pessoas no Nordeste, no Norte, no Centro-Oeste, na África, na Ásia […]”. Quando se dá conta de que a ligação vem de um instituto do câncer, porém, ele dá um cavalo de pau retórico, dizendo que a mulher do instituto, que também é “falsa”, deveria perceber que a “classe média média” já paga impostos demais, que ela não deveria pedir esmola a ele, mas sim convencer a “classe baixa alta a fazer uma revolução socialista e obrigar a indústria de produzir leite a salvar as crianças com câncer”.
Amor à Pátria, uma sátira só levemente ficcionalizada de uma coletiva de imprensa dada pelo ex-técnico Dunga antes da Copa de 2010, começa com duas frases: “Porque eu sou assim: a nível de futebol, a pátria em primeiro lugar. Depois vem o resto – a imprensa, a torcida, os jogadores e até eu, que sou o maior responsável.” O mais chamativo aqui não é o conservadorismo (embora ele permeie o discurso inteiro), mas sim os clichês automáticos que se contradizem: “pátria em primeiro lugar” está a apenas uma linha do autoelogio (“eu, que sou o maior responsável”). As falas mimetizadas por Sant’Anna são como cobras mordendo o próprio rabo; há sempre um descompasso entre o calor do monólogo e o encadeamento vagamente ilógico das frases.
Nas atuais circunstâncias, a sua obra inevitavelmente será interpretada como premonição, como um aviso precoce da escatologia agora no centro da vida pública. Mas ela também pode ser lida como um chamado à cautela, uma espécie de salvaguarda contra a romantização excessiva do passado recente, apesar de todos os ganhos sociais e econômicos do período (muitos deles erodidos, a essa altura). Enquanto o país adentra o mar aberto e imprevisível da deterioração institucional, ler Sant’Anna ajuda a conservar a memória da ilhota da redemocratização, aquele rochedo árido e de curvas afiadas que na distância já parece uma massa suntuosa e contígua, extremamente convidativa.
O maior risco que o satirista corre é o de excluir-se da própria sátira, de colocar-se acima dela. Sant’Anna aponta para muitos alvos, e dessa forma poderia ser acusado de cair no mesmo tipo de diatribe frenética que parodia. O seu tom é frequentemente descrito como irônico, mas a ironia é uma técnica contextual, que aparece quase sempre rodeada de outras atmosferas descritivas – ela dá a cara e logo em seguida se esconde. Uma ironia permanente é apenas exaspero, e o tom exasperado de muitos desses narradores inevitavelmente se confunde com o do autor. Há uma sinuca de bico nesses textos. Se o autor se distancia demais do narrador, parece estar rindo da desgraça e desarticulação alheia; se ele se aproxima demais, parece legitimar o impulso destrutivo que às vezes retrata e que nesse momento da vida nacional tem sua maior expressão coletiva no fetiche da antipolítica (há uma expressão argentina mais precisa para esse tipo de sentimento: que se vayan todos).
Esse dilema é de certa forma insolúvel, pois a figura do autor é sempre fantasmagórica, um ponto indefinido que se delicia com a própria indefinição, com essa possibilidade que só a literatura dá de brincar com os limites do eu. Ainda assim, para alguém que usa a narração em primeira pessoa com tanta frequência, é notório que Sant’Anna tivesse até alguns anos atrás pouquíssimos textos explicitamente autobiográficos. Desde que surgiu em 1998 e foi considerado como uma promessa da prosa brasileira, ele tem mantido uma relação relutante e algo fugidia com o meio literário. Sua produção é esporádica, e parte de sua obra tem que ser caçada em antologias. Poderia ser definido como um exemplo clássico de “escritor de escritores”, não fosse o fato de que no Brasil muita gente é “escritor de escritores”. Em entrevistas, Sant’Anna costuma ressaltar a lembrança que ficou de sua infância – do pai, o escritor Sérgio Sant’Anna, angustiado, escrevendo nos fins de semana e feriados – e contrastá-la com a felicidade mais coletivista do próprio André ao atuar na juventude como contrabaixista de uma banda de rock no Rio de Janeiro na década de 1980.
Os últimos quatro relatos de O Brasil É Bom são dos poucos a tomarem uma linha mais explicitamente pessoal, e esses textos – sobretudo A História da Revolução e A História da Alemanha, o último da coleção – ajudam a entender um pouco mais os impulsos artísticos do autor. A figura autoral que surge nesses relatos é de alguém saudoso da vitalidade intelectual e artística brasileira dos anos 1960 e 1970 (referências a Glauber Rocha são frequentes), uma pessoa aparentemente de esquerda que tinha grandes expectativas e se desencantou com a forma como a transição democrática começou num acordo que prefiguraria outros “acordões”, com “um presidente de centro-esquerda que morreu antes de tomar posse”, logo substituído por um “presidente de centro-direita que apoia todos os governos de direita, de centro ou de esquerda”, um homem de “discurso altamente fajuto, cínico, de eztetyka mefistofélica, e o Brasil do Glauber Rocha e do Darcy Ribeiro e o amálgama brasileiro que o Mautner diz haver, essas porra, não têm a menor possibilidade, não vai rolar, Glauber […]”.
