GUILLAUME TELL DOIN_THE BRITISH LIBRARY BOARD_1790
O clã do dinossauro
Não há nada no mundo que o escritor de brevidades deseje mais do que escrever interminavelmente longos textos, longos textos em que a imaginação não tenha que trabalhar, em que fatos, coisas, animais e homens se cruzem
Augusto Monterroso | Edição 15, Dezembro 2007
O DINOSSAURO
Quando despertou, o dinossauro ainda estava lá.
FECUNDIDADE
Hoje me sinto bem, um Balzac; estou terminando esta linha.
A OVELHA NEGRA
Num distante país, existiu há muitos anos uma ovelha negra.
Foi fuzilada.
Um século depois, o rebanho arrependido erigiu-lhe uma estátua eqüestre que ficou muito bem no parque.
Assim, daí em diante, cada vez que apareciam ovelhas negras, eram rapidamente passadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e correntes também pudessem se exercitar na escultura.
A VIDA EM COMUM
Alguém que toda hora se queixa com amargura de ter de suportar sua cruz (esposo, esposa, pai, mãe, avô, avó, tio, tia, irmão, irmã, filho, filha, padrasto, madrasta, enteado, enteada, sogro, sogra, genro, nora) é por sua vez a cruz de um outro que amargamente se queixa de ter de levantar toda hora a cruz (nora, genro, sogra, sogro, enteada, enteado, madrasta, padrasto, filha, filho, irmã, irmão, tia, tio, avó, avô, mãe, pai, esposa, esposo) que lhe tocou carregar nesta vida, e, assim, de cada qual segundo suas capacidades e a cada qual segundo suas necessidades.
VACA
Um dia desses no trem eu me levantei feliz assim sem mais sobre as duas patas e comecei a acenar de alegria e a convidar todos a ver a paisagem e a contemplar o crepúsculo que estava uma maravilha. As mulheres e as crianças e uns senhores que pararam a conversa me olhavam surpresos e riam de mim, mas quando me sentei de novo silencioso não podiam imaginar que eu acabara de ver distanciar-se lentamente à beira da via uma vaca morta mortinha sem quem a enterrasse nem lhe editasse as obras completas nem lhe fizesse um comovido e choroso discurso por tão bondosa que fora e por todos os jorrinhos de leite fumegante com que contribuíra para que a vida em geral e o trem em particular seguissem sua marcha.
AS CRIADAS
Adoro as empregadas por irreais que são, porque vão embora, porque não gostam de obedecer, porque encarnam os últimos vestígios do trabalho livre e do contrato voluntário e não têm seguro nem prestações nem; porque, como fantasmas de uma raça extinta, chegam, metem-se pelas casas, farejam, escavam, chegam até os abismos de nossos mesquinhos segredos lendo os restos das xícaras de café ou das taças de vinho, as guimbas, ou simplesmente introduzindo seus olhares furtivos e suas ávidas mãos nos armários, embaixo das almofadas, ou recolhendo os pedacinhos dos papéis amassados e o eco de nossos pleitos enquanto sacodem e varrem nossas porfiadas misérias e as sobras de nossos ódios, quando ficam sozinhas toda manhã, cantando triunfalmente; porque são recebidas como anunciações no momento em que aparecem com seu caixote de Nescafé ou de Kellog’s cheio de roupa e de pentes e de mínimos espelhos cobertos ainda pelo pó da última irrealidade em que se moveram; porque então a tudo dizem que sim e parece que nunca mais nos faltará sua mão protetora; porque finalmente decidem ir embora assim como vieram, mas com um conhecimento mais profundo dos seres humanos, da compreensão e da solidariedade; porque são os últimos representantes do Mal e porque nossas senhoras não sabem o que fazer sem o Mal e se aferram a ele e lhe suplicam que por favor não abandone esta terra; porque são os únicos seres que nos vingam dos agravos dessas mesmas senhoras, simplesmente indo embora, recolhendo outra vez suas roupas coloridas, suas coisas, seus frascos de creme de terceira classe ocupados agora com creme de primeira agora um tantinho sujo, fruto de seus inábeis furtos. Vou-me embora, dizem vigorosamente a elas, enchendo de novo seus caixotes de papelão. Mas por quê. Porque sim. (Ah, liberdade inefável.) E lá se vão, anjos malignos, em busca de novas aventuras, de uma nova casa, de um novo catre, de um novo tanque, de uma nova senhora que não possa viver sem elas e que as ame; planejando uma nova vida, recusando-se à gratidão pelo tão bem que as trataram quando ficaram doentes e pela aspirina que lhes levaram tão amorosamente, por medo de que no outro dia não pudessem lavar os pratos, que é o que cansa de verdade, fazer a comida não cansa. Adoro vê-las chegar, chamar, sorrir, entrar, dizer que sim; mas não, sempre resistindo a encontrar sua Mary Poppins-Patroa que lhes resolva todos os problemas, os de seus pais, os de seus irmãos menores e maiores, entre os quais um as violou na devida ocasião; que à noite lhes ensine na cama a cantar dó-ré-mi, dó-ré-mi até que adormeçam com o pensamento voltado docemente para os pratos de amanhã submersos numa nova onda de espuma de detergente fá-sol-lá-si, e lhes afague com ternura os cabelos e saia sem fazer barulho, na ponta dos pés, e apague a luz no último momento, antes de abandonar o quartinho de contornos vagamente irreais.