Embora o alter ego do autor pareça se situar do lado político oposto ao de muitos de seus narradores, nota-se que a cadência da voz, o estilo da prosa, é o mesmo. Essa ambiguidade é produtiva, pois evita que Sant’Anna caia numa posição estanque de superioridade moral ou estética, de condescendência para com os seus personagens. Embora esses relatos pessoais tenham, em alguns momentos, um tom mais melancólico e nostálgico do que de costume, eles contêm os mesmos palavrões, o mesmo ritmo levemente insano de atropelo verbal. Sant’Anna, em outras palavras, tenta não se colocar acima de suas paródias; e, pelo menos tacitamente, reconhece em si mesmo alguns dos mesmos impulsos discursivos esquizofrênicos. A confusão está aí, não há como fugir, ele parece dizer.
Essa autoinclusão, por mais elíptica que seja, expande as possibilidades de sua obra. Sant’Anna não é um misantropo convicto como Rubem Fonseca, por exemplo. Em que pese toda gritaria e confusão de seus contos, há uma energia alegre, quase infantil, na sua escrita (não num sentido de imaturidade, mas de percepção aguçada e indiscriminada). Empatia talvez seja um termo demasiado açucarado (demasiado americano) para aplicar a uma escrita tão brutal, mas em meio ao português gramaticalmente errado e aos anseios consumistas dos personagens, em meio a toda feiura, há sempre uma riqueza imagética, certo lirismo do banal que acaba por tirar a obra do terreno áspero da diatribe. Em Lodaçal, dois personagens pobres chamados Chiquinho e Toninho passam por inúmeros futuros distintos, hipotéticos (em que quase todos os outros personagens também se chamam Chiquinho e Toninho). Muitos dos cenários imaginados são violentos e autodestrutivos, mas as descrições dos pequenos momentos de êxtase dos amigos são belíssimas – os dois com “um ventinho gostoso batendo na cara”, acendendo “uns charutões de maconha desse tamanho, empinando pipa, sem saber que empinar pipa fumando um charutão de maconha desse tamanho e olhando a Baía da Guanabara é um troço tão bom”. A certa altura levam algumas meninas para o canto de um parquinho de diversão, para dar uns amassos, e acabam dentro de “um trem fantasma que tinha um boneco sem braço, já que o braço do boneco, que era uma caveira, que era a Morte, deu cupim […]”.
Amassos escondidos num trem fantasma escuro e decrépito, onde a amputação do monstrengo é fruto não do design, mas do avanço do cupim: difícil encontrar uma imagem mais peculiarmente nacional. O Paraíso É Bem Bacana começa intercalando descrições da infância tenebrosa de Mané com os delírios do protagonista numa cama de hospital, após sua aparente tentativa de explodir-se num ato terrorista. O paraíso, no delírio de Mané, narrado em primeira pessoa, é cheio de “americano no prato com pão à parte”, “sorvete de coco com uns pedacinho de coco”, que dá para comer tudo ao mesmo tempo sem “a barriga ficar estourando”, com mulheres – uma delas inspirada na modelo de revista para a qual ele se masturbava na adolescência – de ânus perfumados de “eucalips” e que ficam dando beijinhos no pescoço dele enquanto sussurram: I love you.
A descrição pode soar grotesca, mas nos interstícios está a história trágica de Mané, contada pela voz dele, em espasmos de português gramaticalmente errado – a mãe que quer vender a filha para ser prostituta; as humilhações impostas pelos amigos de escola, que lhe chamam de “pretinho” e “viadinho”; o Amaro, um alcóolatra que tenta vagamente (e tragicamente) servir como figura paterna. O Paraíso É Bem Bacana tem uma veia cômica brutal, mas a pergunta implícita é profunda e artisticamente ambiciosa: qual seria a visão do paraíso para um menino preto, pobre e tímido que teve uma infância tão limitada e limitadora? Ao ser diligente em assumir o ponto de vista do narrador – com seus desejos e anseios aparentemente banais –, Sant’Anna corre o risco de parecer cruel, mas pelo menos não cai em uma narração sentimentaloide e obscena da pobreza, como os “subgerentes” de Lodaçal, que, no horário de almoço, ao caminhar pela calçada, acham o Toninho “bonitinho”, com a “melequinha no nariz”. O Chiquinho, porém, um deles argumenta, já está na idade de “levar umas porradas”. Essa é, talvez, a esquizofrenia mais perigosa de todas, a que subjuga todas as outras esquizofrenias discursivas – esse pulo repentino do diminutivo açucarado ao nojo classista – que a obra tenta constantemente registrar.
Qualquer trabalho polifônico que se preste a mostrar não uma diversidade colorida de vozes, mas a mesmice cinzenta delas é um trabalho que incomodará. O prazer de ler André Sant’Anna não está na extração de alguma grande lição política ou sociológica (algo que a literatura de qualquer modo raramente oferece), mas sim no registro de realidade que é oferecido. Há um prazer quase sensorial em simplesmente ler expressões como “batata croc-chips”, “americano no prato” e “Diniz do Pão de Açúcar”, ou em visualizar o braço do monstrengo do trem fantasma que deu cupim, encontrando assim imagens e falas tão autênticas e ao mesmo tempo tão raramente transplantadas à literatura. Apesar da riqueza inegável da tradição ensaística brasileira, conceitos como patrimonialismo ou cordialidade talvez já não deem conta de nossos escombros.
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