A CEIA
Tive um sonho. Estávamos em Paris, participando do Congresso Mundial de Escritores. Depois da última sessão, em 5 de junho, Alfredo Bryce Echenique nos convidou para cear em seu apartamento, localizado no 8bis, 2º andar, lado esquerdo, rua Amyot – a Julio Ramón Ribeyro, Miguel Rojas-Mix, Franz Kafka, Bárbara Jacobs e a mim. Como em qualquer grande cidade, em Paris há ruas difíceis de encontrar; mas a rua Amyot é fácil para quem desce na Estação Monge do metrô e depois, do jeito que puder, pergunta pela rua Amyot.
Às dez da noite, ainda com sol, nos encontrávamos já todos reunidos, menos Franz, que tinha dito que antes de chegar passaria para pegar uma tartaruga que desejava me dar de presente como lembrança da rapidez com que o Congresso tinha se desenrolado.
Por volta das onze e quinze telefonou para dizer que estava na Estação Saint-Germain-des-Prés e perguntou se Monge era na direção de Fort d’Aubervilliers ou na direção de Mairie d’Ivry. Acrescentou que pensando bem teria sido melhor pegar um táxi. À meia-noite telefonou novamente para informar que já havia saído de Monge, mas que, em vez da saída certa, tomara a errada, e que tivera de subir 93 degraus para se dar conta no final de que as portas pantográficas de ferro que dão na rua Navarre estavam fechadas desde as oito e meia, mas que refizera o caminho para sair pela escada rolante e que vinha com a tartaruga, à qual estava dando água num café a três quadras de onde nos encontrávamos. Nós bebíamos vinho, uísque, Coca-Cola e Perrier.
À uma da manhã telefonou para dizer que nos pedia desculpas porque tinha estado tocando a campainha do número 8 e que ninguém tinha respondido, que o telefone do qual falava estava a uma quadra e que já havia compreendido que o número do edifício não era 8, mas 8bis.
Às 2 horas, a campainha soou. O vizinho de Bryce, que mora também no 2º andar, lado direito e não esquerdo, disse, vestido de roupão e meio alarmado, que havia poucos minutos um senhor tinha tocado insistentemente em seu apartamento; que quando por fim abriu a porta esse senhor, consternado sem dúvida pelo engano e por tê-lo obrigado a se levantar da cama, inventou que tinha deixado na rua uma tartaruga; que tinha dito que ia buscá-la; e nos perguntou se o conhecíamos.
BREVIDADE
Com freqüência escuto elogiar a brevidade e, provisoriamente, eu mesmo me sinto feliz quando ouço repetir que o bom, se breve, é duas vezes bom.
Contudo, na sátira 1.I, Horácio se pergunta ou finge que pergunta a Mecenas por que ninguém está satisfeito com a própria condição e o mercador inveja o soldado e o soldado, o mercador. Lembram, não lembram?
O certo é que não há nada no mundo que o escritor de brevidades deseje mais do que escrever interminavelmente longos textos, longos textos em que a imaginação não tenha que trabalhar, em que fatos, coisas, animais e homens se cruzem, procurem ou fujam, vivam, convivam, se amem ou derramem livremente seu sangue sem submissão ao ponto-e-vírgula, ao ponto final.
Ao ponto final que neste instante me foi imposto por alguma coisa mais forte do que eu, a que respeito e que odeio.
HOMENAGEM A MASOCH
O que costumava fazer quando acabou de se divorciar pela primeira vez e se encontrava enfim sozinho e se sentia tão feliz por estar livre de novo era, depois de passar umas tantas horas contando piadas e gargalhando com os amigos no botequim ou no coquetel da exposição tal, onde todos morriam de rir das coisas que dizia, voltar à noite para o apartamento novamente de solteiro e tranqüilamente e com deleite moroso começar a juntar seus instrumentos, primeiro uma poltrona, que punha entre o toca-discos e uma mesinha, depois uma garrafa de rum e um copo médio, azul, de vidro soprado, depois uma gravação da Terceira Sinfonia de Brahms, regida por Felix Weingartner, depois seu grosso exemplar encadernado, editora Nueva España S. A., México, 1944, de Os Irmãos Karamázov; e em seguida ligar o toca-discos, destampar a garrafa, servir-se de um copo, sentar-se e abrir o livro à altura do capítulo III do epílogo para reler reiteradamente aquela parte em que se vê morto o menino Iliúcha num caixão azul, com as mãos postas sobre o peito e os olhos fechados, e na qual o menino Kólia, ao saber por Aliócha que Mítia, seu irmão, é inocente da morte do pai e mesmo assim vai morrer, exclama emocionado que gostaria de morrer por toda a humanidade, sacrificar-se pela verdade, mesmo que com afronta; e então seguir com as discussões sobre o lugar em que Iliúcha devia ser enterrado, e com as palavras do pai, que conta como Iliúcha lhe pediu que quando o tivesse coberto de terra esmigalhasse um pedaço de pão para que pousassem os pardais e que ele os ouviria e se alegraria sentindo-se acompanhado, e mais tarde vai ele mesmo, já enterrado Iliúcha, quebrar e desfazer um pão em pedacinhos, murmurando: “Venham, voem para cá, passarinhos, voem, pardais”, e volta e meia perde o juízo e desmaia e fica feito morto e logo volta a si e começa de novo a chorar e se arrepende de não ter dado à mãe de Iliúcha uma flor do caixão e quer ir correndo levar-lhe uma, até que por fim Aliócha, num rompante de inspiração, ao lado da grande pedra onde Iliúcha queria ser enterrado, dirige-se aos condiscípulos deste e pronuncia o discurso em que lhes diz aquelas coisas esperançosas, que logo se separarão, mas que de todo modo, sejam quais forem as circunstâncias que tenham de enfrentar na vida, não devem esquecer este momento em que se sentem bons, e que, se alguma vez, quando forem adultos, rirem de si mesmos por terem sido bons e generosos, uma voz lhes dirá ao coração: “Não, não está certo rir, isso não é coisa para riso”, e que lhes diz isso caso venham a ser maus, mas não há motivo para que sejam maus, verdade, meninos, e que mesmo daqui a trinta anos ainda recordará esses rostos voltados para ele, e que quer bem a todos eles, e que daí em diante todos terão lugar em seu coração, com a explosão final de entusiasmo em que os meninos comovidos gritam em coro: “Viva Karamázov!”; leitura essa que conduzia a um ritmo tal e tão bem calculado que os últimos vivas a Karamázov terminavam exatamente com os últimos acordes da sinfonia, para recomeçar a ler de novo conforme o efeito do rum o permitisse, sobretudo permitisse por último desligar o toca-discos, tomar um copo final e ir para a cama, para nela afundar minuciosamente a cabeça na almofada e soluçar e chorar amargamente de novo por Mítia, por Iliúcha, por Aliócha, por Kólia, por Mítia, por Iliúcha, por Aliócha, por Kólia, por Mítia.
A MÃO DE ONETTI
Se alguém gosta de romances, escreve romances; se gosta de contos, escreve contos. Como prefiro os últimos, escrevo contos. Mas não muitos: seis em nove anos, oito em doze. Assim mesmo.
Os contos que escrevemos não podem ser muitos. Existem três, quatro ou cinco temas; algumas pessoas dizem que sete. Com isso deve-se trabalhar.
As páginas também têm de ser apenas algumas, porque poucas coisas há mais fáceis de se pôr a perder do que um conto. Dez linhas a mais e o conto empobrece; tantas a menos e o conto vira uma anedota, e nada mais odioso que as anedotas evidentes demais, escritas ou faladas.
A verdade é que ninguém sabe como deve ser um conto. O escritor que sabe é um mau contista, e no segundo conto que lemos percebemos que ele sabe, então tudo soa falso e aborrecido e enganador. É necessária muita sabedoria para não se cair na tentação do saber e da segurança.
Como Juan Carlos Onetti é esperto, sabe que não sabe e por isso seus contos são insondáveis e como seres vivos que temos de rever de vez em quando, do princípio ao fim, e pelo meio, e pelas esquinas das páginas e dos parágrafos; e começar de novo porque a vida e os contos são complicados, e dentro de pouco tempo, seis anos ou uma semana, o conto já é outro, e já somos outros, e então temos de recomeçar a dar-lhe voltas, agitar antes de usar e deixar que as palavras se depositem para que revelem uma vez mais seu mistério, à medida que se transmitem ao que chamamos cérebro (palavra horrível), ou melhor, ao que antes sem nenhum pudor chamávamos de coração ou de alma, aonde os contos de Onetti vão inevitavelmente dar, porque esse é seu alvo secreto, e pouco a pouco compreendemos, com certa melancolia, que isso é um conto, e que por essa mesma razão os contos não podem ser muitos porque nosso coração não resistiria, e se são de Onetti, ainda menos. E isso sim Onetti sabe e por isso não escreveu tantos, para que passemos a seus romances, nos quais sempre é mais fácil, por uma razão ou outra, nos acostumarmos devagar com as coisas, e sobreviver.
Uma manhã de 1967, Onetti chegou a minha casa na cidade do México. Era mais provável que tivesse esquecido. Eu o acompanharia à Universidade do México, onde ele gravaria um disco para uma coleção chamada Voz Viva da América Latina. Chegou a minha casa um dia, uma manhã, na cidade do México.
Na salinha, uma filha minha, de meses, chamou sua atenção. Onetti se acercou dela. Inclinando-se, estendeu o braço e acariciou sua cabeça com ternura. Em seu conto “Um sonho realizado” uma pessoa também acaricia a cabeça de alguém no final da vida. Desde então tenho encontrado Onetti, sem que ele me veja, em várias ocasiões. A melhor recordação que tenho dele é a de sua mão na cabeça de minha filha no princípio da vida.
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NOTÍCIA DE AUGUSTO MONTERROSO
VILMA AREAS E SAMUEL TITAN JR.
Foi sorte, azar ou talento escrever um conto de uma só linha? Trinta-e-nove letrinhas serão trapézio suficiente para o salto à fama? Muita gente pensa que sim, confundindo a literatura com as artes malabares e, de quebra, esquecendo as vinte-e-poucas letras de um conto sobre sapatinhos de bebê (“Vendo: sapatinhos de bebê, sem uso”) que Hemingway supostamente escreveu.
De qualquer maneira, mal começou a colecionar prêmios literários importantes, Augusto Monterroso inspirou o mercado. O jornal espanhol El País abriu concurso para textos breves, e até o Brasil nos brindou com uma antologia de ocasião, introduzida justamente por Monterroso – apesar de ele ter afirmado que nunca aceitara escrever por encomenda.
Fiel às suas duas paixões – a literatura e a política -, Monterroso disse que lhe faltava o sentimento de “pátria”, pois se sentia guatemalteco, embora tivesse nascido em Honduras, em 1921, e morado toda a vida na cidade do México, depois de perambular pelo continente, perseguido por ditaduras latino-americanas. Morreu no México, em 2003, de um ataque cardíaco.
Essa pequena antologia fala de nossa admiração por ele. Traduzi-lo é uma dificuldade e um desafio, pois seus textos se equilibram na modulação sincopada de um ritmo criado pela oposição de cortes e trechos febris, pela pontuação particular e pela ironia sempre afiada, “espejo de delgadísimo aro de plata“. A conclusão é que o sentido nunca é entregue de bandeja, apesar da aparência às vezes oposta.
Essas são histórias (histórias?) tristes e interdependentes, uma se completando na outra, dialogando com os fantasmas de seu amigo Juan Rulfo, entrevistos pelas esquinas “em forma de vento, pó, desolação e tristeza”.
Monterroso intitulou sua autobiografia de Los Buscadores de Oro. Ele sabia do que estava falando.